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Por um ensino contextualizado do Direito

Agenda 05/04/2011 às 19:13

Sinto-me assim também. Não sei ensinar chegadas, só partidas. [...] conclusões são chaves que fecham (do latim con e cludere, fechar). [...] Cada conclusão faz parar o pensamento. Rubem Alves [01]

O ensino jurídico proposto pelos nossos currículos desestimulam as práticas de cidadania, convertem os estudantes em meros expectadores dos modelos já definidos, impedindo qualquer interação e extirpando qualquer centelha de autonomia.

Os professores são, em sua maioria, profissionais com outras profissões, que fazem do magistério uma carreira lateral, porque nesta carreira são mal remunerados e, não raro, reproduzem, no espaço curto de sua aula, os conceitos que já constam dos livros ou que estão presentes nos textos legais.

Roberto Aguiar [02] afirma que o direito vive um paradoxo, tratado de modo linear e determinista de um lado e apresentando uma complexidade extrema de outro:

Essa criação é complexa, contraditória, paradoxal e mutável, constituindo-se em expressão lingüístico-normativa dos movimentos e poderes das sociedades. Ora, é esse mesmo fenômeno social, cultural, ético, biológico e natural que é tratado por linearidades pobres, visões redutoras e por conceitos que não dão conta dessa estrutura polifacetária.

Sem compreender essa complexidade, afastamos das salas de aula o mundo com sua assimetria, sua estética duvidosa e deixamos de fora, no sentido de uma crítica posicionada e madura, as questões referentes à sobrevivência humana.

Eduardo Bittar [03], tratando de uma autonomia pretendida no ensino do Direito, refere que é preciso abandonar a apatia diante do real e tocar o espírito humano.

Cada geração viveu episódios obscuros, situações libertadoras, dilemas éticos, grandes traumas coletivos. Não é privilégio nosso viver os controvertidos sentidos da humanidade, que segue sua marcha secular, gerando transformações, criando, destruindo.

Educar, para este momento, exige mais do que nunca esta postura de compreensão do estágio em que se encontra a humanidade, numa análise holística de toda a realidade política, social, jurídica, econômica; do caldo social que oferece ambiente propício para a construção e reconstrução do ideário libertador, mágico e eterno, que ronda nossa condição humana. Esta a tarefa que se nos impõe.

Trata-se da compreensão do momento histórico e da aceitação de que estamos desafiados para uma nova leitura do tecido social, como sempre estivemos, na defesa de Mario Sergio Cortella [04]:

A educação está em crise!

Em algum momento de nossa história republicana (nascedouro, ainda que pífio, do tema da escola pública), essa frase terá deixado de ser dita? Algum educador consegue recordar-se da ausência dessa crise? Provavelmente não.

A crise da Educação tem sido inerente à vida nacional porque não atingimos ainda patamares de uma justiça social [...] A crise educacional tem raízes estruturais históricas e se manifesta de formas diversas em conjunturas específicas[...]

Ou seja, não é privilégio destes tempos vivermos uma crise, mas é tarefa deste tempo propor uma leitura adequada do momento histórico e das lutas desta sociedade, mesmo porque o Direito somente se apresenta, ou ganha relevo, ou tem importância, quando qualquer aspecto das relações sociais se apresenta em desarmonia.

Como reflete Fracisco Carnelutti [05], não teria qualquer importância para a sociedade a existência do Direito ou dos sistemas jurídicos, se não houvesse uma potencialidade conflituosa nas relações humanas. O pai, ao emprestar o carro para o filho, não faz um contrato de comodato, porque nesta relação existe o amor, que prescinde por completo da experiência do Direito.

E nascido da crise permanente das relações humanas, o Direito não pode ser ensinado ou aprendido de modo estanque e separado. Não se pode pretender desenvolver uma "cultura jurídica" a partir da mera comunicação dos textos legais aos estudantes. É preciso ir mais fundo.

E como ensinar o direito dialogado a uma geração de jovens apáticos, desligados das grandes lutas que incandesceram as gerações passadas, perguntariam os professores.

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De fato, chegam às universidades os netos dos homens e mulheres que passaram pelos difíceis tempos da ditadura. Os jovens, preservados que foram da realidade mais cruel, não conseguem se envolver: movimentos estudantis se apagam no nascedouro, são anêmicos; crimes grotescos, desastres naturais e toda gama de eventos destruidores são observados de longe, sem envolvimento.

Se isso é verdade, precisamos descobrir as fórmulas, os meios de motivar nossos estudantes.

Adriana Cristine Dias Locatelli [06] ensina que motivação, numa definição geral, é "o processo que mobiliza o organismo para a ação, a partir de uma relação estabelecida entre o ambiente, a necessidade e o objeto de satisfação." E ela complementa afirmando que "todos temos motivos que justificam nossas ações. Esses motivos são constructos criados para explicar a razão ou a necessidade que temos de agir de determinada maneira, em situações as mais diversas".

Portanto, é preciso encontrar a motivação, primeiro no professor, que conduzirá os estudos e métodos até a nova compreensão do fenômeno jurídico; depois dos alunos, que serão naturalmente conduzidos a estar no mundo de maneira diferenciada, compartilhando dele, transformando-o. É a localização do estudante no seu tempo e no seu espaço. Um convite irrecusável para que estejam no mundo, tecendo seus contornos.

Aliás, o papel transformador do Direito, como o foi em diversas passagens de nossa história, produzindo homens bons e melhores, que assumam a missão de reduzir as desigualdades e de cumprir os ideais expressos na Constituição Federal, deveria ser material de cotidiana reflexão.

Ao invés, o que se vê, com honrosas exceções, são professores extremamente autocentrados, egocêntricos, expondo sua vasta cultura jurídica aos pobres alunos, vistos como folhas em branco.

A Professora Marilia Muricy [07] recorda que, ao ser identificada uma crise no ensino jurídico, ficaram expostas questões como o ensino "doutoral" do direito, em aulas expositivas, monologadas e com abuso dos "argumentos de autoridade". Tudo isso consentido, reproduzindo o direito como sistema fechado de prescrições normativas.

E embora em essência o direito não possa prescindir da interpretação, ele prosseguiu sendo ensinado em lições, sem diálogo, sem o mergulho no mundo, asséptico e limpo.

E o pior: identificada a crise, prosseguimos ainda na mesma toada. Professores continuam "lecionando" o direito, portadores da verdade absoluta sobre as normas que ensinam, sem permitir nenhum protagonismo aos alunos.

Em verdade, abandonar a certeza que o encastelamento do direito promove e arriscar-se a confrontar a realidade, fazendo dela retratos por diversos ângulos, importa abrir mão de poder.

As caricaturas que a realidade, insondável, ampla e desconhecida pode trazer à baila assustam desde seu vislumbre.

Largar a casca, como a personagem de Clarissa Pinkola Estes [08], explorando um mundo novo, é arriscado e pode parecer insensato.

Então, é preferível permanecer no "chiqueirinho" como ensinava meu saudoso professor de processo civil, Toshiharu Yokomisu [09], ao explicar os limites da petição inicial. O cercado, as classificações são elementos apaziguadores do espírito e nos cercam de certezas e de poder. Já a contextualização nos escapa, resvala em coisas novas, assusta pela surpresa e pelas inúmeras variáveis que podem apresentar.

Ouvindo uma das brilhantes palestras do Prof. Arnaldo Godoy em certa ocasião, vislumbrei a história de Olga Benário Prestes por um ângulo totalmente novo, que aquele professor explorava. Sobressaltada pensei que aquela versão nunca me ocorrera, que aquela análise me parecia totalmente nova, embora tivesse lido tantas coisas sobre Olga. Isso é o que faz um professor que ensina num contexto; que indica outros caminhos; que descortina outro pano de fundo, como um hábil retratista que apresenta o mesmo desenho sobre diversos fundos diferentes, permitindo que cada um tenha a oportunidade de ver as mais diversas tonalidades porque nenhuma delas é única, é melhor ou é pior que as outras. Elas existem simplesmente, lado a lado, e enriquecem nossa visão de mundo.

Rubem Alves [10] revela poeticamente que se sentiu menos professor quando descobriu que preferia as perguntas e não as repostas:

Um bom professor é uma criatura luminosa. Onde quer que vá, a escuridão desaparece. Tem mesmo o costume de levar vela e fósforos dentro do bolso, que acende sempre que encontra um canto obscuro em seu texto: notas de rodapé...

Minha suspeita de que eu não era mais um professor respeitável se tornou certeza quando descobri que, em vez de acender luzes, eu preferia apagá-las.

E ele revela que ficou assim quando mostrou seus poemas a um poeta e esse lhe teria dito "você não sabe que uma ideia clara faz parar a conversa, enquanto uma ideia mergulhada na sombra dá asas às palavras e a conversa não tem fim?"

Pois é, o professor deve, então, ao invés de portar as certezas, borrar os contornos da verdade em que acredita, apresentando o direito dentro do contexto das múltiplas realidades que o encerram e o formam.

"Nessa viagem queremos visitar uma educação que transcenda as propostas uniformizadoras da modernidade. Precisamos, assim, ultrapassar a educação – hoje vivida – que exclui, segrega, estigmatiza e esquece o outro diferente" como escolhe Luisa Marillac [11] e eu ousaria acrescentar, a educação que se esconde da realidade, que se fragmenta como forma de esconder-se, tal qual a personagem Lince Negra, dos X-Men, cujas habilidades podem ser utilizadas também para atravessar, literalmente, as paredes.

A contextualização que propomos passa pelo esquema de ensino superior com responsabilidade social, de que trata o prof. José Geraldo de Sousa Junior [12]:

Isso significa [...] romper os muros de marfim da universidade prisioneira de si mesma por meio de um atributo essencial: a equidade, ou seja, a capacidade de transferir, efetivamente, aos setores mais amplos da sociedade, os frutos da atividade acadêmica.

A contextualização é justamente a forma de permitir que o maior número de caricaturas seja posta aos estudantes, contaminando-os com sua existência.

E a tarefa não pode mais ser adiada. É urgente que a necessidade de reaprendermos a ensinar Direito, de nos ocuparmos de fórmulas que efetivamente auxiliem nossos estudantes a encontrar, no cipoal de textos legais e interpretações doutrinárias e jurisprudenciais, sentido do Direito funcional, do Direito vivo, palpitante, que realmente interfere na realidade para torna-la mais palatável.

Não há tempo a perder: ou fazemos agora o esforço e formamos profissionais mais comprometidos com a harmonização social ou continuamos com apenas um pequeno e acanhado exército apto a combater as mazelas sociais por meio das diversas profissões jurídicas.

Contextualizados os estudantes de hoje se tornarão profissionais comprometidos amanhã, porque simplesmente terão esse caminho a seguir.

É preciso apenas lhes retirar o véu que teima em afastar a realidade das belas e sedutoras formulações teóricas, como aquela que nos concebe como uma sociedade livre, justa, plural e solidária.


Notas

  1. ALVES, Rubem. Lições de Feitiçaria: Meditações sobre a Poesia. P. 28/29. São Paulo: Edições Loyola, 2003.
  2. AGUIAR, Roberto A. R. de. Habilidades: ensino jurídico e contemporaneidade. P. 11. - Rio de Janeiro, DP&A, 2004.
  3. BITTAR, Eduardo C.B. Estudos Sobre Ensino Jurídico. 2ª ed. rev., modificada, atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2006.
  4. CORTELLA, Mario Sérgio. A escola e o conhecimento: fundamentos epistemológicos e políticos. 7ª ed. p. 09. – São Paulo: Cortez – Instituto Paulo Freire, 2003. (Coleção Prospectiva: 5).
  5. CARNELUTTI, Francisco. A arte do Direito (Seis meditações sobre o Direito). Tradução de Pinto de Aguiar. Salvador-BA: Livraria Progresso Editora, 1957
  6. LOCATELLI, Adriana Cristine Dias. Exercitando reflexões com conversas de professores. P. 73. Londrina: Grafcel, 2005.
  7. MURICY, Marilia Aprendendo direito o Direito. OAB Ensino Jurídico – O futuro da universidade e os cursos de direito: novos caminhos para a formação profissional. P. 57/60. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2006
  8. ESTES, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com lobos: Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Trad. Waldéa Barcellos. P. 193/196. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
  9. Professor da Universidade Estadual de Londrina, 1989/1991.
  10. ALVES, Rubem. Op. Cit. p. 28
  11. MARILLAC, Luisa de. O direito entre togas, capas e anéis. P. 71/72. Porto Alegre: Núria Fabris, 2009
  12. SOUSA JUNIOR, José Geraldo. Responsabilidade Social das Instituições de Ensino Superior. OAB Ensino Jurídico – O futuro da universidade e os cursos de direito: novos caminhos para a formação profissional. p. 17/18. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2006
Sobre a autora
Marilene de Souza Polastro

Mestre em Direito. Coordenadora do Curso de Direito da União Pioneira de Integração Social - UPis, em Brasília (DF). Assessora-Chefe do Conselho Nacional de Justiça.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POLASTRO, Marilene Souza. Por um ensino contextualizado do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2834, 5 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18838. Acesso em: 26 dez. 2024.

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