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Remoção de órgãos: um ensaio sobre a Lei nº 9.434/97

Agenda 01/05/1999 às 00:00

Preliminares

A lei 9.434/97, aprovada em 16/01/97 pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República em 04/02/97 e regulamentada pelo decreto nº. 2.268/97 de 30 de junho de 1997, dispõe sobre remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo para fins de transplante. Diferentemente do que até então vigeu no Brasil, doação voluntária, a nova lei consigna o denominado "consentimento presumido fraco".

Numa breve digressão, cabe elucidar que o consentimento presumido subdivide-se em dois tipos: o forte ou amplo, assimilado por países como: Áustria, Dinamarca, Polônia, Suíça e França, e o fraco, em vigência no Brasil, Finlândia, Grécia, Itália, Noruega, Espanha e Suécia. O consentimento presumido forte possibilita que o médico retire órgãos de todo e qualquer cadáver, enquanto que o fraco apenas dos que não declararam objeção a este procedimento.

A lei é cercada de muita polêmica, corolário de dilemas éticos e morais, suscitando assim manifestações da Bioética, do Bio-Direito, etc. Neste contexto arrolamos, dentre tantos outros, alguns temas também polêmicos que serão motivo de estudos futuros, v.g.: aborto, esterilização, reprodução assistida, operações transexuais, casamento entre pessoas do mesmo sexo, ... e, por fim, objeto deste ensaio, a doação de órgãos.

A polêmica, como já mencionamos acima, é grande e neste cenário se postam duas correntes. De um lado estão aqueles que entendem ser a lei um ato de violência do Estado contra o cidadão, noutro pólo, diametralmente oposto, encontramos os que vêem neste diploma legal uma oportunidade de salvar vidas que estão sendo perdidas por falta de doação de órgãos. Dada a amplitude que o tema permite-nos perquirir e colimando o fito deste ensaio, comecemos por sustentar o argumento daqueles que notoriamente são contra a lei, para num segundo momento analisarmos o pensamento daqueles que, com fulcro no diploma supra citado, preconizam a oportunidade que se descortina para salvar outras vidas. Por fim, concluiremos o presente ensaio tecendo algumas considerações acerca do que segue exposto.



Argumentos contrários à Lei

Uma vez sabido que grande parte da população, mormente as camadas mais pobres, não têm os documentos exigidos pela lei (Carteira de Identidade ou Carteira Nacional de Habilitação) para o registro de sua vontade, passariam a compor um grupo de doadores violentamente tolhidos do exercício básico de ser cidadãos. Ademais, quando extraímos do homem o direito de optar pelo que deseja, tiramos, em verdade, a sua dignidade humana, pois não teriam sequer o direito sobre seus próprios corpos após a morte, visto que seriam usurpados pelo Estado. Não é difícil imaginar os abusos que defluirão com esta população mais desassistida, uma vez entendido que não dispõem de documentos e informações suficientes para fazerem a opção. A compulsoriedade parece-nos ser uma imposição perigosa.

Não bastasse este descalabro, acrescenta-se ainda o desrespeito aos familiares do de cujus, pois mister é o consentimento da família, uma vez que a doação não pode ser uma imposição legal senão um ato de generosidade, de solidariedade, de humanidade. De sorte que deve-se sempre consultar antes a família, até porque se trata de uma questão ética e moral.

Nos dizeres do preclaro mestre Rui Barbosa, "a própria abóbada celeste não eleva os vivos ou os mortos acima do direito de ninguém", isto posto, podemos apreender que esta lei, projeto do senador Lúcio Alcântara (PSDB-CE), tornando compulsória a doação de órgãos é mais uma vez uma violência do Estado à dignidade humana, pois, o natural seria o cidadão consciente, depois de educado sobre o fato, fazer o registro em documento a seu livre talante, de doador de órgãos. Deveras, vê-se aí o aspecto autoritário da lei. Consentâneo trazer à lume o que disse o insigne jornalista Luís Nassif, "infelizmente ainda temos resquícios da formação portuguesa, de criar hábitos compulsoriamente, a golpes de lei".

No que tange ao âmbito religioso, elucidativo é o pensamento dos muçulmanos, por entenderem que cada homem nasce com o tempo de vida determinado e não é um órgão que poderá aumentar esse tempo.

Alarmante é também a situação em algumas regiões brasileiras, quiçá uma das mais pobres regiões do globo terrestre e por conseguinte composta de pessoas simples e bastante místicas. Falamos daqueles fervorosos católicos devotos do Padre Cícero, umbandistas, evangélicos, etc. dentre os quais existem pessoas que acreditam não poderem ver o paraíso se doarem seus olhos. Esta crítica faz-se sobre a seguinte indagação; Como esse povo simples vai receber uma lei dessas? O governo, se imbuído em atingir a total eficácia da lei, deveria fazer campanhas publicitárias de esclarecimento a fim de que outros meios que não o compulsório pudessem surtir melhores resultados. Com efeito, num país onde votar é compulsório, o imposto é compulsório e agora doar órgãos também, devemos, sem titubear, questionar esse ato de violência contra a dignidade da pessoa humana.

Indubitavelmente trata-se de uma lei compulsória, realmente absurda, pois a decisão deve ser nossa e não do Estado. Ora, com o advento da malfadada Lei perdemos o direito de sermos enterrados "inteiros", um afrontamento ao cidadão, sabido que ainda vivos não gozamos das ínfimas prerrogativas de cidadania, porquanto não temos escolas, saúde, segurança, nem ao menos uma verdadeira Democracia senão uma pseudo Democracia.

Não podemos olvidar o fato dramático, terminal que se encontra nosso sistema de saúde pública. A bem da verdade são, via de regra, os não detentores de economia extra a grande massa que usufrui da rede de saúde pública. Destas duas assertivas, infere-se que aqueles usuários "favorecidos" da saúde pública ficarão mais uma vez a contemplar, pois a lei de doação de órgãos vai beneficiar os que têm dominância na sociedade. Alguns devem estar se perguntando o porquê desta asserção, e pragmaticamente a justificamos com outra inequívoca assertiva da qual os leitores são testemunhas: Não se trata de pôr à prova a capacidade de formação dos profissionais da saúde senão a real incapacidade do Estado em estruturar e disponibilizar recursos materiais para a consecução do intento da Lei.

Ademais, os postos de saúde não estão preparados, às vezes, nem para um socorro médico adequado, quanto mais para um diagnóstico de morte encefálica, o que engendra uma desconfiança quanto a segurança inequívoca do atestado supra citado. Haja vista que dos 6.000 hospitais conveniados ao SUS apenas 133 estão cadastrados para esse tipo de cirurgias e só 10 têm central de transplante. A lei de doação de órgãos faz parte de um grande processo que envolve desde informação aos profissionais da área de saúde, melhoria de atendimento médico, ... e, sem dúvidas, como já tivemos oportunidade de registrar, a necessidade de investimentos à saúde. Em tempo, lembramos ainda que a CPMF teve sua gênese estribada no fito de um substancial resgate a tão propalada e necessária saúde social. Não obstante, da sua arrecadação total, 95% já estão comprometidos, o que nos permite asseverar que quase nada sobra para eventuais melhorias no sistema.

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Ainda quanto a falta de estrutura do sistema de saúde pública, tanto o Presidente da Associação Brasileira de Transplantes como o coordenador da Secretaria de Saúde de São Paulo são concordes quando propalam que a longa fila de espera de pacientes para receber um órgão se deve, sobremaneira, à carência de infra-estrutura do sistema de saúde nacional do que à ausência de doadores. Sucintamente, imputam à falta de hospitais em condições de realizar transplantes, à deficiência no sistema de UTIs adequadas para manter doadores e a existência de hospitais que não têm sequer condições para diagnosticar com segurança a morte encefálica. Em última instância, o exposto neste parágrafo vem corroborar o que redigimos no parágrafo anterior.

Definitivamente, não podemos assistir atônitos as arbitrariedades legais do Estado, muito menos sermos silentes quanto a nossa indignação ante um autoritarismo legal. Com efeito, não constitui-se uma Democracia nem muito menos um Estado Democrático de Direito, quando este mesmo Estado, de forma legal, abusa das suas prerrogativas negando outro ponto basilar de uma Lei, que é o gozo da sua legitimidade. É inconcebível que um Estado se aproprie de nosso corpo por uma decisão unilateral. Gozaria de maior legitimidade se o Estado ao invés de ferir a liberdade do Homem, promovesse a formação de uma consciência do cidadão alicerçada na educação, respeito ao livre arbítrio, a solidariedade, o amor, a ética, a moral, etc.



Argumentos favoráveis à Lei

Noutro sentido, diametralmente oposto, podemos sustentar que muitas vidas poderiam ser salvas e estão sendo perdidas por falta de doação de órgãos. A fila de espera é enorme, e não pára de crescer. Não podemos olvidar que qualquer um de nós, um ente familiar ou pessoas que temos na mais alta estima, poderão um dia, quiçá para sobreviver, necessitar de um transplante. No Brasil esta fila ultrapassa a cifra de 41.000 pessoas, nos Estados Unidos este número suplanta a casa dos 45.000. No ano anterior, 3.000 americanos morreram à espera de um transplante. No Brasil, são 15.000 doentes aguardando um rim novo e mais de 25.000 pelo transplante de córnea.

Já, de pronto, tratemos de aclarar dois pontos capitais da nova lei que têm sido alvo de muitas críticas infundadas e capciosas, v.g.: Primeiramente, a remoção de órgãos de pessoa juridicamente incapaz (arts. 5º. e 6º. do Código Civil) tão-só poderá ser feita se autorizada pelos pais ou responsáveis. Por segundo, os indigentes bem como aqueles que não dispõe de quaisquer dos dois documentos exigidos pela lei, não poderão ter seus órgãos retirados. De sorte que , como é evidente, não encontra fulcro legal e ético as palavras daqueles que propagam ser as camadas pobres tolhidas de optarem pela não doação, ou mesmo de exercer sua cidadania, enfim, que seus corpos post mortem seriam usurpados pelo Estado. Esta é uma retórica falaciosa

Podemos enxergar, andar, correr, enfim, temos uma vida normal com todos nossos órgãos funcionando a contento, então, deixemos esse costume tão arraigado de criticar por criticar. A Lei, no seu bojo, suscita em cada um de nós uma reflexão, um desejo de ver o próximo fazer tudo aquilo que já fez um dia na sua vida, ou quiçá ainda sonha em fazer pela primeira vez.

As pessoas propalam ser contra o autoritarismo da lei, por achá-la compulsória, um atentado à dignidade humana, uma afronta do Estado contra o cidadão, ora, esquecem-se que o humanismo da doação deve sobrepujar qualquer autoritarismo. Neste sentido, cabe elucidar que a Lei não nos parece despótica até porque ela permite que as pessoas se manifestem nos dois sentidos; doador e não doador. Com o advento da Lei 9.434/97, o Brasil passou do modelo de consentimento para o de oposição, ou seja, se antes deveria o cidadão manifestar explicitamente seu desejo de doador, agora ele já o é tacitamente e caso não queira basta que registre na sua Carteira de Identidade Civil ou Carteira Nacional de Habilitação sua oposição. Ademais, esta Lei não fere, em absoluto, qualquer direito humano, até mesmo por que, qualquer cidadão que não concordar pode determinar previamente sua recusa à doação, além do que pode reformular, a qualquer tempo, a sua manifestação de vontade.

Como pudemos demonstrar, o cidadão não teve seu direito de liberdade tolhido e sim o manteve como sempre, com a diferença de que a partir de então terá de exteriorizar o oposto do que fazia. Em última instância, de forma conceitual, o consentimento presumido obriga apenas o registro do "não doador", presumindo-se que todos os demais são doadores em potencial.

O Brasil, país que adota o consentimento presumido fraco, possibilita que o médico retire os órgãos somente daqueles que não declararem objeção a este procedimento. Neste sentido, é importante que a família busque respeitar os desejos expressos pelo indivíduo que faleceu. Outro ponto capital desta Lei é a desburocratização de doar órgãos, além do que muitas pessoas encontram na possibilidade de salvar vidas, através da doação, uma janela de esperança e consolo pela perda irreparável do ente querido.

No âmbito religioso, católicos, budistas e anglicanos têm se manifestados favoráveis a polêmica Lei, enquanto evangélicos como os batistas e presbiterianos consideram o assunto "pessoal". Testemunhas de Jeová, contrários à transfusão de sangue, não proíbem a doação ou receptação de órgãos. O judaísmo considera o ato de doar órgãos como o de salvar vidas. Com efeito, as três maiores religiões do mundo: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, nenhuma delas é contra a doação de órgãos para salvar vidas. Nenhuma delas proíbe em seus respectivos direitos canônicos a doação de órgãos.

Muito se fala do comércio, ou melhor, do tráfico de órgãos. Definitivamente temos que entender, e não é difícil, muito pelo contrário, que como em todo comércio o desequilíbrio entre a oferta e demanda gera distorções que culmina em todo tipo de delito envolvendo aquela necessidade. É notório a extrema dificuldade hoje, no Brasil, de conseguirmos órgãos para transplantes. Como corolário desse desequilíbrio entre os pólos doadores e receptores, acaba por engendrar uma estrutura de comercialização, contrabando, tráfico ou seja lá o que mais de comércio clandestino em função dessa dificuldade. De sorte que, indubitavelmente, qualquer medida que venha aumentar a oferta de órgãos para transplante é salutar.

Muitos críticos da Lei ancoram suas palavras em argumentos infundados de que se poderia retirar órgãos de um paciente ainda vivo, interpretação feita sobre a prerrogativa do consentimento presumido. Isto, certamente, acaba por atemorizar as pessoas e por conseguinte torna-se um fator possível de redução de doadores.

Estes argumentos, além de infundados são de uma infelicidade monumental. Para elucidar e por ilação derrubaremos este iníquo argumento. Inicialmente, começaríamos por asseverar que o diagnóstico de morte encefálica é absolutamente seguro. A morte cerebral é uma só e ninguém voltou dela. Para diagnosticar a morte cerebral, o médico deve demonstrar de maneira inequívoca que houve lesão maciça de todo o encéfalo e que não há qualquer possibilidade de reversão. Com a morte cerebral, o cérebro não executa mais qualquer função. O paciente em morte cerebral não exibe qualquer movimento ou respostas aos estímulos (dor, ruído, estímulo luminoso). O médico também analisa em detalhes todas as funções reflexas do chamado tronco cerebral, que é responsável pelo controle da respiração, das pupilas e dos movimentos oculares, da sensibilidade e músculos do rosto, dos reflexos de vômito e tosse. A fim de consignar de modo inexorável o atinente ao diagnóstico de morte cerebral, enumeramos três exames complementares que são: o eletroencefalograma, a angiografia cerebral (demonstra a paralisação completa da circulação do cérebro, o que significa a destruição irreversível do tecido nervoso) e ainda o doppler transcraniano. O diagnóstico de morte encefálica é um ponto relevante quanto a mudança do critério, pois antes era o cardiorrespiratório.

Importante salientarmos que, no Brasil, estes exames são obrigatórios por Lei em todo o caso de doação para transplante, mormente pelo fato de que não é assim em todos os países do mundo.

Consentâneo aclarar que os potenciais doadores não se confundem com os doares de fato, pois para o aproveitamento dos órgãos para transplante, o doador deve ter no máximo 55 anos de idade, ter sofrido de morte cerebral, ou seja, lesão irreversível do cérebro, geralmente causada por trauma na cabeça; atropelamento, queda, etc.

Quanto aos inúmeros questionamentos éticos que margeiam a Lei de transplante de órgãos, o Prof. José Roberto Goldim se não anula ao menos desmistifica a polêmica toda, uma vez que justifica a origem do material a ser transplantado. Numa brevíssima digressão, trataremos de trazer à lume três distintas origens de órgãos, v.g.: de outras espécies animais, denominado de xenotransplante, ou seja; é a denominação dada aos procedimentos que utilizam órgãos ou tecidos de outras espécies animais para substituir os de um ser humano. Este procedimento, embora cientificamente justificável, do ponto de vista ético existe a questão de que o benefício do receptor (sobrevida do ser humano) se dá em detrimento do doador (morte do animal). Devemos acrescentar a isso o impacto psicológico de possuir um órgão proveniente de um animal, dentro de seu corpo. De seres humanos vivos, denominado alotransplante intervivos. Embora muito utilizada e útil é também igualmente questionável sob o prisma ético. Neste tipo de doação faz-se mister a necessidade de uma relação de parentesco entre o doador e o receptor. Por último, a utilização de órgãos de doadores cadáveres tem sido a solução mais promissora para o problema da demanda excessiva. Nesta modalidade de doação muda-se a discussão da origem para a forma de obtenção: doação voluntária, consentimento presumido, manifestação compulsória ou abordagem de mercado. Quanto a esta última forma de obtenção, defendida pelo eminente Prof. Gary S. Becker, Prêmio Nobel em Economia, é a mais polêmica de todas. Subdivide-se em duas alternativas, uma mais agressiva permitindo a venda de órgãos e outra mais tênue que possibilita benefícios ou incentivos fiscais à família do doador. Fala-se aí da possibilidade do futuro doador, ainda em vida, estabelecer uma relação comercial, mediante contrato, que seus órgãos passariam a ser propriedade de outra pessoa após a sua morte.

Do enunciado acima, cabe ressaltar que é defeso pela Lei 9.434/97, em seu artigo 15, onde estatui pena de reclusão de 3 a 8 anos, e multa de 200 a 360 dias-multa para quem comprar ou vender tecidos, órgãos ou parte do corpo humano. Completando, em seu parágrafo único do aludido artigo, a Lei preceitua que incorrem na mesma pena aqueles que promovam, intermedeiem, facilitem ou aufiram quaisquer vantagens com a transação. Destarte, nesta direção, creditamos mais um ponto para a Lei.



Considerações finais

Como considerações finais, volvemos nossa atenção para o que diz a Declaração de Veneza sobre Doença Terminal - World Medical Association (1983). "O médico pode, quando o paciente não reverter o processo final de cessação de funções vitais, aplicar tais meios artificiais quando os mesmos forem necessários para manter ativos órgãos a serem utilizados para transplantes (...) Estes meios artificias não deverão ser pagos pelo doador ou seus parentes (...) Os médicos que tratam do doador devem ser totalmente independentes daqueles que tratam o paciente receptor e do receptor mesmo". Acrescentemos a isto o art. 3º. da resolução nº. 1.480 de 8 de agosto de 1997 do CFM quanto aos critérios para a caracterização de morte encefálica; "A morte encefálica deverá ser conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida". Cremos que basta o que acima expusemos para que possamos inferir a função essencial da medicina, ou seja; A salvaguarda da vida constitui o substrato da ciência médica que exterioriza-se pelo ofício do médico. Decerto, conteste é a assertiva de que a manutenção da vida significa um manancial inexaurível de esforços para mantê-la e que seguramente não configura-se uma responsabilidade adstrita ao artífice da saúde, mas de competência de toda a sociedade.

Também achamos oportuno inscrever uma proposta plausível, lógica, e de grande amplitude, que constava do projeto de lei, que é a utilização de ocasiões onde toda a população tenha de ser mobilizada (voto) ou quando o indivíduo tenha que estabelecer um contato com órgãos governamentais a fim de que, neste momento, todas as pessoas possam optar formalmente por doar ou não seus órgãos.

Apropriado é esclarecer que praticamente tudo pode ser aproveitado após a morte cerebral, desde coração, fígado, pulmões, rins, pâncreas, ossos, pele e as artérias. A título de curiosidade científica é interessante sabermos que o fígado, rins, pulmões e pâncreas devem ser retirados enquanto o coração ainda está batendo; os ossos, córneas e pele resistem até seis horas depois que o coração cessa suas atividades.

A Lei, no seu bojo, atinge só os maiores de 18 anos que não se manifestem contrários em carteira de identidade ou motorista. A vontade expressa em documento mais recente é a que vale.

Em tempo cumpre-nos destacar que, conforme prescreve o decreto 2.268 de 30 de junho de 1997, o prazo para incluir a opção de não doador nos documentos já citados expira em 31 de dezembro. Neste sentido, quem não manifestar o contrário presumir-se-á doador.

Indubitavelmente a vida é o sumo bem, mais sublime que aquele preconizado por Aristóteles, a felicidade, pois esta não subsiste sem aquela que se encontra sob a égide de todos os direitos, sobretudo do direito à vida.

Acreditamos ser imprescindível uma campanha de esclarecimento à Nação, e por esta razão ratificamos que; Para que a lei venha lograr seu escopo, urge uma campanha publicitária do porte das engendradas para a conscientização do uso da "camisinha" bem como o combate ao uso de drogas, caso contrário a lei encontrará óbices para sua plena eficácia.

Se a lei apresenta imperfeições, não obstante constitui uma oportunidade ímpar de evolução social que não podemos ficar alheios, pois, muitos avanços sociais vêm a reboque de leis. Não sejamos míopes ante a nova lei. Mais do que enxergar seus problemas, compete-nos aperfeiçoá-la a fim de que possamos todos dela fruir. Evidentemente, a sociedade deve não só respaldar a nova lei, deve mais, deve cobrar de seus deputados e senadores o aperfeiçoamento das leis e da saúde da Nação.

É bem verdade que o Direito reflete a mutabilidade social, ou melhor, a evolução social, todavia, contrário sensu, algumas evoluções sociais defluem de leis. Para tanto basta que volvamos nossa atenção para exemplos fáticos, v.g.: Quanto ao cinto de segurança, notório era que seu uso reduzia consideravelmente não só o número de mortes como também lesões graves em acidentes de trânsito, todavia, foi necessário que uma lei federal exigisse seu uso, sob pena de pesadas multas. Outros exemplos poderiam ser trazidos à tona, v.g.: O limite máximo de velocidade permitido nas estradas, o fato de dirigir alcoolizado ou ainda, dentre tantos outros, as normas de segurança no trabalho. Enfim, como pudemos sucintamente expor, alguns avanços sociais só se consegue à força de lei, entretanto, só a lei não basta, é preciso mais, e este mais depende da sociedades exercer a sua cidadania, ou será que os americanos são ordeiros e obedientes à lei porque sejam mais educados que nós? Definitivamente não. Lá, a justiça faz cumprir o que a lei estatui e o faz pela força da sociedade. Deste modo, e somente assim, podemos dizer que o Direito reflete os anseios da sociedade.

Concluímos, pois, este ensaio, com a seguinte expectativa: Queira Deus que nós, nossos familiares, amigos e tantos outros desconhecidos, não tenham a necessidade de um transplante. Não obstante, qualquer um de nós, um dia, podemos estar travando uma árdua luta entre a vida e a morte, onde o sobreviver dependerá da consciência daqueles que manifestarão ou não a sua oposição à grandeza de um ato meritório que é o de salvar não só a vida em questão, mas certamente de todos aqueles que perdem um pedaço de si quando um ente querido fenece.

Sobre o autor
Augusto Cesar Ramos

advogado, especialista em Direito e Processo do Trabalho pelo CESUSC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Augusto Cesar. Remoção de órgãos: um ensaio sobre a Lei nº 9.434/97. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 31, 1 mai. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1846. Acesso em: 22 dez. 2024.

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