Em recente decisão em grau de recurso no Rio Grande do Sul, a 3ª Turma Recursal Cível, com a inovação que é característica marcante do Judiciário daquele estado, ratificou um posicionamento quanto às vultosas astreintes impostas às empresas de grande porte, especialmente no mercado de consumo de massa: R$ 98.184,09 por descumprimento de decisão judicial, devendo ficar a parte autora com R$ 5.100,00 (valor da condenação), e o restante destinado ao Fundo Estadual de Defesa do Consumidor (DECON).
A legislação em vigor não esclarece pontos crucias quanto à regulamentação das astreintes. Os arts. 287 e 461, §§ 2.º a 6.º, CPC, não respondem expressamente um dos questionamentos mais importantes do instituto, qual seja o destinatário do crédito resultante da incidência das astreintes.
Essa espécie de multa possui a finalidade precípua de impor a máxima satisfação da pretensão buscada pelo cidadão que recorre ao Estado para solucionar um conflito, e assim manter a credibilidade do Poder Judiciário. O objetivo do Estado é, ou pelo menos deveria ser, a utilização dessa multa periódica para garantir a efetividade de suas decisões perante a sociedade.
Mas na prática o que se vê é uma ampla utilização da multa periódica como mecanismo "coercitivo", inclusive em ações de massa, trazendo insegurança jurídica na utilização da medida, especialmente no que toca a previsibilidade6 das decisões judiciais destituídas de um entendimento pacífico.
Assim, com a finalidade de induzir ao cumprimento de uma norma ou a uma conduta, o instituto das astreintes não funciona como uma pena, posto que não substitui o cumprimento da obrigação principal, mas um meio para compelir o devedor ao cumprimento das obrigações de fazer e não fazer.
De caráter eminentemente processual, alguns doutrinadores como Barbosa Moreira defendem que as astreintes deveriam ser destinadas aos cofres públicos "já que ela não tem caráter ressarcitório, mas visa assegurar a eficácia prática da condenação, constante de ato judicial, não parece razoável que o produto da aplicação seja entregue ao credor, em vez de ser recolhido aos cofres públicos" [01].
Entretanto, no Brasil a questão ainda não foi decidida no âmbito legislativo. Há uma lacuna quanto ao destino da multa por descumprimento da ordem judicial. O artigo 461 do CPC apenas diz que a imposição da multa pode vir a requerimento da parte ou de ofício e que "a indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa" (art. 287).
Ocorre que para que a verba seja destinada ao Estado, como entendeu a Turma Recursal Cível do Rio Grande do Sul, seria indispensável expressa menção legislativa a esse respeito. Ante a inexistência de tal norma, a legislação pátria não permite outra opção a não ser a incorporação dos valores ao patrimônio do credor, o que se faz, inclusive, com suporte analógico no que dispõe o art. 601, CPC:
"Art. 601. Nos casos previstos no artigo anterior [atos atentatórios à dignidade da justiça], o devedor incidirá em multa fixada pelo juiz, em montante não superior a vinte por cento do valor atualizado do débito em execução, sem prejuízo de outras sanções de natureza processual ou material, multa essa que reverterá em proveito do credor, exigível na própria execução."
A função das astreintes é vencer a resistência do devedor ao cumprimento da obrigação e deve incidir a partir da ciência do obrigado e da sua recalcitrância. Não obstante, pode-se dizer que é praticamente pacífico o entendimento jurisprudencial e doutrinário de que a titularidade do crédito é do autor. Em ações de massa, consumidores individuais litigam contra grandes corporações, e o Juiz se vê na posição de ter que fixar multa capaz de intimidar o réu, levando em consideração sua capacidade econômica e, ao mesmo tempo, não proporcionar o enriquecimento injusto ou desproporcional do autor.
Assim, a adoção da titularidade do Estado como destinatário das astreintes não pode ser isenta de críticas. A vedação ao enriquecimento ilícito do autor é um limitador essencial para que o Magistrado não aplique multas exorbitantes, levando em consideração apenas o poderio econômico das empresas litigantes. Caso o entendimento fosse pela destinação exclusiva ou compartilhada a um fundo público ou de natureza diversa, um precedente arriscado estaria sendo criado, qual seja a falta de parâmetro para o arbitramento das astreintes.
Essa reversão pura e simples do autor para um fundo público não só não resolveria o problema como poderia afetar a própria eficácia das astreintes, especialmente por dois motivos evidentes: a saber, a aptidão da multa de pressionar psicologicamente o réu será tanto maior quanto for a perspectiva de que o crédito dela derivado venha a ser rápida e rigorosamente executado. Sem dúvida, não há melhor maneira de assegurar a severidade da execução do que atribuindo o concreto interessena sua instauração e desenvolvimento ao próprio autor – mediante a destinação do resultado nela obtido.
Em segundo, sendo o crédito da multa titularizado pelo autor, este pode utilizá-lo em eventual composição com o contendor. Já se o beneficiário da multa fosse o Estado ou um fundo público, a disponibilidade de tal crédito pelo autor, para fins de transação, seria, no mínimo, objeto de mais uma polêmica discussão.
Portanto, evidente está a necessária manutenção da sistemática atual, ainda que reconhecendo sua dificuldade em resolver a antinomia entre o princípio da proibição de enriquecimento injusto e o princípio da efetividade do processo. Depender da iniciativa do Estado para concretização da finalidade da multa é mais uma atribuição que o ente estatal não se mostra apto a titularizar.
A Comissão responsável pela elaboração do novo Código de Processo Civil, todavia, optou por adotar uma sistemática intermediária para resolver o problema acima exposto, sistemática essa possivelmente inspirada no Direito português. A proposta é a de que, até o valor da "obrigação que é objeto da ação", os valores resultantes da incidência da multa devam reverter ao autor. Ultrapassado tal valor, a titularidade do excedente passaria ao Estado.
A maior preocupação a que deveria se ater o Poder Judiciário brasileiro, ao invés de modificar o destinatário das astreintes sem garantir a efetividade da medida coercitiva da referida multa, seria o aperfeiçoamento da técnica de tutela a serviço do Juiz, visando a dosar as astreintesde forma a minimizarseus efeitos colaterais, dentre eles o enriquecimento injusto do demandante.
Notas
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BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo
processo civil brasileiro. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. CALMON
DE PASSOS.