RESUMO
A discussão sobre o direito real de habitação no direito brasileiro não foi inserida pelo Código Civil de 2002, pois a própria codificação anterior, com suas alterações posteriores, já trazia a previsão quanto a sua garantia, inclusive estendendo-a ao companheiro sobrevivente na união estável e ao filho deficiente impossibilitado ao trabalho. Na ordem jurídica atual é destinado um novo contorno ao exercício do direito real de habitação, dispensando a necessidade de manutenção do estado de viuvez e garantindo-o independentemente do regime de bens. Diante do silêncio da Lei n.º 10.406/2002, cumpre discutir sobre a possibilidade do exercício do direito real de habitação pelo convivente sobrevivente, à luz da vigência ou não da Lei n.º 9.278/1996, da Constituição Federal e do reconhecimento da união estável enquanto entidade familiar.
PALAVRAS-CHAVE: Direito real de habitação. União estável.
RÉSUMÉ
Le débat sur le droit réel au logement en vertu de la loi brésilienne n'a pas été inscrit par le Code Civil de 2002, comme l'encodage précédent, avec ses modifications ultérieures, avait déjà prévu sur sa sécurité, y compris en l'étendant à l'autre survivant unon stable et l'enfant handicapé incapable de travailler. Dans la ordre juridique actuelle est pour un nouveau contour à l'exercice effectif du droit au logement, ce qui élimine la nécessité de maintenir un état de veuvage et d'assurer les sans distinction de regime marchandises. Étant donné le silence de la Loi n.° 10.406/2002, il convient de discuter de la possibilité d'exercer le droit réel au logement par cohabitant survivant, à la lumière de la présence ou l'absence de la Loi n.° 9.278/1996 de la Constitution Fédérale et la reconnaissance des union stable comme une entité familiale.
MOTS-CLÉS: Droit réel au logement. Union stable.
1 INTRODUÇÃO
No presente trabalho pretende-se realizar um breve debate sobre o direito real de habitação no ordenamento jurídico brasileiro, efetuando um curto passeio pelo seu desenvolvimento histórico, passando a definir seus contornos atuais e discutir a extensão de sua garantia ao companheiro sobrevivente sob a união estável, à luz da equiparação desta à categoria de entidade familiar e à elevação do direito à habitação enquanto garantia fundamental, ambos expressos na Constituição.
2 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO
Primeiramente, cumpre ressaltar que o direito real de habitação não é novidade advinda da Lei n.º 10.406, de 9 de janeiro de 2002, o novo Código Civil. Tal garantia já compunha o direito sucessório brasileiro nos termos do artigo 1.611, parágrafo 2º, do Código Civil de 1916, conforme alteração inserida pela Lei 4.121/62 (Estatuto da Mulher Casada), do qual se extrai:
Ao cônjuge sobrevivente, casado sob regime de comunhão universal, enquanto viver e permanecer viúvo, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela natureza a inventariar.
Da dicção do referido dispositivo do diploma civil revogado, observa-se que tal direito estava apenas firmado ao cônjuge sobrevivente desde que atendidas simultaneamente duas condições. A primeira era estar casado sob o regime de comunhão universal de bens, a segunda era perdurar na situação de viuvez.
Posteriormente, por ocasião da edição Lei n.º 9.278, de 10 de maio de 1996, por intermédio de seu parágrafo único, do artigo 7º, foi deferido idêntico tratamento ao companheiro sobrevivente da união estável, no tocante ao imóvel destinado a residência da família. Deve-se apenas fazer a ressalva de que ao contrário do Código Civil de 1916, não faz nenhuma referência quanto a necessidade de se constituir em único imóvel da entidade familiar.
Escapando um pouco da seara marital, a Lei n.º 10.050, de 14.11.2000 estendeu, na ausência de pai ou mãe, o direito real de habitação ao filho portador de deficiência que o impossibilite ao trabalho. Apesar de revestido de caráter humanitário, tal preceito normativo não foi renovado no Código Civil vigente. Talvez pelo entendimento de significar ofensa ao mandamento constitucional da igualdade jurídica entre todos os filhos.
Não se pode deixar de aqui registrar que perdeu o legislador boa oportunidade de dar continuidade a um avanço normativo, no sentido de reconhecer o princípio da igualdade como uma garantia de compensação de desigualdades.
Deste breve percurso histórico, pode-se inferir que o direito real de moradia há muito já é instituto conhecido do direito brasileiro. Deve-se agora partir para a análise de seu atual contorno, conforme insculpido no Código Civil vigente, instituído pela Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
3 OS ATUAIS CONTORNOS DO DIREITO REAL DE HABITAÇÃO
No ordenamento jurídico vigente o direito de habitação está estruturado entre os Direitos Reais, nos termos do artigo 1.225, inciso VI, do Código Civil de 2002, tendo sua disciplina específica prevista nos artigos 1.414 a 1.416 da mencionada codificação. No entanto, sua principal incidência nas relações jurídicas se dá por ocasião de sua garantia ao cônjuge sobrevivente, expressamente firmada no artigo 1.831 do referido diploma legal, do qual se extrai:
Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.
Trata-se de direito real, personalíssimo e insuscetível de cessão. Consiste na possibilidade de moradia de seu titular e sua família em residência alheia, ou de sua propriedade não exclusiva, não podendo ser transferido, nem exercido por outrem.
Deste modo, pode-se tautologicamente definir o direito de habitação no atual ordenamento jurídico como:
[...] direito que tem o cônjuge sobrevivente, independente do regime de bens de seu casamento, de permanecer residindo na morada do casal após o falecimento de seu consorte, desde que aquele imóvel, que era usado para moradia, seja o único bem de natureza residencial a ser inventariado, não havendo limitações temporais ao exercício do direito aqui assegurado, de tal forma que o cônjuge sobrevivente o detém de maneira vitalícia (PINTO, 2010).
Verifica-se indubitavelmente que o direito real de habitação do cônjuge tem por objeto exclusivo o bem imóvel de fins residenciais, sendo exercido pelo uso direto e pessoal como moradia.
Assim, percebem-se algumas alterações da atual sistemática do direito de habitação em confronto com sua disciplina no Código Civil anterior. Em primeiro lugar, há que se falar que tal direito assiste ao cônjuge sobrevivente independentemente do regime de bens, dispensado a antiga necessidade de comunhão universal. Desta assertiva, depreende-se o entendimento segundo o qual a nova regulamentação legal quis proteger o cônjuge sobrevivente - qualquer que seja o regime patrimonial marital - garantindo a continuidade de seu status residencial de modo a proporcionar-lhe o mínimo de segurança e estabilidade após o falecimento de seu consorte.
Outra inovação trazida pela atual redação do direito de habitação é a dispensa da permanência do estado de viuvez para a continuidade de seu exercício. Hodiernamente, independentemente da modificação ou não da condição civil do cônjuge sobrevivente, este faz jus ao direito de habitação, constituindo-se em direito sucessório personalíssimo. Pode, inclusive, contrair novas núpcias, não sendo tal fato obstativo de sua permanência no imóvel objeto do direito de habitação [01].
Por conseguinte, pode-se concluir que para a configuração das condições para o exercício do direito de habitação do cônjuge supérstite são necessários apenas dois requisitos. O primeiro deles é que deve existir apenas um único imóvel de natureza residencial a inventariar. Deste modo, a existência de mais de um imóvel de propriedade comum ou exclusiva do de cujos, obsta o exercício do direito de habitação. O segundo critério é a exigência de que a unidade residencial seja utilizada para moradia do casal. De modo contrário, a existência de um único imóvel, porém não destinado à morada dos cônjuges, não ensejará o exercício do direito de habitação.
É importante ressaltar que o cônjuge supérstite não sofre nenhum prejuízo em seus diretos sucessórios por ocasião da utilização do direito de habitação. No entanto, compete ressaltar que o seu exercício não tem o condão de fazer integrar o imóvel objeto no seu acervo patrimonial. Trata-se de direito personalíssimo e intransmissível. Neste sentido, são precisas as palavras de Orlando Gomes ao afirmar que:
O cônjuge sobrevivo não se torna herdeiro pela atribuição do direito real de habitação, senão legatário legítimo, com as seqüelas próprias de semelhante condição (2008, p. 65) (grifo do autor).
Deve-se ainda registrar que apesar de o direito real de habitação gravar o imóvel enquanto viver o cônjuge sobrevivente (GOMES, 2008, p. 65), não há necessidade de registro imobiliário para o seu reconhecimento, haja vista resultar de direito de família, sendo desnecessária seu registro, nos termos do art. 167, I, 7, da Lei n.º 6,015/1973 (Lei de Registros Públicos) e em conformidade com o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça:
Embargos de terceiro. Direito real de habitação. Art. 1.611, § 2º, do Código Civil de 1916. Usufruto. Renúncia do usufruto: repercussão no direito real de habitação. Registro imobiliário do direito real de habitação. Precedentes da Corte.
1. A renúncia ao usufruto não alcança o direito real de habitação, que decorre de lei e se destina a proteger o cônjuge sobrevivente mantendo-o no imóvel destinado à residência da família.
2. O direito real de habitação não exige o registro imobiliário.
3. RECURSO ESPECIAL conhecido e provido (REsp 565820 / PR RECURSO ESPECIAL 2003/0117309-7).
CIVIL. CONJUGE SOBREVIVENTE. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. CC, ARTS. 1.611, PAR. 2., 715 E 748. REGISTRO. ART. 167, I, 7, DA LEI 6.015/1973. DISPENSABILIDADE. DIREITO DECORRENTE DO DIREITO DE FAMILIA. RECURSO DESACOLHIDO. - O DIREITO REAL DE HABITAÇÃO EM FAVOR DO CONJUGE SOBREVIVENTE SE DA "EX VI LEGIS", DISPENSANDO REGISTRO NO ALBUM IMOBILIARIO, JA QUE GUARDA ESTREITA RELAÇÃO COM O DIREITO DE FAMILIA (REsp 74729 / SP RECURSO ESPECIAL 1995/0047480-8).
Neste sentido, garantido o direito de habitação, pode seu detentor defender a posse do imóvel inclusive contra os próprios co-proprietários. Caso não fosse possível este entendimento, de pouca utilidade restaria tal garantia. Esta também é a intelecção expressa pelo STJ, conforme se segue:
Direito real de habitação. Ação possessória. Artigos 718, 748, 1.611, § 2º, e 1.572 do Código Civil de 1916.
1. O titular do direito real de habitação tem legitimidade ativa para utilizar a defesa possessória, pouco relevando que dirigida contra quem é compossuidor por força do art. 1.572 do Código Civil de 1916. Fosse diferente, seria inútil a garantia assegurada ao cônjuge sobrevivente de exercer o direito real de habitação.
2. Recurso especial conhecido e provido. REsp 616027 / SC RECURSO ESPECIAL 2003/0232761-2
4 O DIREITO REAL DE HABITAÇÃO E A UNIÃO ESTÁVEL
A primeira lei no ordenamento pátrio que garantiu o reconhecimento de direitos sucessórios na união estável foi a Lei n.º 8.971, de 29 de dezembro de 1994. No entanto, apenas com a edição da Lei n.º 9.278, de 10 de maio de 1996 que foi garantido o direito real de habitação em favor do companheiro sobrevivente, conforme se verifica em seu art. 7º, parágrafo único:
Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família.
A primeira conclusão que se pode extrair do dispositivo acima referido é que sobre diversos aspectos tal disciplina legal é mais benéfica ao companheiro em comparação ao cônjuge, tomando como referência para este o Código Civil anterior. Pode-se observar que ao convivente não se faz qualquer exigência quanto ao tipo de regime de bens, nem sequer é necessário que o imóvel seja o único a inventariar.
Cumpre inicialmente informar que o artigo 1.831 do Código Civil de 2002, não foi expresso quanto à aplicação do direito real de habitação ao companheiro sobrevivente nas situações de união estável. Ainda por cima, não resta claro se houve a revogação tácita da Lei n.º 9.278/96, haja vista ter o Código Civil de 2002 disciplinado substancialmente a matéria. Consequentemente, tal omissão legislativa deu ensejo a posicionamentos doutrinários discordantes quanto a sua extensão. Deste embate, consolidaram-se entre os estudiosos do direito dois posicionamentos antagônicos. A primeira corrente doutrinária entende que persiste o direito real de habitação ao companheiro supérstite, em virtude da não revogação da Lei n.º 9.278/96. Por sua vez, no segundo entendimento há a negação do referido direito em virtude da alegação de incompatibilidade do referido diploma legal com o silêncio proposital do Código Civil de 2002. Nas palavras de Rodrigues:
[...] o direito real de habitação, relativamente ao imóvel destinado à residência da família, foi previsto em lei especial (Lei n. 9.278/96, art. 7º, parágrafo único), e como esse benefício não é incompatível com qualquer artigo do novo Código Civil, uma corrente poderá argumentar que ele não foi revogado, e subsiste. Em contrapartida, poderá surgir opinião afirmando que o aludido art. 7º, parágrafo único, da Lei n. 9.278/96 foi revogado pelo Código Civil, por ter este, no art. 1790, regulado inteiramente a sucessão entre companheiros, e, portanto, não houve omissão quanto ao aludido direito real de habitação, mas silêncio eloqüente do legislador (2002 apud SCHLOGL, 2010).
Não se pode esquecer que foi a própria Carta Política de 1988, nos termos de seu artigo 226, § 3º, que reconheceu a união estável como entidade familiar. Analisando-se, por sua vez, os valores humanísticos que caracterizam o direito real de moradia, não há na realidade atual das novas características dos enlaces afetivos da sociedade como não dispensar idêntica proteção à união estável, pouco importando se por interpretação analógica do disposto no artigo 1.831 do CC/02 ou pela vigência da Lei n.º 9.278/96. A efetivação material de direitos não pode ficar estritamente dependente de meros formalismos jurídicos.
5 HABITAÇÃO ENQUANTO DIREITO SOCIAL
Um aspecto de maior relevância para a análise do direito real de habitação à luz da própria Constituição Federal foi a inserção da moradia como direito social, conforme alteração do caput do artigo 6º da CF/88, promovida pela Emenda Constitucional n.º 26/2000. Esta expressa positivação normativa não pode passar despercebida ao debate, na medida em que a elevação da moradia à hierarquia de direito social impõe a necessidade de uma prestação positiva do Estado e da sociedade em vista de sua efetivação, tal é a importância que a garantia da habitação goza em nosso ordenamento jurídico. Proteção esta que guarda amparo internacional, posto que a Declaração Universal dos Direitos do Homem afirma em seu artigo XXV, parágrafo 1º que:
Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos e perda dos meios de subsistência fora de seu controle (grifo nosso).
Há muito, resta patente a importância da questão da moradia para efetivação de condições sadias de existência, conforme noticia a própria OMS – Organização Mundial de Saúde, ao afirmar que "a casa é o fator ambiental que mais influência exerce sobre as condições de enfermidade e sobre o aumento das taxas de insalubridade e mortalidade" (1996 apud ALFONSIN, 2002, p. 273).
Não é deste modo de se estranhar, dado o reconhecimento no plano nacional e internacional da importância da habitação para efetividade de um mínimo existencial e da própria dignidade da pessoa humana, que o direito real de habitação seja expressamente garantido para o cônjuge supérstite e inarredavelmente possa ser estendido ao companheiro fruto de união estável, dado sua equiparação a entidade familiar, nos termos da atual Constituição, da qual se extrai:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
Da análise sistemática das disposições de direito interno e externo incorporadas, bem como dos próprios valores expressos na sociedade, não restam dúvidas quanto à incidência do direito real de habitação ao cônjuge/companheiro sobrevivente dado ser o direito à habitação elemento garantidor da própria dignidade da pessoa humana, preceito maior de todo o ordenamento jurídico. Consequentemente, não se pode aqui olvidar que a Constituição atribuiu ao direito à habitação o estatuto de garantia fundamental, direito este a ser interpretado de forma a permitir a sua máxima efetividade.
6 CONCLUSÃO
Diante do exposto, pode-se concluir que não há como se furtar a estender ao convivente sobrevivo o mesmo direito real de habitação que seria garantido ao cônjuge em idênticas condições. Tal assertiva, majoritariamente dominante na doutrina e na jurisprudência, deve independer da solução jurídica formal encontrada para sua efetivação, haja vista tratar-se de preceito humanitário maior que além de adequar o direito à disciplina das relações de fato existentes no seio da sociedade, visa revestir de proteção e mínimas garantias de dignidade ao companheiro sobrevivente em uma possível situação de desalojamento ou desamparo.
A inserção constitucional da proteção à habitação revela ser este um valor maior encartado na sociedade, o qual deve ser prontamente protegido e garantido pelo Estado, especialmente quando este tem como fundamento maior a dignidade da pessoa humana.
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Nota
01 Foi arquivado na Câmara Federal o Projeto de Lei n.º 6960/2002 de autoria do Dep. Ricardo Fiuza, o qual propunha, dentre outras alterações, a modificação da redação do artigo 1.831 do Código Civil de 2002, reinserindo a exigência de permanência do estado de viuvez do cônjuge sobrevivente para o exercício do direito de habitação.