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Estudos da Bioética e o sistema constitucional brasileiro

Agenda 01/06/2000 às 00:00

A revolução terapêutica e, principalmente as manipulações sobre a vida, a utilização do ser humano e de seus elementos levaram à produção de novas normas jurídicas, sendo que em certas ocasiões surgem situações emergenciais, até mesmo pelo fato de todas estas descobertas estarem envolvidas com diversos interesses. Obrigatoriamente surgiram normas de proteção ao ser humano em seu aspecto psíquico e físico, mudanças na legislação nacional e internacional, novas interpretações, normas profissionais, jurisprudências e doutrina. A Bioética se traduz por um conjunto de pesquisas e práticas pluridisciplinares, objetivando elucidar e solucionar questões éticas provocadas pelo avanço das ciências biomédicas. Nesta abertura, as pesquisas passaram a ter como resguardo a colaboração de outras áreas, como Antropologia, Sociologia, Filosofia, Teologia, Psicologia, entre outras. Com o Direito não foi diferente. Descobertas fundamentais na atuação das ciências biomédicas são hoje examinadas ao lado dos Direitos Fundamentais devido ao furor da repercussão causada por este tema que paraleliza o vital equilíbrio entre a vida humana, a ética e os direitos dos cidadãos.

Existem princípios constitucionais e infraconstitucionais baseados na dignidade, respeito, a inviolabilidade, integridade e proteção ao corpo humano, diante do comércio que hodiernamente se formou assim como a extra-patrimonialidade do corpo humano, a exploração para experimentação, a não remuneração ao doador e o seu anonimato, a exclusão da ligação biológica entre o doador e a criança, o regime aplicável à transfusão de sangue, a utilização dos órgãos e elementos do corpo humano; a liberdade sexual, a esterilização, a interrupção da gravidez, a vontade de procriação e sua assistência médica, a proteção do embrião humano, a filiação do embrião, a regulamentação dos nascimentos, os efeitos da filiação, a utilização de dados genéticos, a necessidade terapêutica e as garantias judiciárias.

O Direito Constitucional relaciona-se com a Bioética, pois o profissional da área jurídica, ao se deparar com as novas indagações surgidas em decorrência das novas tecnologias, deve sempre garantir os princípios constitucionais, que, na área humanística, já passou pelos obstáculos que enfrenta a Bioética na atualidade.


Ressalta-se a luta para a garantia dos direitos fundamentais, resguardados nas mais modernas Constituições do mundo.

A primeira destas garantias a surgir foram os direitos e garantias e individuais e políticos clássicos, ou direitos e garantias de primeira geração. Surgiu no século XVIII, tornando-se a base do Estado de Direito, originando o Estado Moderno. Caracterizava-se esses princípios pelo lema francês laissez-faire, laissez-passer, (deixar fazer, deixar passar). Lema que pregava a liberdade de iniciativa das atividades econômicas, e, pelo contexto histórico, foi transplantado para a Política e para o Direito, surgindo o Estado Liberal ou Estado de Direito. Era um Estado caracterizado pela total submissão dos governantes e pela mínima intervenção estatal no domínio econômico, já que qualquer interferência estatal na autonomia e liberdade dos indivíduos era digna de desconfiança e tida como uma vedação à liberdade dos cidadãos. O Estado era concebido para assegurar segurança, garantir a propriedade e praticar os atos dos três poderes(administrar, legislar e julgar). É dessa época o surgimento do princípio da legalidade.

Contudo, este modelo de Estado passou a não mais atender aos anseios da população, pois a evolução desta não para. Após novas lutas, o Estado passar a ter uma nova concepção. Surge o Estado Social, como ficou conhecido. Surgiu no início do século XX, mas só se desenvolveu e atingiu seu ápice ao fim da II Grande Guerra. Caracterizava-se pelo grande intervencionismo estatal em setores que antes eram reservados aos cidadãos (setores econômicos estratégicos, como siderurgia, energia, petróleo, o Estado cria empresas, passa a se responsabilizar e a regular as questões entre patrão e empregado) surgindo os chamados direitos de segunda geração.

A partir do fim da década de 70, este último modelo de Estado encontra-se defasado. Surge então o último modelo estatal: o Estado Democrático de Direito, garantido pelos direitos e garantias fundamentais de terceira geração, sem abandonar as idéias anteriores. Concedeu novos direitos(denominados de direitos difusos, porque exercidos não mais por pessoas determinadas, mas por uma coletividade indeterminada), como os direitos ambientais, do consumidor, questões relativas ao patrimônio histórico-cultural da humanidade, entre outros, ampliando a noção de cidadania, modificando a relação existente entre sociedade e Estado (antes sociedade e Estado eram realidades conflitantes e totalmente diversas), vendo as duas realidades como interdependentes e ligadas por um objetivo comum: a realização do Direito.

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A grande maioria das doutrinas sobre os direitos fundamentais os citam estas três gerações, que se acumularam durante a evolução do Estado.


A Bioética, trouxe novas discussões, que aos poucos foram sendo normatizadas, no próprio texto da Constituição, ou mesmo em leis infraconstitucionais. Alguns especialistas profetizam uma nova geração de direitos fundamentais, que resguardariam o que pode ser ameaçado com o avanço tecnológico das biociências: o patrimônio genético humano. Os Direitos Humanos de Quarta Geração traz como possíveis direitos e garantias a não alteração do patrimônio genético da nossa espécie. No final de 1997, o primeiro passo para a segurança deste objeto jurídico foi dado, na "Declaração dos Direitos do Homem e do Genoma Humano", formadas a partir dos resultados do Projeto Genoma Humano.

Mas este grande projeto é apenas um dos temas abordados pela Bioética. A Constituição brasileira garante o que já foi conquistado. Os estudos ficam na esfera da interpretação e aplicabilidade da norma constitucional, principalmente as normas pragmáticas.

Quanto ao Genoma Humano, o texto constitucional o protege, como parte do meio ambiente (art. 225, parágrafo 1.º, inciso II). Assim, deve-se interpretar que qualquer manipulação do patrimônio genético é uma forma de interferência ao meio ambiente.

A relação entre os estudos relativos à ética e às regras constitucionais são infinitas, podendo dizer que se trata de "combinações matemáticas". Os temas tratados nos estudos bioéticos (aborto, esterilização, reprodução assistida, genética, técnicas alternativas de reprodução, acompanhamento do suicídio, morte, operações transexuais, comercialização e doação de órgãos, a nova teoria da sexualidade, casamento entre pessoas do mesmo sexo entre outros temas) combinam-se com um enorme sistema jurídico. Seja ele privado ou público.

Mas a ética é uma disciplina prática. E, apesar da unicidade da Ciência Jurídica, a análise é constitucional.

Primeiro aspecto a ser apresentado diz respeito à limitação das experiências biológicas ou médicas, por serem as mesmas as propulsoras de tais discussões. Como nos ensina Alexandre de Moraes, "a Constituição Federal prevê duas espécies de pesquisas: científica e tecnológica. A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências. A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional" (Direito Constitucional, Editora Atlas, 1999). Assim, a norma constitucional consagrou a liberdade de criação científica como um dos direitos fundamentais, tornando-a, assim, a regra que deve comandar toda atuação na área das ciências, além do que, conforme o artigo 218 da Constituição Federal, "o Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas". A liberdade de pesquisa é pressuposto da atividade científica. Não há atividade científica se a pesquisa sofre algum tipo de controle.

Segundo Noberto Bobbio ("A era dos Direitos", Editora Campus), "o direito à liberdade científica consiste não no direito a professar qualquer verdade científica ou a não professar nenhuma, mas essencialmente no direito a não sofrer empecilhos no processo da investigação científica."

Contudo, isto não significa que a liberdade de pesquisa seja de índole absoluta, como todo direito fundamental. A limitação desta liberdade da criação científica está nos outros princípios constitucionais, que poderiam ser objeto de ofensas de extrema gravidade, se a liberdade de investigação científica fosse considerada ilimitada. A vida, a integridade física e moral, ou privacidade, por exemplo, que podem ser afetados, pelo uso de forma inadequada da liberdade de pesquisa. Este limites devem ser fundamentados adequadamente, respeitando os conceitos morais e religiosos, desde que não haja preconceito aos avanços tecnológicos.

O direito à vida representa outro aspecto importante na discussão bioética. Este direito é o mais fundamental de todos os direitos, já que sem ele, a existência dos outros seriam em vão. O início da vida deve ser definido pelos profissionais das biociências. Aos juristas cabe apenas a sua aplicação e o enquadramento legal, como ensinou Thereza Baptista Mattos, em A proteção do nascituro. Segundo o entendimento da Biologia, a vida começa com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, formando o zigoto (ovo) e, portanto, o potencial de vida está na gravidez, já que o embrião ou feto possui uma carga genética própria, e que não se confunde nem com a carga genética da mãe ou com a do pai. E muitas vezes nem mesmo existe qualquer semelhança, quando se trata de doação de óvulos ou espermatozóides. Este aspecto jurídico remete a dois grandes desafios, e de grande polêmica: o aborto legal e a eutanásia.

O direito ao aborto legal e à sua regulamentação estão em absoluta consonância com a ordem jurídica brasileira, principalmente nos casos permitidos pelo Direito Penal, ao contrário do que afirmam alguns juristas, como Hélio Bicudo e Ives Gandra da Silva Martins, que sustentam que a discussão do aborto legal não tem levado em conta o texto da Constituição. Afirmam que não houve a recepção pela Constituição de 1988 quanto à legislação penal concernente a estes casos de gravidez em que o aborto é permitido.

Mas, o mesmo raciocínio se aplica às outras hipóteses de aborto, na medida em que não o pune quando não há outro meio de salvar a vida da gestante ou em caso de prenhez resultante de estupro? O porquê de não punir o aborto nessas hipóteses, excluindo o crime, está na razão de que o valor da vida deve ser conjugado com o valor da dignidade humana (mesmo o direito à vida não é absoluto). Entendeu o legislador penal que não seria razoável punir criminalmente uma mulher que sofre risco de vida fatal, necessitando a interrupção da gravidez, assim como não seria razoável punir criminalmente uma mulher que já sofreu a traumática e dolorosa violência do estupro, sendo submetida a um tratamento cruel e degradante. O valor constitucional protegido, nessas hipóteses, é a vida e a dignidade de tantas mulheres. O aborto legal há de ser tratado também como uma questão relacionada à cidadania e à saúde pública, e não apenas como uma questão de segurança pública, mero caso de polícia. Vem a tona outro direito fundamental, a saúde pública, assegurado pela Carta de 1988.

Com o avanço da medicina, a discussão quanto ao aborto da gravidez resultante de estupro torna-se ainda mais intensa, pois esta forma de gravidez pode ser evitada com a chamada "pílula do dia seguinte". É claro que tal procedimento dependerá muito do caso real, e mais ainda, da existência de dogmas religiosos e morais, que, além do Direito, são outras fontes reguladoras da vida em sociedade.

A eutanásia, além do direito à vida, trata do direito à integridade da pessoa humana e sua tutela. Para o jurista Ives Gandra Martins, "o homem não tem o direito de tirar a vida do seu semelhante, mas desligar aparelhos não é matar. Não há polêmica porque não há choque nenhum com o direito canônico ou o direito natural. O direito à vida é se manter vivo com os próprios meios". Os que defendem esta prática, comum em alguns países e estados norte-americanos, com devidas e particulares restrições, alegam que doentes incuráveis terão a escolha da morte imediata ou a escolha de uma expectativa de vida e agonia prolongada. Percebe-se que se trata de argumentos baseados mais na emoção do que na razão. Por enquanto, a eutanásia, constitucionalmente e penalmente é proibido no nosso sistema jurídico. A seara está em seguir um dos princípios fundamentais da nossa República (a dignidade da pessoa humana, artigo 1.º da Constituição Federal), se considerarmos os propósitos da eutanásia digna, ou garantir o direito à vida, se não considerarmos o direito de morrer parte deste direito fundamental. Caso uma nova visão desta prática domine nosso sistema jurídico, infraconstitucionalmente deverá ocorrer uma revolução nas nossas normas, pois as conseqüências são inúmeras, seja no Direito Penal, no Direito de Família, das Sucessões, ou entre outros institutos jurídicos.

A Constituição Federal do Brasil estabelece, em seu capítulo referente aos Direitos e Garantias Fundamentais, que a vida e também a integridade física, são bens indisponíveis, imprescritíveis, insuscetíveis de alienação. Ninguém poderá deles dispor, porém traz algumas exceções. A Constituição Federal permite o transplante de órgãos, no parágrafo 4.º do artigo 199, ofertando diretrizes para a sua realização, assim como para a transfusão de sangue.

A tutela jurisdicional alcança a integridade física do ser humano e muito se questiona sobre a faculdade que possui o indivíduo de doar seus membros ou órgãos do corpo, faculdade esta assegurada por lei. Quanto a isso, muito se discutiu, até mesmo existindo uma teoria que esse direito constituir-se-ia em um direito de propriedade. Ultimamente, este ponto de vista não vem encontrando bases entre os juristas, que não mais aceitam a idéia de que cada um de nós possui um direito de propriedade sobre o próprio corpo. Ihering, em seus ensinamentos, já o negava. Um dos principais argumentos dos opositores à teoria da propriedade sobre o próprio corpo está no fato de que o proprietário de uma coisa tem o poder de disposição plena sobre a mesma, podendo mutilá-lo, ou destruí-lo, estando também, conseqüentemente, autorizada a extrema diminuição da sua integridade física que se traduziria na perda da própria vida. Estaria, desse modo, autorizado o suicídio, ou mesmo a prática da eutanásia. Portanto, não se confunde, pois, o direito à integridade física com o poder de disposição que o proprietário possui em relação à coisa que lhe pertence, objeto de seu direito. Não possui o indivíduo, em relação ao próprio corpo, um ius utendi, um ius fruendi e um ius abutendi como possuiria em relação a um bem de sua propriedade.

A Lei n.º 9.434/97 disciplina a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano a partir da presunção de autorização na ausência de manifestação em contrário. A lei estabelece que ao homem é lícita a doação de órgãos, tecidos ou partes do corpo para fins de transplante (art. 199, parágrafo 4.º da Constituição Federal e Lei 9434/97).

"Para fins de transplante".

Mas, como fica as doações de óvulos e espermatozóides? Será este um procedimento que fere o texto constitucional? O texto Constitucional e mesmo a lei específica não dispõem acerca da doação de espermatozóides ou óvulos. Importante se indagar se o objeto deste contrato firmado em Clínicas Particulares, especializadas neste tipo de procedimento, é legal e não agride o direito indisponível à vida. Entende-se que esta doação é perfeitamente possível, posto que a legislação brasileira só admite que há vida quando o óvulo é fecundado e passa à condição de feto. Não havendo qualquer disparidade quanto ao texto legal, é mister ressaltar que a legislação referente a doações reza ainda que estas deverão ser gratuitas, mas o que tem ocorrido, muitas vezes é justamente o contrário. A realidade tem mostrado que poucos são os que têm acesso a estes métodos, em virtude dos altos custos do tratamento, fazendo com que esta doação perca as características próprias deste instituto, para assumir a posição de contrato oneroso estabelecido entre as partes, realizando, assim, uma verdadeira comercialização. E, mesmo não se tendo, ainda, a vida ou o potencial de vida, não seriam partes do corpo humano estas células? E sendo assim, a inseminação artificial é uma modalidade de doação?

Há opiniões de que a Lei 9434/97 é inconstitucional, por não respeitar o princípio fundamental do pluralismo político. O respeito ao pluralismo faria com que, por exemplo, a lei que dispusesse sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano criasse um sistema eficaz de registro de doações e de realização de transplantes, auxiliado por programas permanentes de informação sobre doações de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. Isso permitiria aos interessados em fazer doações agirem completamente esclarecidos e possibilitaria, também, que aqueles que não estivessem esclarecidos sobre o fato tivessem seu direito à autodeterminação respeitado. Mas asseguraria, principalmente, que ninguém seria discriminado caso optasse por não ser doador. De todo modo, nunca a forma adotada por essa lei, transformando em doadores todos aqueles que deixarem de gravar a expressão "não-doador de órgãos e tecidos" em seus documentos de identidade, será compatível com o pluralismo, pois se trata da forma mais restritiva, que consagra uma determinada posição moral como a única juridicamente aceita.

Todos esses temas, como outros, e que têm conseqüências semelhantes às que foram apresentadas, são relevantes na atualidade, mas o princípio que deve nortear as discussões é o que diz respeito ao direito natural, voltado exclusivamente para a dignidade do ser humano. Cabe ao Estado preservar esse direito, já que o ser humano é o verdadeiro destinatário da ordem social e jurídica de cada país. Os seus contornos jurídicos são delineados pela Constituição, diante de um complexo sistema valorativo, que poderão ser mudados conforme as conclusões dos estudos da Bioética.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDIA, Luís Augusto Mattiazzo. Estudos da Bioética e o sistema constitucional brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 42, 1 jun. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1841. Acesso em: 23 nov. 2024.

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