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Cárcere privado praticado por indígenas: rejeição da denúncia por falta de prévio estudo antropológico

Agenda 04/03/2011 às 18:10

Juiz federal rejeitou denúncia ofertada contra dois indígenas por crime de cárcere privado, em razão da ausência de prévio estudo antropológico para aferição da real possibilidade de os indiciados entenderem o caráter ilícito da conduta perpetrada, e da razoabilidade de exigir que procedessem de forma diversa.

Autos nº 0005381-95.2008.403.6108

ST-D

Vistos.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL ofertou denúncia em desfavor dos indígenas [INDÍGENA 1] e [INDÍGENA 2], imputando a eles a prática de condutas amoldadas ao tipo do art. 148, § 2º, c.c. os arts. 29 e 70, todos do Código Penal, em razão dos fatos que foram descritos na forma que segue:

"(...) no período compreendido entre a noite do dia 20 até às 19 horas do dia 22 de maio de 2008, [INDÍGENA 1] (cacique) e [INDÍGENA 2] (vereador de Avaí/SP), índios da reserva de Araribá em Avaí/SP, que lideravam uma manifestação armada (com armas brancas de origem indígena), privaram da liberdade três servidores ([SERVIDOR 1], [SERVIDOR 2] e [SERVIDOR 3]) da então Administração Regional da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), mantendo-os em cárcere privado na citada terra indígena, fazendo-os reféns contra a vontade deles, e lhes causando grave sofrimento moral em razão dos maus tratos e da natureza da detenção.

A manifestação tinha por escopo a nomeação de um representante indígena para o cargo de Administrador Regional da FUNAI em Bauru, bem como a manutenção da sede regional nesta cidade, tendo em vista a intenção da direção nacional da FUNAI em Brasília de transferi-la para o litoral do estado de São Paulo.

Segundo ficou apurado, a manifestação teve início por volta das 9 horas do dia 20/05/2008, momento em que os índios reivindicantes realizaram o bloqueio do trânsito dos dois sentidos da Rodovia Comandante João Ribeiro de Barros (rodovia Bauru-Marília), altura do Km 381, utilizando-se de um trator com reboque e de troncos de árvores (fl. 29). No local, compareceu a polícia federal, a polícia rodoviária, a polícia militar e servidores da FUNAI de Bauru e, notadamente, o diálogo travado entre os líderes do movimento – os denunciados – e o servidor [SERVIDOR 1] resultou na liberação da pista.

As reivindicações continuaram na reserva Araribá, nas aldeias Tereguá e Kopenoty, e os servidores da FUNAI [SERVIDOR 1], [SERVIDOR 2] e [SERVIDOR 3] para lá se deslocaram para intermediar um acordo com os denunciados.

Contudo, por volta das 15 horas, ao lerem um fax emitido pela FUNAI de Brasília, os índios ficaram descontentes e os denunciados solicitaram que os três intermediadores permanecessem no local até que viesse, por parte da presidência da FUNAI, uma resposta adequada às exigências.

A partir de então, diante da demora da resposta da direção nacional da Funai, as vítimas foram afastadas dos policiais militares presentes e permaneceram encarceradas por aproximadamente 2 (dois) dias. Segundo relataram, foram mantidas contra as suas vontades, limitadas a um quiosque, sem tomar banho, sob forte pressão psicológica e emocional, e com ameaças às suas integridades físicas (fls. 23/24, 25 e 26). [SERVIDOR 1] descreveu que ‘em certa ocasião, quando a imprensa compareceu ao local, o Cacique [INDÍGENA 1] chegou a dar um abraço forte contra as costas do declarante, munido de um pedaço de pau, arrastando-o até próximo das câmeras’ (fl. 24).

Delegados e agentes da Polícia Federal de Bauru estiveram no local e realizaram relatórios acerca do que viram. Em resumo, informaram sobre o deslocamento, inicialmente pacífico, de três funcionários da FUNAI para a reserva Araribá, a fim de intermediarem as negociações. Entretanto, esclareceram que [INDÍGENA 1] e [INDÍGENA 2] , que lideravam as manifestações, passaram a reter as vítimas naquele local, cerceando o direito à liberdade delas por dois dias (fls. 09/14).

A manifestação terminou por volta das 19h do dia 22/05/2008, quando o Presidente da FUNAI encaminhou a Carta nº 045/PRES/FUNAI/2008, datada daquele dia, autorizando o deslocamento de 12 lideranças indígenas dessa região para Brasília, para tratar de assuntos relacionados com a Unidade Regional da FUNAI em Bauru (fls. 05 e 06).

Interrogado, [INDÍGENA 1] informou ser o único líder da manifestação ocorrida entre os dias 20 a 22/05/2008. Alegou que os servidores da FUNAI estavam apenas colaborando com os índios, na tentativa de chamar a atenção da administração da FUNAI. Porém, confirmou que, no terceiro dia, esses funcionários desejaram se retirar, mas foram impedidos. Acrescentou que iniciaram um ritual conhecido como ‘dança da guerra’, na qual, colocaram [SERVIDOR 1] no centro do movimento e estavam munidos de instrumentos artesanais (arco-flecha, burdunas e lanças), pois pretendias reivindicar a atenção das autoridades competentes (fls. 37/39).

[INDÍGENA 2], por sua vez, informou que acompanhou a manifestação, pois fazia os registros fotográficos, porém, atribuiu a liderança exclusivamente a [INDÍGENA 1] Quanto ao cárcere das vítimas, corroborou o interrogatório do codenunciado (fls. 45/46).

A autoria é certa quanto aos dois denunciados. Apesar de dizerem nos interrogatórios que a liderança do movimento só era exercida por [INDÍGENA 1], é notória a participação de [INDÍGENA 2], que se extrai dos depoimentos das vítimas (fls. 23/26), de relatório policial (fls. 13/14) e do Boletim de Ocorrência da fl. 29.

Além da resistência física, de não permitir que os reféns saíssem da aldeia, os denunciados ainda coagiam aquelas pessoas, mediante uso de armas de origem indígenas. Embora não tenha ocorrido violência física, era evidente a violência moral e psicológica pela ostentação das armas, pelas ameaças veladas e até mesmo pelas explícitas menções à possibilidade de ocorrer algo mais grave caso as reivindicações não fosse imediatamente atendidas pela direção da FUNAI em Brasília (‘estavam ali para morrer’ – fl. 09; ‘dispostos a derramar sangue’ – fl. 14).

Assim agindo, os denunciados praticaram o crime de cárcere privado, em concurso formal (3 vezes), contra as vítimas [SERVIDOR 1] , [SERVIDOR 2] e [SERVIDOR 3], servidores da FUNAI. (...)." (sic fls. 194Vº/195Vº).

De início, registro entender patenteada a competência da Justiça Federal para a solução da questão posta nestes, em razão das condutas terem sido perpetradas contra servidores públicos federais em serviço, encontrando-se a espécie amoldada ao entendimento cristalizado na Súmula 147/STJ [01] e ao precedente do Egrégio Superior Tribunal de Justiça assim ementado:

"PENAL. CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. CRIME DE SEQÜESTRO E CÁRCERE PRIVADO PRATICADO POR INDÍGENA. CRIME CONTRA SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. CONFIGURAÇÃO DE INTERESSE ESPECÍFICO DA UNIÃO. SÚMULA 147/STJ. APLICAÇÃO. DELITOS CONEXOS DE COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. SÚMULA 122/STJ. INCIDÊNCIA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. ANULAÇÃO DOS ATOS DECISÓRIOS E REMESSA DOS AUTOS AO JUÍZO SUSCITANT[SERVIDOR 2]

1. Os crimes praticados contra servidores públicos federais em razão da função, nos termos constitucionais, são de interesse específico da União.

2. Aplica-se a Súmula 147/STJ quando o crime for praticado contra servidor público federal, no exercício da função.

3. ‘Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, a, do Código de Processo Penal’ (Súmula 122/STJ).

4. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Federal da 1ª Vara de Ponta Porã – SJ/MS, anulando-se todos os atos decisórios proferidos pelo Juízo incompetente, com a remessa dos autos ao Juízo suscitante, consoante art. 567 do Código de Processo Penal." (CC 94183/MS, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Terceira Seção, julgado em 08.10.2008, DJe 28.10.2008)

Da análise dos elementos colhidos no bojo do inquérito que embasou a denúncia em parte reproduzida, reputo de todo inviabilizada a instauração de ação penal, à míngua de condição de procedibilidade atinente à prova do efetivo conhecimento por parte dos índios indiciados do caráter ilícito das ações que praticaram, o que somente seria possível aferir mediante a realização de perícia antropológica.

Observo que ao oferecer a denúncia em apreço, na cota de fls. 178/178vº o Ministério Público Federal registrou entender desnecessário o laudo antropológico previsto no art. 4º do Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/1973), ao fundamento de que:

"(...) as vítimas e os denunciados foram uníssonos em afirmar que [INDÍGENA 1] é pessoa integrada à comunhão nacional, e que se aculturou aos costumes dos não silvícolas. Sabe ler e escrever fluentemente o idioma português, possui habilitação para dirigir veículos automotores e conta bancária, é proprietário de telefone celular, foi filiado a partido político por 11 (onze) anos, já se candidatou ao cargo de vereador no município de Avaí e, atualmente, foi nomeado para ocupar o cargo em comissão de Chefe da Coordenação Técnica Local da FUNAI em Bauru (fl. 126). O mesmo se diga para [INDÍGENA 2] , que é igualmente aculturado e titular de cargo eletivo." (sic fl. 178vº).

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Com o devido respeito, compreendo que os argumentos expostos para demonstrar a desnecessidade da realização de estudo antropológico não podem prevalecer, uma vez que fundados na superada visão etnocêntrica e integracionista, que tratava os índios como categoria fadada ao desaparecimento.

Tal referencial não pode subsistir, porquanto não condizente com o disposto no art. 231 da Constituição que, ao reconhecer a diversidade étnica e cultural do Brasil, impõe dever de respeito à cultura, aos valores determinadores do comportamento do grupo minoritário [02].

Em razão da diversidade cultural assegurada pela Constituição, compreendo imprescindível a realização de perícia antropológica para precisa apuração de os indígenas que realizaram as condutas descritas na denúncia terem, de forma efetiva, conhecimento do caráter ilícito e ilegítimo das ações perpetradas, providência essa que não foi adotada.

As provas colhidas no inquérito revelam que as condutas descritas na inicial, praticadas por líderes indígenas desta região, foram motivadas em razão do não atendimento pela FUNAI de reivindicações relacionadas com relação a mudança da sede da mesma autarquia de Bauru-SP para o litoral paulista (Município de Itanhaém).

Demonstram que os atos foram praticados como meio de chamar a atenção das autoridades acerca dos anseios da população indígena local. O relatório de fls. 13/14 elaborado pela autoridade policial que compareceu ao local na data dos fatos torna certa essa inferência. Confira-se:

"(...)

No dia 20 de Maio de 2008, por solicitação do Chefe desta Delegacia de Polícia Federal, este servidor, juntamente com o APF Paulo Ariovaldo Oréfice, compareceu no trevo de acesso a Reserva Indígena Araribá, localizado na rodovia SP 294, Comandante João Ribeiro de Barros, KM-381+700 Município de Duartina/SP.

Ao chegar ao local, por volta das 12:30 horas, mantivemos contato com o Major da Polícia Militar, Sr. Helio Verza, o qual nos informou sobre a manifestação indígena, que através de um trator e troncos de árvores efetuaram o bloqueio da Rodovia Comandante João Ribeiro de Barros, mas que, em virtude do comparecimento de um funcionário da FUNAI, a manifestação da rodovia deu se por encerrada e se concentraram na Aldeia Teregua, distante a cerca de 03 (três) quilômetros dali, pertencente ao município de Avaí/SP.

Em seguida, rumamos para a Aldeia Tereguá, onde observamos a presença de aproximadamente 80 (oitenta) indígenas, alguns deles portando armas artesanais e em contato com o Cacique [INDÍGENA 1] e [INDÍGENA 2] , este último indígena e vereador pela cidade de Avaí/SP pelo PTB/SP, fomos informados que pleiteavam a manutenção da Sede Regional em Bauru, vez que tinham ciência de que a Presidência da FUNAI estaria efetuando a mudança da sede para o litoral do Estado e que estariam no aguardo de um documento prometido pela Presidência da FUNAI, acerca de suas reivindicações e que caso não ocorresse o encaminhamento de tal documento, estariam dispostos a nova manifestação de proporção ainda maior.(...)" (sic fl. 14 – grifei)

Merece atenção o depoimento prestado pela vítima [SERVIDOR 1] , em específico o trecho que segue:

"(...)

Que no dia 20/05/2008, sob a liderança do cacique [INDÍGENA 1] ‘Lulu’ e do vereador da cidade de Avaí, [INDÍGENA 2] , índios da aldeia Tereguá e Kopenoti, situadas na reserva indígena Araribá, bloquearam a rodovia Bauru – Marília em manifestação contra a decisão da direção central da Funai de transferir a administração regional, atualmente situada em Bauru, para a cidade de Itanhaém, no litoral paulista; QUE, o declarante se dirigiu ao local da manifestação para intermediar um acordo com os manifestantes, a pedido da direção central (...)" (sic fl. 23 - destaquei).

Os elementos constantes dos autos evidenciam que todo o ocorrido se deu em razão da necessidade dos índios serem ouvidos, de receberem a devida atenção as suas reivindicações, o que de rotina não é verificado tanto com relação aos índios de Avaí-SP [03], quanto com relação aos indígenas de todo o Brasil [04].

A contexto, destaco excerto do depoimento prestado por [INDÍGENA 1] na oportunidade em que foi interrogado pela autoridade policial:

"(...) o interrogado solicitou a colaboração dos servidores para que pudessem chamar a atenção da Direção Central da Funai, em Brasília/DF, a fim de que houvesse o atendimento do pleito dos manifestantes; QUE a manifestação tinha por objetivo impedir a mudança da Sede da Funai em Bauru/SP para o litoral paulista, bem como que, no caso de mudança da Sede, que então fosse nomeado um representante indígena para a Administração; QUE deseja esclarecer, também, o movimento foi desencadeado pelo fato dos indígenas estarem insatisfeitos com a Administração da Funai no Estado de São Paulo, uma vez que, há anos, se julgam ‘manipulados’ pela Administração, a qual vem prometendo resolver a situação dos índios da região, mas não tem cumprido suas promessas (...)" (fl. 38 – grifos nossos).

Fato é que a mera circunstância de os líderes indígenas denunciados adotarem práticas próprias da cultura hegemônica envolvente (uso de telefone celular, de veículos motorizados e outros), por si só, não é suficiente para o alcance da conclusão de que tinham conhecimento do caráter ilícito das condutas.

Impositiva a consideração acerca de, na condição de líderes de grupo minoritário, consoante os hábitos das suas etnias [05], de suas singulares culturas, ser razoável exigir que os indiciados agissem de forma diversa [06]. E tais elementos somente poderiam ser apurados mediante a prévia realização de estudo antropológico.

Nesse passo, emerge oportuna a transcrição das ponderações tecidas por Luiz Fernando Villares [07], contidas na obra "Direito e Povos Indígenas", uma vez que amoldadas com perfeição ao quadro constante nestes autos:

"(...)

Não se afigura justo que o índio seja considerado um cidadão qualquer, notadamente pelas peculiaridades culturais a que está submetido e que lhe garantem uma proteção constitucional e legal. As ações praticadas por indígenas devem ser questionadas frente ao condicionamento cultural que o impossibilita de compreender a norma penal e seu alcanc[Servidor 2] Ou seja, uma conduta que é penalmente reprovada, através da figura do crime e de sua punição, pode ser interiorizada na cultura indígena como ato obrigatório ou mesmo um ato lícito, que reside na esfera da liberdade individual, ou mesmo um ato moralmente tolerado.

(...)

A par da falta de medidas legislativas, o Direito Penal, ao se deparar com um caso concreto que envolva índio como réu, imputando a ele um fato criminoso, pode não responsabilizá-lo criminalment[Servidor 2] A sua inculpabilidade deve residir na verificação concreta da internalização dos valores tutelados pela norma penal supostamente desrespeitada e, mais, na verificação da intenção deliberada de ferir o valor protegido pela norma. Assim, é necessário que o índio tenha plena consciência do caráter ilícito de sua ação e que a reprobabilidade penal também a ele atinja, aliada a sua intenção deliberada de atentar contra a norma.

(...)

Evidente que o erro de proibição deverá ser analisado no caso concreto. O juiz, para utilizar o erro de proibição no julgamento do crime cometido, não deverá pesquisar se o índio é capaz ou incapaz, mas se a ação praticada é consentânea com os valores culturais caros ao seu povo e se o índio tinha conhecimento do sistema penal brasileiro e de sua aplicação. Se o índio tinha conhecimento do sistema penal, mas não pôde, pelo condicionamento cultural, entender ou se comportar de modo diferente, a aplicação da pena não se deve verificar. O julgador deverá utilizar peritos na cultura indígena, na verificação da adequabilidade de sua conduta aos valores culturais de seu povo, a fim de realizar um laudo antropológico-cultural, que analisará a cultura do povo indígena a que pertence e auferirá a adequabilidade de sua conduta.

O laudo antropológico-cultural deveria ser obrigatório, pois ele é, antes de tudo, instrumento de justiça. Só ele poderá analisar no caso concreto a inserção de um valor cultural numa pessoa criada em uma sociedade diversa. (...) A presunção geral e não a análise do caso concreto priva o Direito Penal de ser instrumento de justiça e reafirma sua opressão aos menos favorecidos. Julgar o índio através de uma presunção, sem analisar com profundidade o contexto social em que está inserido e seus valores culturais, é atingir o respeito ao diferente e violar o art. 231 da Constituição, ferindo mortalmente os direitos fundamentais dos índios e o próprio Estado Democrático de Direito.

(...)

Considerar por aspectos externos de fácil apreensão que o índio é inteiramente capaz de entender o caráter ilícito dos fatos ou de determinar-se de acordo com esse entendimento faz parte da arrogância do direito, e do julgador, que reputa ter ciência bastante para julgar sem auxílio de técnicos. Ver aspectos formais como o grau de escolaridade, o entendimento do idioma oficial, titulo de eleitor etc., é privilegiar a verdade formal em detrimento do mundo real. O índio pode mostrar-se externamente apto a todos os atos da vida, mas, internamente, sem o entendimento perfeito do caráter ilícito da conduta, ou mesmo, entendendo a ilicitude, não podendo agir diferente por sua cultura assim exigir. No caso de lideranças indígenas, que são os índios de maior destaque e contato com a sociedade, essa realidade é mais amarga, por ele não poder contrariar sua cultura e seu povo, mesmo que sua ação seja ilícita ao modo do Direito Penal." (grifei)

Anoto que as conclusões aqui expostas de forma breve não estão a firmar a consonância da ação relatada na denúncia com as regras positivadas fundamentadoras do Estado Democrático de Direito, embora tenham se tornado comuns (v.g. ações de comunidades de sem terras), e de certa forma toleradas a partir do governo instalado no ano de 2002.

Porém, tenho que para que seja autorizada a deflagração de ação penal, e possibilitada eventual futura aplicação de sanção penal, na hipótese vertente, que trata de ações praticadas por indígenas líderes de comunidade indígena, necessária a prévia realização de estudo antropológico. De fato, como adverte Janaína Conceição Paschoal [08]:

"(...)

Na realidade, qualquer que seja o acusado, seja qual for a imputação, em um Estado Democrático de direito, sempre há de ser avaliado o caso concreto, considerando-se os valores envolvidos e feridos, a extensão e relevância da lesão a esses valores, a intenção de os lesionar e/ou proteger, bem como a reprovabilidade do ato, consubstanciada na exigência de conduta diversa.

Um Direito Penal material implica essa análise, sendo essa necessidade ainda mais evidente na hipótese de estar-se diante de ré nascido e criado em contexto social diverso.

(...)

Muitas vezes, o direito Penal, inadvertidamente, é tomado como a única forma de intervenção estatal, quando na verdade, é apenas uma delas. Deveria ser a última.

Respeitar as diferenças e a livre determinação dos povos é inerente à observância dos direitos fundamentais e ao próprio Estado Democrático de Direito."

De todo o exposto, concluo que o recebimento da denúncia sem a imprescindível prévia realização de estudo antropológico, único instrumento hábil a aferição do potencial conhecimento dos indiciados acerca da ilicitude das condutas adotadas, importaria manifesta violação ao disposto no art. 231 da Constituição, e ao preconizado nos arts. 8º.1 e 9º.2 da Convenção 169 da OIT [09].

Dispositivo.

Pelo exposto, por não divisar a presença de pressuposto processual relacionado à legitimidade dos indiciados para figurarem no pólo passivo desta [10], decorrente da não realização de prévio estudo antropológico para aferição da real possibilidade de os indiciados entenderem o caráter ilícito das ações que perpetraram, e da razoabilidade de exigir que procedessem de forma diversa, com apoio no art. 395, inciso II, do Código de Processo Penal, rejeito a denúncia ofertada em desfavor de [INDÍGENA 1] e de [INDÍGENA 2]

Custas, na forma da lei.

P.R.I.O.C.

Bauru-SP, 18 de fevereiro de 2011.

Roberto Lemos dos Santos Filho

Juiz Federal


Notas

  1. Súmula 147-STJ: "Compete a Justiça Federal processar e julgar os crimes praticados contra funcionário público federal, quando relacionados com o exercício da função." (DJ 18/12/1995 p. 44864)
  2. Como observa Mércio Pereira Gomes: "(...) Não há efetivamente culturas superiores ou inferiores, como se fora numa escala evolucionária. Toda e cada cultura tem o seu próprio e singular valor; toda cultura proporciona aos seus membros o sentido de ser e estar no mundo." (GOMES, Mercio Pereira. Antropologia: ciência do homem; filosofia da cultura. São Paulo: 2008, editora Contexto, p. 43).
  3. A propósito, confira-se a Portaria nº 02, de 20.01.2010 da Procuradoria da República do Município de Bauru-SP, pela qual foi instaurado inquérito civil público para apuração de questões relacionadas a reivindicações feitas por índios desta região aos 10.12.2007 nos autos da ação nº 2007.61.08.011284-1, disponível em http://www.prsp.mpf.gov.br/prmbauru/atuacao/portarias/002-2010-100-08-administracao-regional-funai-em-bauru.pdf (visitado aos 17.02.2011).
  4. Nesse sentido é a avaliação do Relator Especial da ONU para Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais dos Povos Indígenas, exposta no relatório elaborado em 2009 sobre a situação dos índios no Brasil, noticiada no sítio eletrônico http://www.ecodebate.com.br/2009/08/20/indio-tem-de-ser-ouvido-sobre-extrativismo-especialista-da-onu-lanca-relatorio-sobre-os-direitos-dos-indios-no-brasil/ (visitado em 17.02.2011).
  5. De acordo com informação disponível no sítio eletrônico da FUNAI: "Hoje, no Brasil, vivem cerca de 460 mil índios, distribuídos entre 225 sociedades indígenas, que perfazem cerca de 0,25% da população brasileira. Cabe esclarecer que este dado populacional considera tão-somente aqueles indígenas que vivem em aldeias, havendo estimativas de que, além destes, há entre 100 e 190 mil vivendo fora das terras indígenas, inclusive em áreas urbanas. Há também 63 referências de índios ainda não-contatados, além de existirem grupos que estão requerendo o reconhecimento de sua condição indígena junto ao órgão federal indigenista." - http://www.funai.gov.br/ - visitado em 17.02.2011 -.
  6. Sobre o tema, merece atenção o precedente do Egrégio TRF da 4ª Região assim ementado: "INDÍGENAS. REGIME CONSTITUCIONAL. - Caso em que Delegado e Escrivão Federal, procurando cumprir mandado de busca e apreensão de contratos de arrendamento em reserva indígena, restaram mantidos em cárcere privado por ordem do cacique da aldeia. Atos que, em tese, caracterizariam ilícitos penais, mas que, considerados à luz do regime constitucional dos indígenas, não se demonstrou fossem incompatíveis com a sua própria ordem social, costumes ou valores. Prova que, ao contrário, indica ausência de dolo. Recurso provido. (TRF4, ACR 2001.04.01.009668-5, Oitava Turma, Relator Manoel Lauro Volkmer de Castilho, DJ 17.09.2003)
  7. VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas. Curitiba: 2008, editora Juruá, p. 300; 302-303 e 309-310.
  8. PASCHOAL, Janaína conceição. O índio, a inimputabilidade e o preconceito – Direito Penal e Povos Indígenas (coordenador Villares, Luiz Fernando). Curitiba: 2010, editora Juruá, p. 86/87 e 89.
  9. Convenção 169-OIT: art. 8º.1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário; (...) art.9º.2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto.
  10. Sobre o tema, confira-se lição de Eugenio Pacelli de Oliveira, contida na obra Curso de Processo Penal (Rio de Janeiro: 2008, Lúmen Júris, 10ª edição, p. 96 e seguintes).
Sobre o autor
Roberto Lemos dos Santos Filho

Juiz federal em Bauru (SP). Mestre em Direito pela Universidade Católica de Santos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS FILHO, Roberto Lemos. Cárcere privado praticado por indígenas: rejeição da denúncia por falta de prévio estudo antropológico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2802, 4 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18621. Acesso em: 22 dez. 2024.

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