3. MEIO AMBIENTE CULTURAL E PROTEÇÃO DA PAISAGEM
3.1 MEIO AMBIENTE CULTURAL
Ao abordar-se o tema do ecoturismo é imprescindível a análise a respeito de qual categoria de bem ambiental que o mesmo se enquadra na divisão – elaborada para fins metodológicos – entre meio ambiente artificial, natural e cultural.
Pois bem, o turismo como atividade humana enquadra-se perfeitamente dentro de um fenômeno cultural, decorrente da necessidade ao lazer e à conquista de novas experiências.
Darci Ribeiro (1972, p. 93) conceitua a cultura como sendo "a herança de uma comunidade humana, representada pelo acervo co-participado de modos padronizados de adaptação à natureza, para o provimento da subsistência; de normas e instituições reguladoras das relações sociais e de corpos de saber, de valores e de crenças com que explicam sua experiência, exprimem sua atividade artística e se motivam para a ação."
Ao tratar sobre o patrimônio cultural como faceta do meio ambiente, Daniel Fink (2003, p. 46 e 50), ensina:
"Assim sendo, é importante indagar se o conceito de meio ambiente pode ser ampliado a ponto de incluir bens e direitos que integram o patrimônio cultural.
A resposta afirmativa nos parece a mais correta.
...
O meio ambiente cultural, nele compreendido os valores históricos, arqueológicos, estéticos, artísticos, turísticos e paisagísticos, pela importância intelectual e referencial ao ser humano, passou, assim, tanto sob o ponto de vista legal como doutrinário, a integrar o conceito geral de meio ambiente.
Por outro lado, é curioso notar que o inverso também é verdadeiro. Quando se perquire o conceito de patrimônio cultural, não há como dissociá-lo do conceito de meio ambiente, como se tratassem de irmão xifópagos unidos pela natureza"
O tratamento jurídico da cultura vem expresso em nível constitucional na Seção II, do Capítulo III, da Constituição Federal, sendo que em seu artigo 216, dispõe:
"Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§ 1º. O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
§ 2º. Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.
§ 3º. A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.
§ 4º. Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.
§ 5º. Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos."
Percebe-se com facilidade que o Constituinte deu grande importância à culutura e à proteção do patrimônio cultural, deixando de forma clara a tutela de bens tanto materiais como imateriais que tenham ligação com a identidade nacional.
Ao se tratar de patrimônio cultural deve ser registrado que tal expressão figura-se como sinônimo de meio ambiente cultural, até porque, a palavra "patrimônio" nestes casos é utilizada de forma atécnica, já que este termo é adotado na doutrina civilista ligado à questão econômica, conforme ressalta Antônio Carlos Brasil Pinto (2003, p. 20):
"... o termo patrimônio, utilizado na forma do transcrito no art. 216 da Constituição Federal, é juridicamente atécnico e quer significar o acervo dos bens culuturais relevantes para a nação, significando ainda bens de diferentes proprietários, tanto públicos quanto privados.
Embora atécnico, o termo é reconhecido pelo Direito, inclusive nos textos internacionais, constando especialmente da Convenção Sobre a Salvaguarda do Patrimônio Mundial, Culutural e Natural da Unesco..."
Assim, o termo patrimônio cultural foi adotado pela Constituição Federal e pela doutrina brasileira, podendo ser conceituado como conjunto de bens móveis ou imóveis, materiais ou imateriais, decorrentes tanto da ação da natureza e da ação humana como da harmônica ação conjugada entre estes dois fatores (natural e humano), de reconhecidos valores vinculados aos progressivos estágios dos processos civilizatórios e culturais de grupos e povos (CUSTÓDIO, 1997, p. 18).
Contudo, a quem cabe dizer o que é ou não integrante do patrimônio cultural? Édis Milaré (2001, p. 204), fundado no parágrafo primeiro do dispositivo acima mencionado, ensina que tal atribuição muito mais do que responsabilidade do Poder Público, deve ser atribuída à atuação da comunidade, por ser ela a legítima produtora e beneficiária dos bens culturais, sendo que sua identificação ou simpatia por um determinado bem pode representar prova de valor cultural bastante superior àquela obtida através de dezenas de laudos técnicos cheios de erudição, mas muitas vezes vazios de sensibilidade.
Note-se que não somente a arte erudita ou elitista deve ser considerada como patrimônio culutural, mas principalmente a manifestação da cultura popular espontânea e tradicional de nosso povo, rica em detalhes e regionalismos que a torna singular em relação a quaisquer comparações.
De outro norte, como o patrimônio cultural apresenta-se sendo parte de uma realidade maior denominada meio ambiente, não há como deixar de reconhecer que os bens culturais devem ser considerados bens ambientais, e portanto de natureza difusa, pois, "quando reza o § 1º, do art. 216, que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, têm o dever de preservar o patrimônio cultural, outra coisa não está dizendo, senão ratificar a natureza jurídica do bem difuso, na medida em que a todos pertence; que não é de ninguém em particular" (CARMO, 2003, p. 91).
Esta realidade é perceptível de forma evidente quando analisamos alguns bens culuturais – principalmente os imateriais – pois a quem pertence o maracatú nordestino ou a capoeira baiana? E a culinária mineira, pode ser apropriada por alguém exclusivamente? É evidente que não, razão pela qual impõe-se reconhecer serem estes bens de propriedade de toda a coletividade, representada pelas presentes e futuras gerações.
Em relação à competência dos entes federados para a proteção do patrimônio cultural – da mesma forma como fez como o meio ambiente como um todo – pretendeu o Constituinte permitir a maior cooperação e coordenação entre as esferas de governo, tanto que deu atribuição material para que União, Estados e Municípios defendessem tais bens e interesses, nos termos do art. 23, III a V:
"Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
...
III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens notáveis e os sítios arqueológicos;
IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico e cultural;
V – proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;"
Assim, é dever do Poder Público empenhar-se na proteção do patrimônio cultural, tendo recebido da Constituição Federal determinação expressa para tal.
Já no que se refere à competência legislativa a Constituição não foi tão clara, pois em seu art. 24, VII, VIII e IX, estabeleceu ser competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal legislar sobre o patrimônio cultural e responsabilidade por dano ao mesmo, excluindo, aparentemente, o Município desta competência.
Contudo, a competência legislativa do Município para legislar, seja suplementando a legislação federal ou estadual, seja inovando na matéria em nome do interesse local, é extraída do artigo 30, I e II.
Reforça-se ainda mais a possibilidade do Município legislar nesta matéria quando observa-se a redação do inciso IX do mesmo dispositivo que diz ser competência deste ente "promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estaudal".
Ora, tal redação além de não vedar que o Município legisle nesta matéria deixa subentendido ser necessário reconhecer-se esta competência, pois por força do princípio da legalidade, a atuação em nível municipal deve ser regulamentada por lei.
Sobre a possibilidade de atuação legislativa municipal, observe-se a seguinte lição de José Eduardo Ramos Rodrigues (2005, p.547):
"A competência concorrente do município decorre da interpretação conjunta do art. 216 com o art. 30, inc. VIII. Cabe ao município promover a proteção do patrimônio cultural, dentro da área sob sua administração, observando a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual. Isso não significa que o Município esteja completamente subordinado, em todos os aspectos, à legislação federal e estadual, ou que deva copiá-la, ferindo sua tradicional autonomia constitucional para assuntos locais. O que o município não pode é desrespeitar a legislação de proteção estadual e federal que sobre ele recaia protegendo bens culturais em seu território, o que tem ocorrido reiteradamente em nosso país."
Portanto, não se pode negar também a importância do Município – respaldada constitucionalmente – na proteção do meio ambiente cultural, seja legislando, seja atuando com sua competência administrativa.
3.2 PROTEÇÃO À PAISAGEM
A Constituição Federal foi generosa em referências à proteção da paisagem e de sítios de importância paisagística, podendo ser citado como exemplos os artigos 23, III, 24, VII e VIII, além do art. 216, V, todos mencionando a defesa deste bem ambiental de natureza cultural.
É de se notar que apesar da paisagem recair sobre um substrato material, seja natural (praia, cachoeira, montanha, etc...) ou artificial (conjunto de prédios históricos, lago de uma represa hidrelétrica, etc...), é ela um fenômeno eminentemente cultural, uma vez que decorre dos sentimentos que afloram da pessoa que tem contato com aquele local.
Nos dizeres de Rodrigo Andreotti Musetti (2004, p. 189), a paisagem é "a porção do ambiente que conseguimos captar pela visão ou outro de nossos cinco sentidos (experiência sensorial), bem como através de nossa percepção extra-sensorial (experiência não perceptível aos nosso cinco sentidos mas integrante das faculdades humanas)."
Seja como for, as paisagens – não apenas as notáveis, mas quaisquer daquelas que despertem interesse cultural – devem ser objeto de proteção pelo Poder Público com o auxílio de toda a comunidade.
A origem da palavra paisagem e sua noção correspondente surgiu na Europa, no renascimento, e vem da junção de país com o sufixo agem (região + ação sobre) (OSEKI E PELLEGRINO, 2004, p. 488).
A preservação da paisagem está intimamente ligada ao ecoturismo, pois como se sabe, esta atividade é desenvolvida predominantemente em ambientes naturais de valor paisagístico elevado e quaisquer danos a estes locais podem levar a uma sensível perda desta importante vertente econômico-ambiental.
Tal a importância da paisagem para o turismo, que o artigo 1°, V, da Lei n. 6.513/77, estabeleceu ser local de interesse turístico as paisagens notáveis, conforme percebe-se de sua redação:
"Art. 1° - Considera-se de interesse turístico as Áreas Especiais e os Locais instituídos na forma da presente lei, assim como os bens de valor cultural, protegidos por legislação específica e especialmente:
...
V – as paisagens notáveis."
Portanto, além de proteção em razão de sua participação como bem cultural difuso, as paisagens notáveis devem ser protegidas também em razão de sua importância turística, fenômeno este que mais adiante será abordado.
Caso interessante a respeito da proteção da paisagem foi relatado por Alberto Contar (2004, p. 323) em que por ordem da Justiça do Paraná em ação popular movida pelo prof. René Ariel Doti contra a repartição do turismo do Estado, foram retirados "adornos" (tais como gnomos, focos de luz, etc...) dos arenitos do Parque Ecológico de Vila Velha (autos n. 248/84 - 4ª Vara de Fazenda Pública).
Outro exemplo a respeito da defesa da paisagem é a ação popular proposta perante a 2ª Vara da Justiça Federal de Santos (n. 95.0209270-8 - <jus.com.br/artigos/549>), em que se questiona a concessão de autorização pela Prefeitura Municipal de São Vicente – SP, para construir um restaurante sobre as pedras de uma praia local.
Na sentença o Juiz Federal Substituto Roberto Lemos dos Santos Filho além de anular o ato, determinou o retorno ao estado anterior, sendo que dos fundamentos desta decisão retira-se o seguinte trecho:
"Em vista da construção combatida encontrar-se totalmente dissociada das normas constitucionais e legais protetoras da paisagem, bem como das orientações da ONU com relação a proteção da beleza e do caráter das paisagens, em manifesta contradição com as recomendações previstas na Convenção Européia da Paisagem, diante do comprovado comprometimento da paisagem, emerge manifesta a lesividade do contrato administrativo firmado para a construção do Píer-Atracadouro."
Traçadas estas considerações, impõe-se abordar-se o conceito de ecoturismo e sua tutela jurídica.