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Definição do sujeito ativo nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, previstos na Lei Maria da Penha

Agenda 08/03/2011 às 13:19

Resumo: A Lei Federal n. 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, para alcance da finalidade a que se propôs, qual seja, tornar mais efetivos e eficazes os instrumentos legais de prevenção e combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, trouxe diversas inovações que têm provocado, no seio da comunidade jurídica, inúmeras discussões, sendo uma delas relativa à caracterização do sujeito ativo dos atos de violência doméstica e familiar, definida na própria lei. A respeito, surgiram dois entendimentos completamente opostos: um restritivo e outro ampliativo. A interpretação mediante os métodos teleológico e sistemático impõe a adoção do posicionamento ampliativo, segundo o qual qualquer pessoa (homem ou mulher) pode ser sujeito ativo ou agente dos atos de violência doméstica e familiar contra a mulher, desde que tenha com a vítima (imprescindivelmente mulher) um vínculo baseado na ambiência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto, independentemente de orientação sexual, seja do agente agressor seja da ofendida, consoante definição dada pelo art. 5° da citada lei.

Palavras-chave: Lei Maria da Penha, tutela jurídica qualificada como ação afirmativa, atos de violência doméstica e familiar contra a mulher, sujeito ativo, definição, art. 5° da referida lei.


No dia 22 de setembro de 2006, entrou em vigor a Lei Federal n. 11.340, de 07 de agosto de 2006, apelidada de Lei Maria da Penha, a qual tem por finalidade primordial tornar mais efetivos e eficazes a prevenção e o combate aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, infelizmente corriqueiros no meio social brasileiro e que, até então, não recebiam do Estado o adequado tratamento.

Ao largo das críticas que estão sendo levantadas contra essa lei, não se pode negar que ela "é um passo significativo para assegurar à mulher o direito à sua integridade física, psíquica, sexual e moral", [01] especialmente em virtude dos novos instrumentos jurídico-processuais, de natureza cível e criminal, que ela outorga ao Estado, de forma inovadora, para o concreto alcance do disederato apontado no parágrafo anterior.

E como toda nova lei, ela vem suscitando na comunidade jurídica nacional, em pouco tempo de vigência, diversas polêmicas e discussões quanto ao significado e alcance não apenas dos seus institutos, mas dela própria.

Um dos exemplos mais emblemáticos refere-se à definição do sujeito ativo (agente) dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de que cuida a citada lei, servindo, inclusive, de título ao presente trabalho, cujo escopo é justamente apresentar os dois posicionamentos que surgiram a respeito do aludido ponto, optando, de forma fundamentada, por aquele que parece mais consentâneo com o espírito da Lei Maria da Penha.

Nesse passo, a primeira posição que surgiu sobre a questão em tela é a que restringe o sujeito ativo dos atos de violência doméstica e familiar contra a mulher à pessoa do sexo masculino, ou seja, ao homem. Logo, de acordo com esse entendimento, somente o homem é que pode, nos termos e para os fins da Lei Maria da Penha, praticar violência doméstica e familiar contra a mulher, ficando, pois, excluídas do alcance dessa lei, por exemplo, as situações em que a mulher homossexual é vitimada por sua própria companheira, com quem mantém relação íntima de afeto (art. 5°, III, da Lei n. 11.340/06).

O principal argumento dessa corrente de pensamento fundou-se na interpretação da expressão "baseada no gênero", contida no caput do indicado artigo 5°, assim redigido: "Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:" (destacou-se).

Segundo os defensores desse pensamento, quando o dispositivo transcrito fala em "gênero" está colocando de um lado a mulher, como vítima (sobre isso ninguém discute, desde que ela esteja no ambiente doméstico, familiar ou de relação íntima de afeto), e, do outro, necessariamente o homem (reside aqui a discussão), acrescentando que o fator de discriminação adotado pela lei é a maior e natural fragilidade da mulher, do ponto de vista biológico, físico e psíquico, em face do homem, daí porque a lei em comento não se aplicaria ao cogitado caso de duas mulheres homossexuais que, v.g., dividam o mesmo teto, mantendo entre si constante relação íntima de afeto.

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Data venia, nada mais equivocado a nosso juízo.

Assim, em posição diametralmente oposta à primeira, existe a idéia de que sujeito ativo dos atos de violência doméstica e familiar contra a mulher pode ser tanto a pessoa do sexo masculino, quanto a do sexo feminino, desde que praticados tais atos de violência em um dos ambientes relacionados no art. 5° da Lei Maria da Penha, ligando, a um só tempo, agente agressor e vítima.

E os fundamentos que legitimam essa conclusão são vários.

De início, é preciso dizer que o método tópico e literal de interpretação do Direito, quando isolado, se mostra como o mais falho de todos, o que é reconhecido pacificamente pelos juristas. Muito a propósito, o Min. Eros Grau, em diversos votos por ele proferidos na Suprema Corte, tem feito o seguinte registro: "Tenho amplamente repetido neste Tribunal – faço-o à exaustão – que não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços.". [02] E de forma até mais enfática e "deliciosamente espirituosa", manifestou-se o ex-Ministro da Suprema Corte brasileira, Luiz Gallotti, ao dizer que: "De todas, a interpretação literal é a pior. Foi por ela que Clélia, na Chartreuse de Parme, de Stendhal, havendo feito um voto a Nossa Senhora de que não mais veria seu amante Fabrício, passou a recebê-lo na mais absoluta escuridão, supondo que assim estaria cumprindo o compromisso". [03]

Destarte, adotando-se, por assim dizer, um prisma interpretativo de conjunto ou do todo, verifica-se que a Lei Maria da Penha, logo em seu artigo 1°, revelou sua finalidade de criar "mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher", sem estabelecer de quem partiria essa violência.

Seu artigo 2°, com a mesma amplitude, explicitou que "toda mulher, independentemente de (...), orientação sexual (...), goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social." (destacou-se).

O § 1° do art. 3°, por sua vez, ressaltou que "o poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão." (destacou-se).

Ao final de suas disposições preliminares, a Lei Maria da Penha estabeleceu que "na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar." (destacou-se). Aqui, mais uma vez, não houve definição do sujeito ativo ou provocador da situação de violência doméstica e familiar.

Na realidade, o que se observa é que a lei em questão nos diz a todo tempo – e os dispositivos acima transcritos são prova disso – que seu âmbito de incidência é definido ou estruturado com base em dois critérios cumulativos e simultâneos, ou seja, que devem estar presentes ao mesmo tempo: 1°) Figurar a mulher, ou transexual civilmente considerado como mulher, [04] na condição de vítima; 2°) estarem a vítima, indicada no primeiro critério, e o agente agressor ligados por uma situação reveladora de violência doméstica ou familiar, assim definida pela própria lei, mais especificamente em seu art. 5°.

Desse modo, ausente que seja um dos critérios expostos e será inaplicável a Lei Maria da Penha ao caso concreto.

Impõe-se, por necessário, transcrever aqui o referido art. 5°, in verbis:

Art. 5° Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

Da leitura desse dispositivo, pode-se dizer que, em outras palavras, o segundo critério significa tão-somente que o ato de violência contra a mulher tem necessariamente como palco o âmbito da unidade doméstica, ou o âmbito da família, ou qualquer relação íntima de afeto, independentemente da orientação sexual seja da pessoa responsável pelo ato de violência, seja da própria vítima.

Não fosse assim, a ressalva duas vezes contida na lei, segundo a qual ela se aplica independentemente de orientação sexual, seria uma previsão sem sentido e por isso inútil, o que a hermenêutica jurídica repele com veemência.

Ora, a expressão "gênero" contida no caput do transcrito art. 5° procura apenas reforçar a idéia exteriorizada no art. 4° da mesma lei, conforme a qual as mulheres, em situação de violência doméstica e familiar, são pessoas portadoras de condições peculiares e, por esse mesmo motivo, merecedoras de maior proteção jurídica (ação afirmativa), ainda que ela venha a ser vitimada por outra mulher (ressalte-se: desde que entre ambas haja um vínculo caracterizado pela ambiência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto). Nesse sentido, posicionou-se Marcelo Lessa Bastos, na seguinte passagem:

Outro ponto a ser considerado, positivo por sinal, diz respeito à ausência de preconceito no que tange às relações domésticas que unam mulheres homossexuais. Qualquer delas, independente do papel que desempenham na relação, está sujeita à proteção legal, como estabelece o parágrafo único do art. 5°. [05]

Aliás, o posicionamento aqui defendido encontra respaldo em autorizado magistério doutrinário. Confira-se:

Sujeito ativo da violência pode ser qualquer pessoa vinculada com a vítima (pessoa de qualquer orientação sexual, conforme o art. 5º, parágrafo único): do sexo masculino, feminino ou que tenha qualquer outra orientação sexual. Ou seja: qualquer pessoa pode ser o sujeito ativo da violência; basta estar coligada a uma mulher por vínculo afetivo, familiar ou doméstico: todas se sujeitam à nova lei. Mulher que agride outra mulher com quem tenha relação íntima: aplica a nova lei. A essa mesma conclusão se chega: na agressão de filho contra mãe, de marido contra mulher, de neto contra avó, de travesti contra mulher, empregador ou empregadora que agride empregada doméstica, de companheiro contra companheira, de quem está em união estável contra a mulher etc. Exceção: marido policial militar que agride mulher policial militar, em quartel militar (a competência, nesse caso, é da Justiça militar).

Quem agredir uma mulher que está fora da ambiência doméstica, familiar ou íntima do agente do fato não está sujeito à Lei 11.340/2006. É dizer: quem ataca fisicamente uma mulher num estádio de futebol, num show musical etc., desde que essa vítima não tenha nenhum vínculo doméstico, familiar ou íntimo com o agente do fato, não terá a incidência da lei nova. Aplicam-se, nesse caso, as disposições penais e processuais do CP, CPP etc. [06] (destacou-se).

Portanto, como se vê, a interpretação teleológico-sistemática, consideravelmente mais eficaz do que os outros métodos interpretativos, [07] torna legítima a seguinte conclusão do presente trabalho: qualquer pessoa (homem ou mulher) pode ser sujeito ativo ou agente dos atos de violência doméstica e familiar contra a mulher, desde que tenha com a vítima (imprescindivelmente mulher) um vínculo baseado na ambiência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto, independentemente de orientação sexual, seja do agente agressor seja da ofendida, consoante definição dada pelo art. 5° da própria Lei Maria da Penha.


Notas

  1. DIAS, Maria Berenice. A violência doméstica na Justiça. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1178, 22 set. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/8959>. Acesso em: 03 out. 2006.
  2. Informativo STF n. 431, de 12 a 16 de junho de 2006, Transcrições, Decreto expropriatório: Transmissão "mortis causa" e partes ideais (MS 24573/DF).
  3. Apud Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 6. ed. rev., atual. e ampl., Editora Saraiva, 2004, nota de rodapé n. 91, p. 128.
  4. Conforme esclarecem Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini, na seguinte passagem: "No caso de cirurgia transexual, desde que a pessoa tenha passado documentalmente a ser identificada como mulher (Roberta Close, por exemplo), terá incidência a lei nova." In: Aspectos criminais da Lei de Violência contra a Mulher . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1169, 13 set. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/8916>. Acesso em: 03 out. 2006.
  5. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Lei "Maria da Penha". Alguns comentários. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1189, 3 out. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9006>. Acesso em: 03 out. 2006.
  6. GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Aspectos criminais da Lei de Violência contra a Mulher . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1169, 13 set. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/8916>. Acesso em: 03 out. 2006.
  7. De acordo com Luís Roberto Barroso: "o método sistemático disputa com o teleológico a primazia no processo interpretativo." In: Interpretação e aplicação da Constituição, 6. ed. rev., atual. e ampl., Editora Saraiva, 2004, p. 136.
Sobre o autor
Eliseu Antônio da Silva Belo

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás-UFG. Ex-servidor da Justiça Federal em Goiás. Promotor de Justiça do Ministério Público de Goiás desde agosto de 2004. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Autor do livro "O artigo 41 da Lei Maria da Penha frente ao princípio da proporcionalidade", pela Editora Verbo Jurídico, 2014. Atualmente, titular da Promotoria de Justiça de Cocalzinho/GO.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BELO, Eliseu Antônio Silva. Definição do sujeito ativo nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, previstos na Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2806, 8 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18630. Acesso em: 29 dez. 2024.

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