Resumo: O presente trabalho possui como objetivo examinar os seguros de circulação automóvel vigentes nos ordenamentos jurídicos português e brasileiro. A circulação cada vez maior de um número considerável de automóveis, decorrente do grande avanço tecnológico dos transportes terrestres ao longo do século passado, trouxe não apenas vantagens, mas também uma série de inconvenientes, sendo um deles o aumento surpreendente de acidentes no trânsito. O surgimento dos seguros obrigatórios de circulação automóvel foram cruciais para acautelar essas situações, na medida em que garantem os danos causados às vítimas do trânsito. O direito português e o direito brasileiro disciplinam esta matéria de modo distinto, principalmente no que toca ao âmbito de garantia do seguro obrigatório e ao direito de regresso das seguradoras contra o responsável civil pelos acidentes rodoviários. A finalidade deste artigo é fazer um paralelo entre essas duas disciplinas, sem deixar de enquadrá-las no contexto social em que se encontram inseridas. Em Portugal, por exemplo, o seguro obrigatório não cobre os danos materiais e corporais sofridos pelo condutor, bem como os danos materiais causados aos familiares do mesmo. No Brasil, o seguro DPVAT cobre apenas os danos corporais causados aos lesados, incluindo os motoristas ou qualquer parente do mesmo, desde que tenham sido vítimas da circulação automóvel ou de carga transportada no veículo. Ademais, o direito português estabelece uma série de causas de exercício do direito de regresso das seguradoras, como, por exemplo, contra o condutor, se não estiver legalmente habilitado, ou quando haja abandonado o sinistrado; contra os autores e cúmplices do roubo, furto ou furto de uso do veículo; contra o condutor que acuse uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida ou consumo de estupefacientes, outras drogas ou produtos tóxicos; entre outros. No direito brasileiro, por sua vez, o seguro DPVAT é operado em conjunto e solidariamente por grande parte das companhias de seguro brasileiras, mediante um convênio firmado entre elas. Este seguro cobre os prejuízos causados à vítima de trânsito, independentemente de culpa, pelo que não há que se falar em direito de regresso. Este direito apenas será aplicável quando o condutor não possuir o seguro obrigatório ou estiver inadimplente.
Palavras-chave: seguro automóvel; seguro DPVAT; Fundo de Garantia Automóvel; socialização do risco; direito de regresso.
Abstract: The present work aims to examine the compulsory automobile insurance in the Brazilian and Portuguese legal systems. The movement of an increasing number of cars, due to major technological development on land transport over the past century, has brought not only advantages but also a number of drawbacks, one being the surprising increase in traffic accidents. The appearance of compulsory insurance of motor vehicles was crucial to guard against these situations, by ensuring the damage caused to victims of traffic accidents. Portuguese and Brazilian laws govern this subject differently, especially regarding the scope of the guarantee of compulsory insurance and the right of return of insurance companies against the responsible by traffic accidents. The purpose of this article is to draw a parallel between these two disciplines, framing them within the social context in which they are embedded. In Portugal, for example, compulsory insurance does not cover damages and injuries suffered by the driver and damages caused to his family. In Brazil, the DPVAT insurance only covers injuries caused to the victims, including the driver, or any relative of him, since they have been victims of car traffic or freight carried in the vehicle. Furthermore, the Portuguese law establishes a number of reasons for exercising the right of return of the insurance companies, e.g., against the driver who is not legally entitled, or who abandoned the victim; the perpetrators and accomplices in the robbery, theft use or theft of the vehicle; against the driver who accused a Blood Alcohol Content (BAC) higher than the legally permitted or consumption of narcotics, drugs or other toxic products, among others. In Brazilian law, in turn, the insurance DPVAT is operated jointly and severally by most insurance companies in Brazil, through an agreement between them. This insurance covers damage caused to the victim of traffic, regardless of fault, so there is no need to speak of right of return. This right will apply only if the driver does not have compulsory insurance or if he is in default.
Keywords: auto insurance; DPVAT; Motor Guarantee Fund; socialization of risk; right of return.
Sumário:1. Introdução – 2. A perspectiva do direito português – 2.1. Principais características do Seguro Obrigatório – 2.2. Âmbito de cobertura do Seguro Obrigatório – 2.3. Direito de regresso – 2.4. O Fundo de Garantia Automóvel – 3. A perspectiva do direito brasileiro – 3.1. Principais características do seguro DPVAT – 3.2. Âmbito de garantia do seguro DPVAT – 3.3. O modo de funcionamento do seguro DPVAT – 3.4. Hipóteses de direito de regresso – 3.5. O seguro DPVAT e a socialização do risco – 4. Conclusão – 5. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O presente trabalho consiste na análise de um tema de grande importância e utilidade para a sociedade hodierna. O desenvolvimento dos transportes terrestres, especialmente o setor automobilístico, consistiu num grande avanço tecnológico, porporcionando uma generalização do uso de veículos ao longo do século passado.
A circulação cada vez maior de um número considerável de automóveis trouxe não apenas vantagens, mas também uma série de inconvenientes, sendo um deles o aumento surpreendente de acidentes no trânsito. Nele estão envolvidos, quase sempre, os pedestres, que se comprimem diariamente nas calçadas, em favor dos milhares de veículos que se deslocam pelas amplas avenidas das cidades.
Além disso, o quotidiano agitado das pessoas igualmente permite o surgimento desse tipo de acidentes, por, muitas vezes, levar motoristas e pedestres a prescindirem da atenção e da cautela necessárias no trânsito. Também não se pode esquecer das condições precárias das vias de circulação em todo o território nacional e do ineficiente planejamento de trafégo terrestre, decorrente, sobretudo, do crescimento desorganizado e inesperado das cidades.
Todos esses fatores contribuiram para o surgimento do seguro obrigatório automóvel. A existência desse seguro altera significativamente os efeitos de uma aplicação estrita das normas de responsabilidade civil, uma vez que compete as seguradoras arcar com os danos causados pelos seus segurados às vítimas da circulação rodoviária. A responsabilidade é, assim, coletivizada, socializada, sendo suportada por grupos de pessoas organizadas no âmbito das companhias de seguro, e não mais por pessoas isoladas. Por isso que é comum afirmar que o seguro obrigatório contribuiu para o fenômeno conhecido por socilização do risco.
Para facilitar a compreensão da disciplina jurídica do seguro obrigatório nos ordenamentos jurídico português e brasileiro, será mais adequado, do ponto de vista metodológico, examinar as perspectivas de cada um desses países separadamente.
No direito português, serão analisadas a principais características do seguro, como a sua obrigatoriedade, onerosidade e aleatoriedade, bem como o seu âmbito de cobertura, o qual possui estreita relação com a identificação dos danos tidos como ressarssíveis. Também serão examinadas as causas de exercício do direito de regresso que as seguradoras possuem contra o responsável civil pelo evento danoso. Por fim, a análise terá como enfoque o Fundo de Garantia Automóvel, organismo de indenização cuja gestão técnica e financeira está a cargo do Instituto de Seguros de Portugal.
No domínio do direito brasileiro, o estudo consistirá no exame das principais características do seguro DPVAT, que, assim como no direito português, também está sujeito à obrigatoriedade, onerosidade e aleatoriedade, bem como do seu âmbito de garantia. Em seguida, discutir-se-á os procedimentos cabíveis para obtenção da indenização através desse seguro. Para finalizar, será feito um breve estudo sobre a relação existente entre o seguro DPVAT e o fenômeno conhecido por socialização do risco.
2. A perspectiva do direito português
O Seguro de Responsabilidade Civil Automóvel tornou-se obrigatório, em Portugal, através do Decreto-Lei nº 408/79, de 25 de setembro. Atualmente, encontra-se regulada no Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto, que visou, fundamentalmente, adaptar esta matéria às exigências comunitárias impostas pela 5ª Diretiva do Seguro Automóvel, a Diretiva nº 2005/14/CE, de 11 de maio.
Este decreto assenta-se em dois relevantes pilares: o do Seguro Obrigatório e o do Fundo de Garantia Automóvel. Ambos contribuíram para o desenvolvimento do fenômeno conhecido por socialização do risco, que consiste, basicamente, em fazer suportar por uma coletividade o encargo de danos que, no passado, só poderiam encontrar cobertura através de mecanismos da responsabilidade individual.
2.1. Principais características do seguro obrigatório
A obrigatoriedade do seguro está previsto expressamente no art. 4.º do mencionado diploma, quando estatui que toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais, causados a terceiros por um veículo terrestre a motor, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade.
Essa obrigatoriedade tornou mais eficaz o pagamento da indenização devida às vítimas de acidentes de trânsito, uma vez que compete às seguradoras arcar com os prejuízos causados pelos seus segurados. O peso da responsabilidade deixou de incidir sobre o patrimônio individual do condutor, para se diluir no seio de um patrimônio coletivo, constituído pelos contributos de todos os potenciais responsáveis, os segurados.
A responsabilidade é, assim, coletivizada, socializada, sendo suportada por grupos de pessoas organizadas no âmbito das companhias de seguro, e não mais por pessoas isoladas. Desta constatação parte-se muitas das críticas existentes sobre o impacto que o seguro obrigatório tem provocado sobre o instituto da responsabilidade civil, nomeadamente quando reduz, ou até mesmo elimina, a sua função sancionatória e preventiva, e transforma-o num instrumento meramente reparador. [01]
Outra característica essencial desse tipo de contrato é o seu caráter pessoal, como se pode inferir pela redação do art. 21.º, nº 1, do DL 291/2007: "O contrato de seguro não se transmite em caso de alienação do veículo, cessando os seus efeitos às 24h do próprio dia da alienação, salvo se for utilizado pelo tomador do seguro inicial para segurar novo veículo". Dessa forma, a obrigação de segurar está relacionada à pessoa que possa ser civilmente responsável nos termos do art. 4.º, nº 1, e não ao veículo.
No entanto, o art. 15.º, nº 2, daquele diploma sugere a natureza real do contrato, ao prever a cobertura pelos danos causados por autores de furto, roubo e furto de uso do veículo ou de acidentes rodoviários dolosamente provocados. Ao cobrir os danos originados por essas pessoas, as empresas de seguro estão garantindo a reparação de prejuízos que não foram causados pelos sujeitos da obrigação de segurar (art. 6.º). Assim, indenizam os danos provocados pelo veículo segurado, independentemente de terem sido originados por aqueles que, por lei, têm a sua responsabilidade garantida pelo seguro obrigatório. Não obstante tal previsão, não é possível afirmar que o seguro tem natureza real, uma vez que aquele preceito possui caráter excepcional, buscando atender a sua função social.
Outra caraterística importante do seguro automóvel é o seu caráter aleatório. Nesse tipo de contrato, o vencimento da obrigação da seguradora fica na dependência de um acontecimento futuro e incerto. Diferentemente, a obrigação do segurado, isto é, o pagamento do prêmio do seguro, corresponde a uma prestação periódica, não se observando, em relação a este contraente, a álea caracterizadora dessa espécie contratual.
Até 2008, o seguro obrigatório também era um contrato formal, nos termos do art. 426.º do Código Comercial: "O contrato de seguro deve ser reduzido a escrito num documento que constituirá a sua apólice". Com a revogação daquele enunciado pelo DL 72/2008, de 16 de abril, a sua redução a escrito deixou de representar uma formalidade ad substantiam, não mais dependendo a validade do contrato de seguro à observância de uma forma especial. Porém, o art. 32.º, nº 2, daquele mesmo diploma exigiu que o segurador fosse obrigado a formalizar o contrato num instrumento escrito (apólice) e a entregá-lo ao tomador do seguro. Essa exigência, no entanto, apenas possui importância em termos probatórios.
2.2. Âmbito de cobertura do seguro obrigatório
No tocante ao objeto do regime do seguro automóvel, o art. 4.º do Decreto-Lei nº 291/2007 prevê a cobertura dos danos causados a terceiros por veículos terrestres a motor e seus reboques, diferentemente da redação do art. 503.º do Código Civil português, que impõe a responsabilidade pelo risco àqueles que possuem a direção efetiva [02] de qualquer veículo de circulação terrestre. Decorre dessas previsões que o objeto do seguro obrigatório é mais restrito do que o da responsabilidade civil prevista no art. 503.º, uma vez que aquele se atém à natureza do veículo e, consequentemente, à sua maior periculosidade, enquanto este abrange todos os veículos terrestres.
Não se enquadram no seu objeto os veículos a serviço do sistema de metrô (art. 4.º, nº 3) e os veículos de caminhos de ferro, a exceção dos bondes elétricos (art. 4.º, nº 2). As máquinas agrícolas não sujeitas a matrículas (art. 4.º, nº 2) também não se encontram no âmbito de aplicação do regime do seguro obrigatório, pois, apesar de motorizadas, não se destinam a circular na via pública.
No art. 14.º do DL 291/2007, estão enunciados, de modo taxativo, os danos cuja ressarcibilidade não possui cobertura pelo seguro obrigatório. A identificação dos danos ressarcíveis se faz mediante a distinção entre danos corporais e danos materiais, bem como possui estreita relação com a condição do lesado, na medida em que apenas os danos causados a terceiros estão cobertos pelo seguro obrigatório. Segundo Filipe Albuquerque Matos, "podemos atribuir a posição de terceiro a todo aquele que, se encontrando no exterior do veículo (sendo estranho a este), vem a sofrer danos por este provocados". [03]
A determinação de terceiro, para fins de aplicação do seguro obrigatório, é definida pela negativa. Assim, estão excluídos da garantia do seguro os danos corporais e materiais sofridos pelo condutor do veículo, nos termos do art 14.º, nº 1 e nº 2, al. a), bem como os danos materiais causados às pessoas que possuem algum parentesco com o condutor, com o tomador do seguro ou com qualquer co-proprietário do veículo segurado (art. 14, nº 2, al. e)). A norma também cita outras razões capazes de excluir a garantia do seguro, como o critério da assunção do risco (al. g), do nº 2), da natureza dos danos sofridos, quer em termos subjetivos (als. a), b) e c) do nº 2), quer em relação ao objeto atingido (als. a), b) e c) do nº 4), bem como o da natureza da atividade exercida (als. d) e e) do nº 4). [04]
2.3. Direito de regresso
Relativamente ao exercício do direito de regresso, o art. 27.º do DL 291/2007 estabelece um sistema taxativo de causas que extravasam o âmbito de cobertura contratualmente assumido pelas companhias de seguro.
Dentre as hipóteses consagradas naquele diploma, estão o direito de regresso contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente (al. a) do nº 1); contra o condutor, se não estiver legalmente habilitado, ou quando haja abandonado o sinistrado (al. d) do nº 1); contra o responsável civil que tenha provocado danos a terceiros em decorrência da condução de veículo que não cumpra as obrigações legais de caráter técnico, na medida em que o acidente tenha sido provocado ou agravado pelo maus funcionamento do veículo (al. i) do nº 1); contra o responsável civil que não tenha cumprido a obrigação de renovação periódica da apresentação do veículo a inspeção, na medida em que o acidente tenha sido provocado ou agravado pelo maus funcionamento do veículo (al. i) do nº 1); contra o responsável civil por danos causados a terceiros em decorrência da queda de carga em virtude de deficiência no acondicionamento (al e) do nº 1).
Convém ter em atenção o direito de regresso da seguradora contra os garagistas e pessoas que exercem atividades de fabrico, montagem, compra, venda, reparação e controle do bom funcionamento de veículos, pela não celebração do seguro que incorrem quando utilizam, em virtude das suas funções, os referidos veículos, no âmbito da sua atividade profissional (al. f) do nº 1).
Ao prever esta situação, a norma está admitindo a intervenção das seguradoras mesmo quando não exista qualquer contrato celebrado entre as mesmas e as pessoas acima mencionadas. Ora, o diploma em questão já estabelece para as situações em que não existe seguro válido e eficaz a intervenção de uma outra entidade, o Fundo de Garantia Automóvel, como veremos em pormenor no próximo tópico (art. 49.º, nº 1, al. a) e b)). Tal previsão revela, portanto, uma certa incoerência com a disciplina jurídica prevista para o seguro obrigatório.
Uma outra situação se refere ao direito de regresso das seguradoras contra os garagistas ou detentores de veículos pelos danos causados na utilização do veículo fora do âmbito da sua atividade profissional (al. g) do nº 1). Esta causa ultrapassa manifestamente o risco típico assumido pelas seguradoras ao celebrar o contrato de seguro, pelo que se torna bastante compreesível atribuir-lhes esta faculdade de reembolso.
Quanto à segunda parte do enunciado, o exercício do direito de regresso advém do surgimento de um acidente de trânsito na sequência de um roubo, furto ou furto de uso de veículo, em virtude de negligência do responsável pela guarda do veículo. Nesses casos, primeiramente, a seguradora exerce o seu direito de regresso contra os autores e cúmplices do roubo, furto ou furto de uso do veículo, e, subsidiariamente, contra a pessoa responsável pela guarda do veículo.
Ainda em relação ao direito de regresso nas hipóteses de roubo, furto ou furto de uso, a al. b) do nº 1 do art. 27.º prevê o direito das companhias de seguro de exigirem, de forma subsidiária, o reembolso do montante por elas despendido contra o condutor do veículo objeto de tais crimes que os devesse conhecer. De acordo com Albuquerque Matos, "pretende-se assim sancionar quem, apesar de não ter participado directamente nos ilícitos criminais atrás mencionados, acaba por, de qualquer modo, usufruir do veículo furtado (ex.: amigo do autor do furto que lhe pede o veículo emprestado sabendo que este poderá ter sido roubado)". [05]
Por fim, a seguradoras ainda podem execer o direito de regresso contra o condutor que acuse uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida ou consumo de estupefacientes, outras drogas ou produtos tóxicos (art. 27.º, al. c). É necessário, no entanto, que as seguradoras provem o nexo de causalidade entre o acidente e a alcoolemia para efetivarem o seu direito de regresso, nos termos do acórdão de uniformização de jurisprudência nº 6/2002, de 28 de Maio, decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça – STJ.
2.4. O Fundo de Garantia Automóvel
O surgimento do Fundo de Garantia Automóvel (FGA) também foi importante para a denominada socialização do risco. Ao garantir a indenização pelos danos sofridos pelas vítimas de acidentes de trânsito quando o responsável fosse desconhecido, ou, quando conhecido, não fosse beneficiário de seguro válido ou eficaz, o Fundo garantia a proteção dessas vítimas nos casos em que as seguradoras não podiam intervir. Neste contexto, ao garantir uma indenização aos lesados nas situações de desconhecimento da pessoa responsável, torna-se bem patente a autonomia da intervenção do FGA face às normas da responsabilidade civil e ao âmbito de garantia do seguro. [06]
Segundo o art. 49.º Decreto-Lei n.º 291/2007, estão cobertos pelo FGA os danos corporais causados por responsável desconhecido ou, quando conhecido, não possuidor de seguro válido e eficaz, bem como nas hipóteses de insolvência da seguradora. Ainda estão cobertos pelo fundo os danos materiais provocados por agente conhecido, mas não possuidor de seguro válido e eficaz, uma vez que a possibilidade de ressarcimento das lesões materiais quando o responsável fosse desconhecido poderia originar situações de fraude.
Além das hipóteses acima mencionadas, a legislação mais recente trouxe duas novidades, uma decorrente da transposição da Diretiva 2005/14/CE (5ª Diretiva do Seguro Obrigatório, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio) para o direito português, disposta na 1ª parte da al. c), nº 1, do art. 49º; e outra proveniente de inovação do legislador potuguês, prevista na 2ª parte da al. c), nº 1, do art. 49º.
A 5ª Diretiva do Seguro Automóvel exigiu dos Estados-membros a inclusão, no âmbito de cobertura dos respectivos FGA, da possibilidade de satisfazer as indenizações por danos materiais quando o responsável fosse desconhecido. Mas, para justamente evitar a possibilidade de fraude, adicionou à existência de danos materiais a exigência de danos corporais significativos em qualquer vítima do mesmo acidente. Caberia, então, a cada Estado-membro construir o seu próprio conceito de "danos corporais significativos".
De acordo com o que dispõe o art. 49, nº 2, o legislador português optou pela seguinte definição: "danos corporais significativos correspondem à lesão corporal que determina morte ou internamento hospitalar igual ou superior a sete dias, ou incapacidade temporária absoluta por período igual ou superior a 60 dias, ou incapacidade parcial permanente igual ou superior a 15%". A determinação desse conceito, no entanto, não dispensa uma avaliação médico-legal. [07]
Ao permitir-se a cobertura de danos materiais, mesmo nas situações de desconhecimento do causador do acidente, está-se a fortalecer consideravelmente o papel de garante social dos prejuízos, em função do qual foi instituído o Fundo de Garantia Automóvel. Para além disso, acaba por suavizar-se o relevo atribuído à summa divisio danos corporais/danos materiais para efeitos da determinação do círculo de prejuízos ressarcíveis. [08]
O FGA também cobre os danos materiais produzidos por veículo abandonado no local do acidente, sem seguro válido e eficaz, cuja presença nesse local tenha sido confirmada pela autoridade policial no respectivo auto de notícia.
No entanto, as hipóteses paradigmáticas de aplicação desta 2.ª parte da al. c) do art. 49.º não são as de acidente provocado por autor desconhecido, mas antes as de ausência de seguro válido e eficaz. Podem, contudo, verificar-se situações de abandono do veículo no local, tendo sido o acidente causado por autor desconhecido. Neste caso, está-se a pensar concretamente num sinistro ocorrido na sequência de um furto, tendo o autor de tal ilícito deixado o veículo no local onde ocorreu o acidente. Porém, e em bom rigor, uma tal hipótese não se enquadra no âmbito normativo da segunda parte do art. 49.º, n.º 1, al. c), uma vez que foi propósito do legislador colocar apenas sob a alçada deste preceito legal os casos de produção de danos materiais onde não se registre a probabilidade de ocorrência de fraudes. [09]