SUMÁRIO:1. Considerações preliminares. 2- Introdução. 3. As culturas do Oriente Médio. 3.1. Sociedade e direito babilônico. 3.2. Aspectos da primitiva sociedade hebraica. 3.2.1. O direito hebreu. 4. A sociedade grega. 4.1. Formação étnica. 4.2. Periodização. 4.3. A civilização cretense. 4.4. A civilização aquéia (ou micênica). 4.5. A organização gentílica. 4.6. A Grécia arcaica. 4.6.1. O despertar da democracia ateniense: Drácon e Sólon. 4.7. O período clássico e seu legado jurídico-político. 4.7.1. O governo de Clístenes. 4.7.2. Péricles e o apogeu democrático. 5. A decadência das Cidades-Estado e o Helenismo. 6. Conclusão. 7. Bibliografia.
1- Considerações preliminares
A cultura científica sedimentada no ocidente sempre exigiu do cientista a posse de aprofundadoconhecimento do ofício. Nas recentes décadas, com a imposição de novos paradigmas de leitura do mundo, tem-se buscado o equilibrado conhecimento do ofício, porquanto o saber aprofundado há muito se confundiu a especializado, tornando-se, então, sinônimo de saber estanque, compartimentalizado e fragmentário. E um saber assim constituído acha-se inarredavelmente aprisionado em estreitos limites, porquanto quanto mais se vê em profundidade, menos se vê em extensão.
Como sucede no país – afora inexpressivas exceções - o ensino jurídico hoje ministrado nas academias ainda perpetua práticas acadêmicas fragmentárias, herança do fracassado paradigma científico moderno propagado, entre tantos, pelos adeptos do taylorismo. Em oposição aos fortes resquícios desse modelo, a construção do saber está a pugnar práticas pedagógicas holísticas, inter e transdisciplinares, bem assim a repartição do saber-poder, realidade ainda distante de muitas instituições educacionais.
Efetivamente, o império da cultura pragmática e imediatista em todos os setores da vida social não haveria que poupar o ensino universitário. Por tal razão, o embate com seus princípios há muito cristalizados é árdua, porém indispensável missão, haja vista que o seu enfrentamento contribuirá para a formação alunos-sujeito, pensadores da vida e do direito.
Em termos práticos, em se pretendendo a promoção de mudanças comportamentais, impõe substituir práticas pedagógicas e metodologias anacrônicas que ainda persistem aplicadas a todo o processo de ensino, em todas as suas disciplinas. Vale dizer: em substituição da simplista fórmula do saber fazer impõe acrescentar o como, por que e para que fazer. Em troca de métodos e modelos autocráticos de ensinar, impõe suscitar a dialogicidade pedagógica e a filosófica amizade pela pesquisa. Tudo isso em resgate do saber-sabor do aprender.
Portanto, na contramão do insciente paradigma inaugurado na modernidade, os desafios do tempo presente estão a reclamar a atuação de profissionais munidos de novas competências, habilidades e saberes os quais se demonstrem capazes de romper os clássicos e aparentemente inconciliáveis dualismos inaugurados pelo cartesianismo. Noutra expressão: o tempo está a reivindicar capacidade de reatar, em necessário equilíbrio, a dimensão teórica à prática, a dimensão cognitiva à afetiva, a pessoalidade à sociabilidade e o doméstico ao político, sobretudo nesses dias em que prevalece tão drástico narcisismo. Tais tendências impelem o ensino jurídico, como, de resto, as demais modalidades de ensino, à reestruturação de sua dinâmica e à reorientação de seus fins.
Por essas razões, aos estudantes de direito, atuais e futuros cientistas da ciência jurídica, incumbe a inarredável vocação da re-flexão, do (filosófico) estranhamento diante das muitas certezas im-postas pela experiência sócio-profissional e, muitas vezes, também pelas lições acadêmicas. Para tanto, precisarão desvendar os princípios, os fundamentos ou a ratio essendi da ciência jurídica, e não há como fazê-lo senão mediante o diálogo, a interação e, muitas vezes, a solitária pesquisa. Noutros termos, aos alunos se impõe o constante exercício da cogitação acerca dos derradeiros fins que fazem a essência do saber jurídico, de modo a perseguirem, com a devida autonomia intelectual, uma ontologia e uma deontologia do direito, o que, aliás, lhes possibilitará transitar do papel de meros repetidores de textos legais para o profícuo papel de juristas. Desse modo, reitere-se, ao lado do (necessário) apelo praticista impregnado nas academias e manifesto na pragmática indagação do "pra que serve", impõe resgatar o que e por que algo é, e para que fins ele se orienta. Afinal, o direito é saber instrumental, cuja existência deve servir à harmonização social.
Ademais, a empreitada da reflexão sobre os fundamentos científicos é tarefa que se dirige ao ensino em geral e não apenas a determinado conjunto de disciplinas batizadas no meio acadêmico de disciplinas teóricas, históricas ou filosóficas, termos – diga-se - costumeira e equivocadamente adotados com certo sentido pejorativo, como "reflexão despida de significado prático".
Concorrentes para a alteração de todo esse quadro, embora ainda inseridas dentro de limitadas e seccionadas referências pedagógicas, encontram-se "disciplinas" como a Filosofia, o Direito Romano e a História do Direito, a Ética, além das chamadas "teorias gerais", cujo rol engloba a Teoria Geral do Direito, a Teoria Geral do Estado e a Teoria Geral do Processo. Ao contrário do que se pensa, o aprendizado fomentado por tais disciplinas revela-se condição fundamental à práxis profissional cotidiana, haja vista que essas, assim como outros conteúdos – tal como as atividades de prática jurídica - constituem momentos de fermentação dos componentes teórico-práticos e desempenham relevante papel convergente e sintetizador dos vários e dispersivos saberes adquiridos no percurso acadêmico, esmerando-se, enfim, por capturar o ser e o dever-ser do Direito.
2- Introdução
A experiência jurídica é coetânea à vida cultural urdida pelo homem. Ao longo do tempo, todas os agrupamentos humanos, desde os mais primevos aos contemporâneos, ocuparam-se de edificar determinado conjunto de normas com vistas a reger o convívio, a normatizar a dimensão essencialmente social do ser humano. Assim o fizeram antigos mesopotâmicos, hebreus, indus, gregos e romanos, entre outros povos. Experiências sintetizáveis no conhecido brocardo latino ubi homo, ibi jus, ou seja, onde está o homem, aí estará o direito.
Com suporte nessa premissa, o presente estudo pretende visitar, ainda que brevemente, a dinâmica social peculiar a algumas culturas da antiguidade destacando-se, por razões peculiares ao curso, os efeitos jurígenos que nascem da dimensão social humana. Nesse sentido, neste estudo serão tratados breves aspectos da cultura e do direito hebraico-cristão, do direito egípcio e, enfim, da clássica experiência jurídica greco-romana de cujo desfecho resultaram modernas instituições do direito público e privado ocidental, legado tardiamente trazido ao Brasil por força da empresa colonial lusitana do século XVI.
Frise-se que o empreendimento ora abraçado pretende transcender ao mero conhecimento de institutos localizados na prática jurídica contemporânea. Objetiva mais: inteligir [01] as bases culturais (políticas, econômicas e sociais) sobre as quais se edificou a experiência civilizatória do mundo ocidental. A par dessa realidade, serão abordados os elementos constitutivos da sociedade grega – sua formação, estruturação, desenvolvimento e declínio – com vistas a aí verificar a organização do fenômeno jurídico possível àquele espaço e tempo.
Quanto ao sistema jurídico erigido pelos romanos – em face de sua capital influência na configuração do direito privado nacional - será tratado em capítulo ulterior.
3- As culturas do Oriente Médio
A região a que se denomina Oriente Médio compreende geograficamente as áreas ao leste do mediterrâneo, da Turquia ao Egito, estendendo-se até o Irã e a Península Arábica. No remoto passado, nessa região desenvolveram-se grandes civilizações como a egípcia, a babilônica e a hebraica.
Por ora, serão estudados alguns aspectos da organização social babilônica e hebraica: da primeira, em face do vanguardismo jurídico vislumbrado na compilação de leis efetuada por Hamurábi e seus reflexos sobre a cultura e o direito hebraico primitivo; da segunda, em função da influência exercida sobre as instituições político-jurídicas do mundo ocidental, plasmado à luz da cultura judaico-cristã.
3.1- Sociedade e direito babilônico
A Babilônia foi uma das principais cidades da Mesopotâmia, região situada entre os rios Tigre e Eufrates em que conviviam várias e independentes cidades-Estado. Por volta de 2.000 a C. a cidade da Babilônia, sob a liderança do rei Hamurábi, unificou a maior parte dos mesopotâmicos vindo a formar o Império Babilônico. Essa unificação política encontra seus fundamentos, entre outras variáveis, na própria centralização jurídica e administrativa empreendida por Hamurábi. Então, com vistas a comandar extensa e diversificada população, Hamurábi fez reunir e gravar em pedra, ao final de seu reinado, vários mandamentos então conhecidos e praticados, instituindo a famosa codificação [02]que levara o seu nome.
A base da sociedade mesopotâmica era o clã. A sociedade marcava-se por profundas desigualdades entre classes, dividindo-se a população em três camadas: nobreza, homens livres, servos e escravos. Na economia prevalecia a atividade agrícola, ao lado do comércio e artesanato, cujo controle incumbia ao governante.
De um modo geral, várias sociedades orientais praticaram a teocracia nas quais os governantes atuavam como arautos do desígnio divino. No Egito, o faraó era considerado filho do deus Hórus; na Pérsia, o rei era representante de Ahura-Masda; na Mesopotâmia, era o sacerdote de Anu, deus do Céu. Nessas civilizações, o regime político era teocrático e a forma de governo a monarquia absoluta. Quanto aos mesopotâmicos, praticavam uma religiosidade politeísta e muitas de suas divindades representavam forças da natureza. Assim como noutras sociedades antigas, na sociedade babilônica, embora houvesse separação entre poder político (rei) e religioso (sacerdotes), o direito sofria fortes implicações da religiosidade. Esses entrelaçamentos estão dispostos em documentos da época. Num deles, gravado em pedra, o próprio rei Hamurábi deixara um depoimento em que revela ter sido escolhido pela divindade Marduk para distribuir a justiça e promover o bem-estar de seu povo:
"Para que o forte não oprima o fraco, para dar direitos ao órfão e à viúva, (...) para decidir as decisões do país, para fazer justiça ao oprimido. Eu sou o rei que transcende entre os reis, minhas palavras são escolhidas. Minha inteligência não tem rival. Por ordem de Shamash, o grande juiz dos céus e da terra, que meu direito resplandeça pelo país pela palavra de Marduk, meu Senhor, que ninguém apague meu brilho (apague minha imagem!) na Esagil, que amo, que meu nome seja sempre celebrado (com benevolência), com bençãos. Autopanegírico de Hamurábi, §59-53 ". [03](sic)
Composto de 282 artigos, o código de Hamurábi reunia preceitos de direto penal, civil, comercial e processual: homicídio, lesão corporal, roubo, indenizações civis, regras contratuais e escravistas, inclusive a escravidão por dívidas. Várias disposições do código revelam o princípio de talião conhecido pelo brocardo "olho por olho, dente por dente", princípio que representou, à época, significativa mudança na aplicação do direito porquanto inaugurara a idéia de proporcionalidade, de dosimetria na equação delito-sanção. Por força do princípio, adequava-se a sanção, em intensidade e extensidade, ao dano causado à vítima, prática até então inexistente vez que se adotava o livre arbítrio e a força bruta na reparação das contendas interpessoais e intertribais.
O código baseava-se, ademais, na casuística. Estruturava-se em um rol de eventos, fatos e situações do cotidiano instituindo-lhes correspondentes sanções. Por não se ocuparem de caracterizações gerais dos delitos, os artigos descreviam casos específicos e não tinham, necessariamente, a função de standards ou padrões a serem seguidos em situações semelhantes. Nesse particular, releva destacar que a sociedade babilônica era rigorosamente estratificada e que a atribuição de direitos e obrigações operava na medida da desigualdade de seus membros. Assim, era comum que a lei contivesse sanções diversas para mesma categoria de delito, distinção que se ancorava no status civil e na capacidade econômica dos destinatários sociais da norma. De qualquer modo, prevalecia naquele regime o princípio de que o responsável por danos causados a terceiros não ficava incólume.
Na esfera do direito do consumidor as regras assemelhavam-se (em parte) às atuais: quem houvesse vendido mercadoria estragada sujeitava-se à apreensão da mercadoria, bem assim ao castigo físico e moral mediante exposição social da punição aplicada. Na época, era comum que comerciantes fossem condenados ao suplício público por chibatadas, desferindo-lhes tantas chibatadas quantas fossem necessárias ao cobrimento do preço da mercadoria adulterada.
Quanto aos crimes contra o patrimônio, como o furto, a legislação era severíssima. Previa pena de morte ao criminoso apanhado em flagrante delito. Na esfera do direito familiar, mesma sanção sofria a mulher adúltera condenada ao lançamento no rio, algumas vezes atada ao seu cúmplice. [04]
Tais preceitos revelam a insopitável vocação do direito por ofertar respostas aos desafios sociais, constituindo-se ciência que surge, se conforma e expande com suporte na moldura sócio-econômica de determinada comunidade. A evolução do direito obedece, pois, a imperativos espaço-temporais, ao dinamismo da vida social e das forças aí atuantes. Desse modo, a compilação hamurabiana visava a regular o complexo das relações econômicas e intersubjetivas com vistas a evitar a anomia e o caos social provocado pelo agir arbitrário e desmedido na solução dos conflitos. Objetiva, enfim, coibir o exercício da vingança privada e seus efeitos desestabilizadores da vida social.
Esse diálogo entre o sistema jurídico e demais sistemas sociais é corroborado pelas lições de Flamarion (1995:48), ao referir-se à força das relações econômicas sobre o sistema jurídico, bem assim à intervenção do poder político sobre regras jurídicas, com vistas a amainar os rigores da vida social:
"... Os mercadores formavam, na Babilônia, uma corporação subordinada ao Estado, e faziam negócios a mando do governo. Mas também negociavam em proveito próprio (...) dentro e fora da Mesopotâmia; praticavam, ainda, o empréstimo a juros, formavam sociedades mercantis, compravam terras e escravos. Um dos sinais de que tais atividades tinham importância considerável é o desenvolvimento do direito privado, em especial de Hammurabi (1792-1750 a.C). Outro sinal é a frequência com que, a prazos irregulares e sem aviso prévio – para não interromper as atividades de crédito – os reis decretavam a misharum ("justiça"), edito que anulava as dívidas e a escravidão por dívidas, o que era uma forma de proteger a pequena propriedade privada da terra ..."( g.n) [05]
Se por um lado essa interatividade entre o sistema jurídico e os demais sistemas sociais serve a produzir relativa equalização social, por outro, pode também se destinar a intentos legitimatórios de certos grupos sociais instalados no poder estatal. Nessa hipótese funciona então o direito como sustentáculo da dominação de classes, como instrumento de manutenção do status quo em face do constante antagonismo de classes existente na história humana. Nesse sentido, dizia Marx e Engels no Manifesto;
A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em resumo, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; (...). Nas mais remotas épocas da História verificamos, quase por toda parte, uma completa estruturação da sociedade em classes distintas, uma múltipla gradação de posições sociais. Na Roma antiga encontramos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média, senhores, vassalos, mestres de corporações, aprendizes, companheiros, servos; e, em cada uma destas classes, outras gradações particulares.(...)." [06]
Dedicada a verificar a gênese, o funcionamento e os antagonismos do modo de produção capitalista, a análise social empreendida por Marx não se limita aos fenômenos econômicos, mas observa os fenômenos sociais em sua totalidade, sobressaindo-se as relações econômicas e políticas como focos fundamentais, porém não exclusivos, de sua análise.
Releva sublinhar que para desnudar as contradições do modo de produção capitalista Marx remontara à organização econômico-social das sociedades primitivas, investigando as estruturas mestras dos modos de produção asiático, feudal e burguês. Sua perspectiva pretendia demonstrar, ao contrário do que cria Hegel, que é a realidade que determina a consciência humana, que o "ideal não é senão o material traduzido e transposto na mente do homem". Desse modo, sua teoria social desvelava as relações e influências existentes entre as condições reais de existência e as representações sobre o existir projetadas pelo homem concreto, real, situado no mundo da produção.
"Na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina a realidade, é a realidade que determina a consciência." [07]
Corroborando essa perspectiva, Marx deixara transparecer que o direito, sistema resultante das condições materiais de existência, a tais condições se inclina, em servil obediência. Portanto, o direito, emblemática expressão da ordem cultural e simbólica, seria emanação dos anseios da classe dominante haja vista que "as idéias dominantes de uma época sempre foram as idéias da classe dominante". (Marx, 1946:30)
O viés analítico marxiano sustenta, pois, a inevitabilidade de conflitos entre as forças materiais da sociedade com as relações de produção e, enfim, com as relações de apropriação da propriedade até então socialmente desenvolvidas. Isso porque a realidade natural e social evoluiria a partir das próprias contradições internas, de modo dialético. [08]. Nesse diapasão, não haveria idéias, leis e direito desvinculado de uma práxis social. Efetivamente, não restam dúvidas que o direito, parte integrante da abrangente realidade humana, forma-se com base em múltiplas e recíprocas determinações (culturais, sociais, naturais) derivadas dessa complexa realidade.
A lição que nos vem da teoria marxiana consiste no resgate da autorização do homem enquanto agente, autor e ator da história. Suas idéias contribuíram e contribuem para a concepção do humano como projeto, como vir-a-ser, e a concepção da história como fruto da ação humana consciente, não mais escrita ou ditada pelos "deuses", quer antigos ou modernos. No decurso da histórica realidade, o homem, entidade histórica, se descobriu determinado pelas condições objetivas de sua existência, mas também capaz de influir no curso da história – pessoal e coletiva – modificando-a por meio da práxis política, haja vista que toda ação humana envolve-se em relações de poder socialmente estabelecidas.
Emprestada, pois, a perspectiva marxiana para iluminar a realidade em estudo, resta-nos concluir que o direito babilônico – como de resto os demais sistemas que futuramente estudaremos - espelhou as marcantes características da sociedade do Oriente Próximo: uma sociedade escravagista, agrária, estratificada e profundamente enlaçada pelas representações religiosas. Seu conjunto normativo notabilizou-se, como não podia ser diferente, como instrumento fundamental de controle social manejado pela classe dos homens livres (sacerdotes, comerciantes, guerreiros, burocratas) em face do campesinato e da grande massa de escravos.
3.2-Aspectos da primitiva sociedade hebraica
As regras fundamentais do direito hebreu, inclusive aquelas atinentes ao culto sagrado, acham-se esparsamente dispostas em cinco livros: Êxodo, Gênesis, Levítico, Deuteronômio e Números, o conjunto chamado pentateuco. Antes de se verificar alguns elementos desse quadro normativo, impõe visitar a história jurídico-política dos hebreus manifesta em três grandes períodos: o patriarcado, o juizado e a monarquia. Esse percurso faz-se necessário porquanto se crê impossível apreender a experiência jurídica de um povo olvidando-se o substrato social do qual ela emerge. Tal suposição é sobremaneira válida em face dos hebreus haja vista que o direito desse povo afirmou-se justamente quando Israel surgiu, se organizou e se reconheceu com identidade própria, como povo, como nação.
A história dos hebreus remonta ao ano 2000 a C e situa-se em Canaã. [09] Nessa região, por volta do ano 2.000 a C, viviam os cananeus, descendentes dos amoritas, entre os quais encontramos variados povos mesopotâmicos como Abraão e seu grupo, vindos de Ur, na Caldéia, como também os clãs de Isaac e Jacó, todos chamados patriarcas do povo hebreu. A forma de organização social típica dessa época era a família patriarcal, um grande agrupamento de pessoas que incluía, além de pai, mãe e filhos, a prole casada e sua família, concubinas e escravos. Esse povo organizou-se inicialmente em tribos nômades e cada uma delas tinha como líder um patriarca com poderes sacerdotais e judiciários. Como a agricultura era ainda incipiente, transitavam pelas planícies mesopotâmicas em busca de água e pastagens, tendo, portanto, como base econômica a pecuária.
Naquela época, as cidades haviam-se constituído nas planícies férteis, próximas ao mar, e ali iniciaram ampla dominação sobre os camponeses. Assim, por volta de 1500 a C, as cidades-estado hebréias mantinham-se por meio de exaustiva tributação incidente sobre a massa camponesa, os quais, além do pagamento de impostos in natura, obrigavam-se ao trabalho forçado para o rei, a corvéia. De um modo geral, as cidades dominavam a vida no campo e não era incomum que as cidades-estado, para protegerem-se umas das outras e da pirataria generalizada, recorressem à proteção das milícias do faraó egípcio renunciando, para obtê-la, à autonomia econômica e política.
Nesse cenário, como reação à exploração econômica, à pobreza causada por conflitos intertribais e pelas dificuldades naturais, levas de trabalhadores rurais, buscando escapar ao controle político, refugiavam-se no campo, mantendo distância do poder real radicado nos núcleos urbanos palestinos. Outros grupos migravam para terras egípcias acalentados pela esperança de trabalho e sucesso. A respeito, e segundo conta a Bíblia, esses migrantes encontravam inspiração na experiência de José, um dos filhos de Jacó, que então vivia com êxito e prestígio na corte egípcia. Já outra parcela de trabalhadores preferia permanecer em Canaã, porém resistindo à exploração. Para tanto, organizavam-se em bandos armados (os hapiru, vocábulo utilizado para designar grupos errantes, socialmente marginalizados, não protegidos pela ordem social) com vistas a promover saques às rotas comerciais. Note-se que tanto o distanciamento da esfera de influência do poder governamental (o êxodo urbano), quanto o ataque ao seu funcionamento (a marginalidade criminosa) revelam as contundentes contradições sócio-econômicas praticadas na comunidade hebréia primitiva.
Após a organização patriarcal, os clãs hebreus reuniram-se em tribos, ampliando a sua organização sócio-econômica que passa a basear-se em interesses vários e não mais nos laços de consaguinidade. A posse de terras conduz à sedentarização e a criação de novos papéis sociais. Para zelar pela comunidade e administrar a justiça surge a figura dos juízes. Durante o juizado, prevalecera certa harmonia social: as terras eram distribuídas por sorteio cuja propriedade era coletiva, das tribos, o poder político era compartido e as leis criadas comunitariamente.
Durante o período da monarquia (cerca do ano 1000 a.C) a situação desse povo era bem diversa: a gradual apropriação de melhores e maiores porções agrárias havia criado latifúndios e irreparáveis distinções de classe; as cidades haviam-se formado em torno do poder real que instituíra pesada tributação sobre os camponeses; os núcleos urbanos fomentavam práticas de exploração, corrupção, idolatria religiosa, além de fornecerem amplo deleite a funcionários estatais e milícias reais em oposição à dura vida e à pobreza dominante no campo. Em conseqüência desses e de outros fatores, no século VIII, Israel dividiu-se em duas, Israel e Judá, essa última dominada, no ano VI, pela Babilônia.
Quanto ao ideal de justiça, na era patriarcal identificado como sinal de fidelidade a Deus e afeição ao próximo, fora ofuscado na época monárquica quando a corrupção do sistema administrativo e judiciário tomou dimensões absurdas. Rebelando-se contra a deformidade do sistema jurídico e político muitas vozes se rebelaram. Merece destaque a contundente denúncia do movimento profético, capitaneado por profetas como Isaías, Jeremias, Amós e tantos outros.
3.2.1- O direito hebreu
Narra a Bíblia que durante o Patriarcado os hebreus foram dominados pelos egípcios. Como dito, naquela época era comum que em períodos de secas os camponeses migrassem para as férteis terras banhadas pelo Nilo em busca de trabalho. Lá eram recebidos ao custo de se submeterem a trabalhos em obras do faraó, sob severo regime de escravidão [10].
Com o tempo, decepcionados com as falsas promessas de sucesso fora da terra de origem e esgotados pela exploração, os migrantes cananeus arquitetaram a fuga do Egito outorgando, no curso do longo regresso, a liderança de tal feito a Moisés. Por ocasião da volta à terra prometida e em função da necessidade de impor regras à difícil convivência da ampla e dispersiva multidão camponesa, é que surgiram os Dez Mandamentos ou o Decálogo, importante conjunto de preceitos ditados por Deus a Moisés os quais se destinavam a reger as relações de um aglomerado de pessoas de raças, culturas, línguas e regiões diferentes, uma "multidão misturada," como qualificara o livro do Êxodo.
A verificação dos relatos bíblicos autoriza inferir que a constituição do direito hebreu defluiu de três fatores capitais: a) da carismática liderança exercida por Moisés à frente de um grupo rebelde e heterogêneo, b) da necessidade de enfrentar os imponderáveis riscos da perigosa travessia do deserto e a inerente conflitividade decorrente da longa convivência social e c) da paulatina consolidação da crença num deus único, atuante na história e cultuado como divindade libertadora da opressão.
Efetivamente, Moisés fora um paradigma de liderança. Soubera conduzir, com êxito, um grupo de estranhos identificados inicialmente apenas pelo ideal da fuga. A unidade desse povo seria conseguida somente depois, a duras penas, a partir da convivência no deserto. Naquele momento, além da hostilidade natural e dos variados conflitos internos, pairava sobre os migrantes o risco de ataque de piratas. Desse húmus histórico é que surgiriam leis cuja observância se tornaria imprescindível à penosa travessia. Tais leis foram concebidas como uma Aliança celebrada entre Deus e o povo cujo arauto fora Moisés:
"E Deus falou todas essas palavras, dizendo: "Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egito, da casa da servidão: não terás outros deuses diante de mim (...) honra teu pai e tua mãe, a fim de que teus dias se prolonguem sobre a terra que o Senhor, teu Deus, de dá. Não cometerás homicídio. Não cometerás adultério. Não raptarás. Não prestarás testemunho mentiroso contra teu próximo. Não cobiçarás a casa de teu próximo. Não cobiçarás a mulher de teu próximo, nem o teu servo, sua serva, seu boi ou seu jumento, nada que pertença a teu próximo." [11]
Destaque-se que os hebreus distinguiam as noções de direito e justiça, identificando essa com o desígnio divino e, portanto, como sentimento superior àquele. De um modo geral, o sentimento de justiça, entendida como amparo aos pobres, como fraternidade e obediência à vontade divina, envolvia, em essência, todo o sistema jurídico hebreu. Nessa direção aponta o magistério do biblista Léon Epsztein que aponta a existência de dois vocábulos naquela cultura para se referir à justiça: mishpat e çedeq. O primeiro, usavam para se referirem tanto ao direito quanto à justiça. A raiz desse vocábulo (shapat) evoca a idéia de julgar, de pronunciar uma sentença, referindo-se à justiça aplicada pelos tribunais. Por força da atuação dos profetas, esse termo imiscuiu-se em profundo conteúdo religioso. Já a palavra çedeq vinculava-se à prática da equidade nos julgamentos. Era evidente a prevalência do ideal de justiça-equidade sobre o direito ou leis materiais e processuais do direito hebreu. Nas palavras do referido biblista, isso significava apreciar as leis com vistas a alcançar o ideal de transcendentalidade nelas contida. Várias passagens ilustram o desiderato hebreu de justiça:
"(...) Os juízes não deveriam julgar com parcialidade, mas com justiça (Lv 19,15; Dt 1,16) e seus veredictos têm de ser justos ( Pr 31,19; Dt 16,18.20); o processo ilegal derruba a justiça (Am 5,7) e transforma o direito em veneno (Am 6,12); a corrupção da justiça deturpa os processos justos e os direitos do inocente ( Is 5, 23)" [12]
Veja que o ideal moral da justiça prevalecia e informava o regramento legal, as normas e sua aplicação. Mckenzie [13], citado por Sella (2003:71), aduz que a idéia hebraica de justiça consistia tanto na reivindicação de um direito, quanto na prática justa de um processo pelo qual se reivindicava o próprio direito ou se afirmava a própria inocência. Resgata ainda Sella as teses de outro estudioso, Pinzetta, para afirmar a predominância da religiosidade sobre o direito, demonstrando a confusão da terminologia jurídica com a teológica. Naquele sistema jurídico, Pinzetta, "é Deus que dá a sentença. Ele é o ponto de referência. Se a sentença do juiz não for de acordo com a sua, não há justiça (cedaqah). Portanto, para haver a çedaqah é preciso agir conforme a Lei de Deus". [14]
Citando variadas passagens do Antigo Testamento, Sella (2003:73) demonstra que o ideal do justo na antiga sociedade hebraica manifestava-se sob quatro formas básicas: a) compromisso da autoridade (juiz, rei) de fazer justiça, integrando o pobre no seu direito; b) manutenção de conduta compatível com os preceitos divinos; c) busca da sabedoria, ou seja, a justiça como sendo a sabedoria posta em prática; d) a justiça como sendo o reconhecimento divino pelas boas obras, uma recompensa devida aos justos.
Importa sublinhar que a totalidade dos exegetas reforça a constante preocupação social das leis semíticas manifesta na proteção do pobre e do injustiçado. Nessa direção, Sella (2003:74), agora com suporte na pesquisa de Léon Epsztein, reitera a prevalência da religiosidade sobre a experiência jurídica de Israel, de modo a submeter "o legislador (rei ou juiz) à vontade de Javé (...) porque ele recebeu de Deus as virtudes do direito e da justiça, mishpat e çedaqah ( Sl 72,1)". Esta prevalência traduz radical diferença entre o direito hebreu e os demais, como o egípcio, haja vista que naquele os reis e juízes eram concebidos como simples arautos da justiça divina e não os seus criadores. Nas palavras do autor:
As diferenças entre o rei em Israel e o faraó do Egito é que o rei israelita tem somente um papel instrumental e funcional à vontade de Javé, ou seja, uma função judiciária e sem criar o direito, pois a fonte de direito é Deus. Isto é, o rei israelita não tem um poder legislativo como o faraó. O papel do rei é restituir o direito sobretudo protegendo os fracos e os pobres, as viúvas e os órfãos. A outra diferença é que a justiça não é procurada pela vantagem econômica e política como era nos outros povos vizinhos. A justiça semita tem o próprio objetivo de fazer privilegiar o direito e, por isso, é fortemente marcada pela imparcialidade. Nesse sentido, os códigos israelitas são claros: "Não cometam injustiças no julgamento. Não seja parcial para favorecer o pobre ou para agradar o rico: julgue com justiça os concidadãos" (no Código de santidade: Lv 19,15); no Deuteronômio 1,17 está escrito: "Não façam acepção de pessoas no julgamento: escutem de maneira igual o pequeno e o grande". [15]
Afora essas e outras substanciais diferenças, o direito hebreu também guardava algumas semelhanças com a ordem jurídica de povos vizinhos. Tal se deve à proximidade geográfica de várias outras etnias, como também à dominação a que foram submetidos os hebreus ao longo de sua trajetória. Nesse sentido, demonstrando o peso da cultura sobre a configuração do sistema jurídico, o direito hebreu, tal como o mesopotâmico, previa penas severas, tal como a pena de morte, para atos como desacato moral ou agressão física à autoridade paterna ou materna. [16] De modo especial, por força da influência cultural mesopotâmica, os hebreus conheciam o princípio de talião, inserto no livro doÊxodo:
"Quem ferir mortalmente um homem será morto (...). E quando homens em briga ferirem uma mulher grávida, mas a criança nascer sem problema, será preciso pagar uma indenização, a ser imposta pelo marido da mulher e decidida por arbitragem. Mas se acontecer dano grave, pagarás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, contusão por contusão." [17]
O livro do Êxodo traça ainda várias outras regras dedicadas a ordenar o uso de bens, a destinação da propriedade agrária e as obrigações em geral (como o empréstimo).
Na esfera familiar, embora consentisse na poligamia, aquele direito impunha indenização ao pai na hipótese de sedução de filha virgem por varão não compromissado ao casamento, sancionava mortalmente a zoofilia, condenava a homofilia e repelia o incesto. [18] Já no campo social, ocupava-se da proteção do migrante, da viúva e do órfão, bem como condenava veementemente a usura, disposição essa, conservada até hoje pelo direito canônico.
Interessante é que a corrupção também recebera tratativa naquele direito. Fenômeno ancestral, cuja prática e repressão se verifica em variados tempos e lugares [19], a corrupção desde sempre transita com desenvoltura no espaço público, manifestando-se nas funções de administração, legiferação e jurisdição. Em face dessa constatação é que vários trechos do Pentateuco admoestam para a observância da imparcialidade dos julgadores e a lealdade das partes no exercício de atos processuais, nos julgamentos, verbis:
"Não espalharás (ou receberás, se juiz) boatos sem fundamento. Não tomes o partido de um culpado, dando um testemunho falso. Não seguirás uma maioria que quer o mal, e não intervirás num processo inclinando-te em favor de uma maioria parcial. Não favorecerás com parcialidade um fraco no seu processo (...) Não falsificarás o direito do teu pobre no seu processo. Manterás distância de uma causa mentirosa (...) Não aceitarás propinas, pois a propina cega as pessoas lúcidas e compromete a causa dos justos". Após este excerto contido no Êxodo, adiante, no Levítico, outra regra (já citada alhures) dirige-se especificamente ao julgador: "não cometais injustiça nos vossos julgamentos: não dês vantagem ao fraco e não favoreças o grande, mas julga com justiça o teu compatriota." [20]
Ao estudarmos o direito hebreu urge considerar que uma das grandes questões desse grupo consistiu em haverem-se constituído como povo sem antes possuírem uma pátria. Fora justamente a partir da travessia do deserto – logo em terra estrangeira- que os hebreus se reconheceram como povo para, somente após, se enraizarem num território. E, ao que parece, apenas por ocasião do retorno do Egito – quando pactuaram o Código da Aliança – é que os hebreus se tornaram efetivamente sedentários e se reorganizaram em torno dos chefes militares chamados Juízes, lideranças guerreiras, políticas e religiosas.
Durante o juizado, estruturados de forma associativa, buscaram promover a defesa comum contra povos vizinhos e fomentaram a prosperidade econômica coletiva. Fizeram-no mediante a criação da denominada confederação das doze tribos de Israel, que durou cerca de 200 anos. Nessa confederação, as leis previam a propriedade coletiva da terra (porque cria-se que Deus era único dono dos bens), proteção aos pobres e a descentralização do poder político - compartilhado entre as famílias - as quais possuíam seus líderes, os anciãos. Em épocas de ameaça externa, escolhiam-se chefes militares, os chamados juízes. Todas as famílias participavam das decisões políticas mediante sua organização na assembléia ou no conselho das tribos. As leis não apenas garantiam o uso coletivo da terra e a defesa dos mais fracos, como órfãos e viúvas, mas também zelavam pela unidade do culto monoteísta, no qual os israelitas professavam a fé num deus presente na realidade cotidiana, um deus militante e libertador (isra-el, deus luta, em hebraico). O governo dos juízes assinalou o fim do período patriarcal. Os juízes mais conhecidos foram Gedeão, Sansão e Samuel, esse último, idealizador da instalação de um governo monárquico para os hebreus.
O declínio do equilíbrio (econômico, jurídico e político) típico do regime da Liga das Tribos viria findar-se graças à diferenciação econômico-social surgida entre as famílias. Seguindo a trilha das teses defendidas por Marx, o crescimento econômico obtido por algumas tribos faria surgir diferenças sociais, políticas e ideológicas intransponíveis no seio daquela confederação político-religiosa, trincando-lhe a harmonia. Também contribuíra para a queda da Liga a necessidade de segurança diante das constantes ameaças representadas por estrangeiros, bem assim o intuito expansionista e comercial promovido pela produção de excedentes econômicos por parte de famílias enriquecidas. Tais mudanças repercutiriam na organização do poder político então praticado. E como quem detém poder econômico detém poder político, a centralização do poder tornou-se inevitável: para corresponder às novas necessidades implantara-se o regime monárquico, em 1052 a C, sob a liderança de Saul. Entre outros principais monarcas, registra-se Davi e Salomão. Com a morte deste, o reino de Israel dividira-se em dois: o reino de Judá, ao sul, e o de Israel, ao norte.
A alternativa monárquica, que surgiu como saída para graves problemas, converteu-se em outro ainda maior. O advento do regime monárquico fez recrudescer a concentração de poder nas cidades, principalmente nas capitais Samaria e Jerusalém. Nesse período, as cidades voltaram a representar o pior da cultura daquele povo: núcleo irradiador de corrupção, da exploração dos pobres, da idolatria e muitas outras perversões. Na esfera do direito, a crença na justiça caíra em profundo descrédito. A justiça tornara-se instrumento legitimador do poder manifesta no desvirtuamento das leis, na prática de julgamentos tendenciosos os quais foram veementemente combatidos por pregadores (lideranças chamados profetas) como o campesino Amós que, exortando os governantes e magistrados, dizia:
"Vocês vendem o homem justo por dinheiro e o indigente por um par de sandálias. Vocês esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos. Vocês transformam o direito em veneno e derrubam a justiça." Em severa crítica à falsa justiça praticada pelos juízes do povo, à falta de retos critérios de afirmação do justo na conturbada sociedade israelita, dizia o profeta: " Acaso cavalos galopam sobre rochedos, e lavra-se aí com bois, para fazerdes com que o direito se torne veneno, e o fruto da justiça, uma cicuta?". [21]
Enfim, a derradeira decadência da sociedade hebraica tivera lugar no período monárquico. Com o tempo, tanto o reino do norte quanto o do sul, após sucessivas crises econômicas, sociais e religiosas, caíram sob o domínio de novas superpotências. O norte fora dominado pelos assírios por volta do século VIII a C e o sul, Judá, sucumbira ante o poder dos babilônicos, no século VI a C, promovendo-se, então, a primeira diáspora do povo hebreu. No século VI, os hebreus, libertos pelo rei Persa, Ciro, retornaram à Palestina e lá constituíram um pequeno Estado na região de Judá, sendo a partir de então chamados judeus. Posteriormente, os gregos, os macedônios e os romanos também dominaram a Palestina. [22]