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Opinião jurídica acerca da possibilidade de interferência do Projeto de Lei nº 1.876/99 em áreas urbanas de risco

Agenda 01/05/2011 às 15:21

Recentemente foram vistos embates na imprensa de todo o País sobre a possibilidade de legalização das ocupações irregulares em áreas de risco pelo Projeto de Lei 1.876/99 que pretende a reformulação do Código Florestal vigente (Lei 4.771/65).

Diversas manifestações foram divulgadas, ora criticando ora defendendo o projeto, de relatoria do deputado Aldo Rebelo, acusado pelo Jornal Folha de São Paulo de legalizar a ocupação em áreas de risco, principalmente nas encostas, concluindo que tragédias como as que ocorreram na região serrana do Rio de Janeiro poderiam ser mais comuns.

O objetivo deste artigo é realizar uma análise técnica, despida de qualquer ideologia, para esclarecer a sociedade sobre o que existe de fato no Projeto de Lei que possa aumentar o risco nas cidades, concluindo assim sobre o que é verdadeiro e o que é especulativo na manchete do Jornal Folha de São Paulo.

O relatório da Comissão Especial foi o resultado da análise de 11 (onze) projetos de lei que propunham modificações no Código Florestal, vigente desde 1965 e modificado mais de uma dezena de vezes.


1. O Código Florestal nas áreas urbanas

O foco do Código vigente, assim como do Projeto que pretende modificá-lo, são as áreas rurais, porém, em alguns aspectos, ambos disciplinam a ocupação de áreas urbanas.

O artigo 2º da Lei 4.771/65 define as Áreas de Preservação Permanente, ou seja, áreas que não podem ser desmatadas ou utilizadas. Determina a faixa de proteção nas margens dos rios e o grau de inclinação das encostas que devem ser protegidas, além de outras medidas.

O parágrafo único do artigo 2º do Código atual assim prescreve:

"No caso de áreas urbanas, assim entendidas as compreendidas nos perímetros urbanos definidos por lei municipal, e nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, em todo o território abrangido, obervar-se-á o disposto nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo, respeitados os princípios e limites a que se refere este artigo."

Ou seja, mesmo que haja certa liberdade da gestão municipal, as metragens definidas como proibidas de uso nas margens de rios e em áreas com declividade acima de 45°, dentre outras, são determinadas, inclusive nas áreas urbanas, pelo Código Florestal. A pertinência de tal determinação constar de diploma regulamentador de áreas rurais não será aqui analisada, mas tão somente a diferença entre o que está vigente como regra atual, e o que está escrito no Projeto de Lei (PL) em comento.

Pode-se observar que no PL há exatamente a mesma determinação, tendo como diferença a menção à Lei 11.977/09 que institui o Programa Minha Casa Minha Vida, do Governo Federal e que define áreas urbanas consolidadas.

Assim está disposto no Art. 4º, §3º do PL:

Art. 4º

§ 3º No caso de áreas urbanas consolidadas nos termos da Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, alterações nos limites das Áreas de Preservação Permanentes deverão estar previstas nos planos diretores ou nas leis municipais de uso do solo, respeitados os princípios e limites a que se refere este artigo.

A regra, caso aprovado o texto do Deputado Aldo, continuará existindo e até com mais restrições, como se verá. A liberdade da gestão municipal estará adstrita à observação do que está determinado no PL, assim como atualmente.


2. A proteção das margens dos rios

Não estando, portanto, na definição das áreas de preservação permanente ou na sua necessidade de observação em áreas urbanas a alegada flexibilização da legislação, passa-se a analisar a alegação de que a proteção oferecida às áreas de risco seria menor por conta da diminuição da metragem mínima de mata ciliar prevista.

O Código atual prevê como faixa mínima de proteção nas margens dos rios, a distância de 30 m do leito do curso d’água enquanto que o PL diminui para 15 metros a distância mínima exigida para rios com menos de 5 metros de largura.

Em estudo do relatório do Projeto constata-se que a justificativa para esta aparente diminuição está baseada em dois pilares, o científico e o de incentivo. Conforme estudos juntados e citados no documento, foi comprovado tecnicamente que a largura do rio não guarda relação com a quantidade necessária de vegetação em suas margens, porém mesmo que houvesse esta relação, a diminuição foi aceita para incentivar a recuperação de áreas de mata ciliar que já foram derrubadas, pois não há permissão de supressão, ou seja, a margem de 15 metros apenas é aceita para casos de recuperação, jamais para desmatamentos. Assim, sob a ótica da ocupação de áreas de risco em margens de rios, o PL propõe uma diminuição de proteção de margens para incentivar a legalização de áreas já ocupadas irregularmente, assim como a recuperação de, pelo menos 15 metros de mata ciliar.

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3. Possibilidade de legalização de áreas de risco

A matéria jornalística da Folha de São Paulo que deu origem as discussões afirma que através do Programa de Regularização Ambiental (PRA) previsto no PL, áreas de risco, ocupadas irregularmente, poderão ser legalizadas.

No exame das normas vigentes ligadas ao tema, pode-se constatar que caso exista realmente no PL esta possibilidade, não se trata de inovação. Desde 2006 uma Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA 369/06) prevê a possibilidade de intervenção em APP para regularização fundiária sustentável em área urbana, inclusive em topo de morro e montanha. Permite ainda a diminuição para 15 metros das faixas de mata ciliar ao longo de cursos d’água com menos de 50 m de largura, enquanto o PL somente admite a diminuição para rios com menos de 5 metros de largura.

A análise das possibilidades de legalização de áreas ocupadas irregularmente faz concluir o contrário dos que afirmam que o PL diminui a proteção de encostas. O artigo 8º do Projeto reproduz determinação do próprio Governo, além de manter regramentos do Código atual. O Governo Federal, por meio de Medida Provisória assinada pelo ex Ministro Carlos Minc e pelo ex Presidente Lula, convertida na Lei 11.977/09, instituiu o programa Minha Casa Minha Vida e em relação à regularização fundiária de interesse social em APPs urbanas assim determina:

Lei 11.977/09 (Minha Casa Minha Vida)

Art. 53. A regularização fundiária de interesse social depende da análise e da aprovação pelo Município do projeto de que trata o art. 51.

Parágrafo único. A aprovação municipal prevista no caput corresponde ao licenciamento ambiental e urbanístico do projeto de regularização fundiária de interesse social, desde que o Município tenha conselho de meio ambiente e órgão ambiental capacitado.

Art. 54. O projeto de regularização fundiária de interesse social deverá considerar as características da ocupação e da área ocupada para definir parâmetros urbanísticos e ambientais específicos, além de identificar os lotes, as vias de circulação e as áreas destinadas a uso público.

§ 1º O Município poderá, por decisão motivada, admitir a regularização fundiária de interesse social em Áreas de Preservação Permanente, ocupadas até 31 de dezembro de 2007 e inseridas em área urbana consolidada,desde que estudo técnico comprove que esta intervenção implica a melhoria das condições ambientais em relação à situação de ocupação irregular anterior.

Sobre o mesmo assunto prescreve o Código Florestal:

Lei 4.771/ 1965 com redação pela MP 2166-67:

Art. 4º A supressão de vegetação em área de preservação permanente somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública ou de interesse social, devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto.

§ 1º A supressão de que trata o caput deste artigo dependerá de autorização do órgão ambiental estadual competente, com anuência prévia, quando couber, do órgão federal ou municipal de meio ambiente, ressalvado o disposto no § 2º deste artigo.

§ 2º A supressão de vegetação em área de preservação permanente situada em área urbana, dependerá de autorização do órgão ambiental competente, desde que o município possua conselho de meio ambiente com caráter deliberativo e plano diretor, mediante anuência prévia do órgão ambiental estadual competente fundamentada em parecer técnico. 

§ 3º O órgão ambiental competente poderá autorizar a supressão eventual e de baixo impacto ambiental, assim definido em regulamento, da vegetação em área de preservação permanente. 

§ 4º O órgão ambiental competente indicará, previamente à emissão da autorização para a supressão de vegetação em área de preservação permanente, as medidas mitigadoras e compensatórias que deverão ser adotadas pelo empreendedor. 

§ 5º A supressão de vegetação nativa protetora de nascentes, ou de dunas e mangues, de que tratam, respectivamente, as alíneas "c" e "f" do art. 2º deste Código, somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública. 

§ 6º Na implantação de reservatório artificial é obrigatória a desapropriação ou aquisição, pelo empreendedor, das áreas de preservação permanente criadas no seu entorno, cujos parâmetros e regime de uso serão definidos por resolução do CONAMA. 

§ 7º É permitido o acesso de pessoas e animais às áreas de preservação permanente, para obtenção de água, desde que não exija a supressão e não comprometa a regeneração e a manutenção a longo prazo da vegetação nativa. 

Finalmente o Projeto de Alteração do Código Florestal dispõe :

PL 1876/99

Art. 4.º Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, pelo só efeito desta Lei:

..§ 3º No caso de áreas urbanas consolidadas nos termos da Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, alterações nos limites das Áreas de Preservação Permanentes deverão estar previstas nos planos diretores ou nas leis municipais de uso do solo, respeitados os princípios e limites a que se refere este artigo.

Art. 8º A supressão de vegetação em Área de Preservação Permanente poderá ser autorizada pelo órgão competente do SISNAMA em caso de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto, devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio.

§ 1º A autorização de que trata o

caput somente poderá ser emitida quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto.

§ 2º O órgão ambiental competente condicionará a autorização de que trata o

caput à adoção, pelo empreendedor, das medidas mitigadoras e compensatórias por ele indicadas.

§ 3º O regulamento desta Lei disporá sobre as hipóteses de supressão eventual e de baixo impacto ambiental da vegetação em Área de Preservação Permanente.

§ 4º A supressão de vegetação nativa protetora de nascentes, de dunas e mangues somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública.

Percebe-se que o artigo 54 da Lei 11.977/09, permite o uso das APPs desde que haja estudo técnico que ateste que a ocupação regularizada será mais adequada ambientalmente que a anterior. A qualidade da proteção, neste caso, não tem qualquer garantia de suficiência, pois o empreendimento posterior apenas precisa ser menos prejudicial que o anterior.

O disposto no Código Florestal está flexibilizado pela Resolução CONAMA 369/06 já citada.

Por sua vez, o PL 1876/99 não permite ocupações que contrariem o art. 4º do mesmo projeto e exige que os estudos destinados a regularização de uso das APPs, caso haja a possibilidade, sejam contemplados nos planos diretores ou leis municipais de uso do solo, que devem obedecer a Lei que dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano, 6.766/79. Na prática esta disposição aumenta a proteção exigida, uma vez que o artigo 3º da Lei 6.766/79 determina:

Art. 3º Somente será admitido o parcelamento do solo para fins urbanos em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, assim definidas pelo plano diretor ou aprovadas por lei municipal.

Parágrafo único. Não será permitido o parcelamento do solo:

I - em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas;

II - em terrenos que tenham sido aterrados com material nocivo à saúde pública, sem que sejam previamente saneados;

III - em terreno com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento), salvo se atendidas exigências específicas das autoridades competentes;

IV - em terrenos onde as condições geológicas não aconselham a edificação;

V - em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis, até a sua correção.


4. Conclusão

Embora o Código Florestal não seja o instrumento adequado para normatizar qualquer aspecto das áreas urbanas, sejam elas consolidadas ou de expansão, ele regulamenta o uso das APPs nessas áreas. Se analisado juntamente com outras normas vigentes atualmente, como a Lei 11.977/09 (Minha Casa Minha Vida), 6.766/79 (Parcelamento do Solo Urbano) e Resolução CONAMA 369/06, será constatado que já existem diversas exceções ao não uso das APPs e a regularização de áreas ocupadas.

O fato de estarem em diplomas legais diferentes, tanto as regras, quanto as exceções, torna conflituosa a normatização do tema, causando grande insegurança jurídica.

A forma determinada pelo PL 1876/99 para as possíveis regularizações de ocupação tanto de margem de rios quanto de encostas, exige estudos profundos e integrados, respeitando os requisitos de observação das peculiaridades locais, da justiça social além da segurança e conservação ambiental. O fato de as regras constarem de um só diploma facilita o entendimento da normatização da questão, porém não inova em relação a qualquer permissão de uso que já não exista no ordenamento a não ser por maior cuidado.

Sobre a autora
Samanta Pineda

Advogada formada pela Faculdade de Direito de Curitiba, especialista em Direito Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Sócia fundadora do Escritório Pineda & Krahn.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINEDA, Samanta. Opinião jurídica acerca da possibilidade de interferência do Projeto de Lei nº 1.876/99 em áreas urbanas de risco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2860, 1 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19002. Acesso em: 21 nov. 2024.

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