Resumo: O presente ensaio pretende avaliar os reflexos dos crimes cometidos entre militares cônjuges ou companheiros à luz da Lei nº 11.340/06 e as conseqüências administrativas e penais no âmbito militar.
Palavras – Chave: competência – violência doméstica – Lei Maria da Penha – Ação Penal - responsabilidade administrativa.
1.INTRODUÇÃO
A família, base da sociedade, tem passado por diversas barreiras de ordem cultural e moral que influenciam os comportamentos nos lares, tornando a convivência entre as pessoas no âmbito doméstico, por vezes, algo insustentável. A deturpação dos valores familiares ocorre de modo gradual e contínuo na sociedade moderna, a qual se apega sem nenhum receio a valores apregoados pela mídia e sua programação voltada para a violência cotidiana.
Aliado a isto, o pensamento e a visão sobre a mulher, de um modo geral, são de um ser-objeto; descartável; o qual se usa e depois se despreza. Certos homens eivados de raiva e ódio descarregam sua carga de tensão em suas indefesas esposas e companheiras, as quais suportam no silêncio da violência doméstica as agressões de seus "senhores".
A violência dentro do seio familiar tornou-se corriqueira, sendo alvo de especulações e feitos sensacionalistas pelos órgãos de imprensa em todos os níveis. Em face dessa crescente violência, especialmente contra a mulher, o governo federal editou a Lei nº 11.340/06 – mais conhecida como a lei Maria da Penha – com o intuito de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
A lei tem seu centro na prevenção e repressão contra a violência dirigida à mulher, no âmbito da unidade doméstica [01], como forma de cumprir o enunciado do art. 226, § 8º da Constituição Federal (CRFB/88), o qual transcrevemos:
"Art.226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(...).
§ 8º. O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações."
Desta forma, o legislador infraconstitucional laborou acertadamente ao editar a presente lei, que vem sendo aplicada aos casos concretos chegados ao conhecimento do Poder Judiciário, por meio da ação penal promovida pelo Ministério Público. A violência contra a mulher é uma realidade assustadora e deve ser alvo de repressão por parte do Estado.
Tal violência poderá alcançar, também, o seio da família militar, seja entre pais e filhos ou entre cônjuges militares de qualquer posto ou graduação.
Destarte, o presente ensaio, não pretendendo esgotar o assunto, traz à baila a possibilidade de ser afastada a competência da Justiça Militar nos casos em que militares cônjuges se vêem abarcados pela violência doméstica no âmbito familiar, haja vista tais condutas, de um ou ambos os militares, também poderão figurar-se como fato típico, ilícito e culpável à luz da norma penal castrense. Outrossim, poderão surgir responsabilidades disciplinares na seara administrativa.
2.A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA ÓTICA DA LEI
A lei Maria da Penha não traz nenhum tipo incriminador novo, mas apenas cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. No seu capítulo II (Das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher) a legislação não esgota o rol de situações no art. 7º, concluindo que além daquelas expostas no artigo, existem outros tipos de violência.
As formas de violência elencadas no art. 7º da legislação, além de outras formas, são as seguintes: I – Violência física; II – Violência psicológica; III – Violência sexual; IV – Violência patrimonial e V – Violência moral.
Portanto, a lei procura executar medidas protetivas à mulher vítima de violência doméstica. Tais medidas estão previstas no art. 8º, art. 9º, art. 18, art. 22, art. 23 e art. 24 da lei Maria da Penha.
Assim, ocorrida a violência contra a mulher nas situações acima previstas, a autoridade policial, o Ministério Público e o Juiz deverão envidar esforços para que a mulher seja protegida da violência sofrida ou se na iminência de sofrer, seja a mulher salvaguardada de males futuros.
3.A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ENVOLVENDO MILITARES
É sabença geral que os militares sejam eles estaduais ou federais estão sujeitos a um regime jurídico peculiar, sendo estes submetidos a rígidos preceitos da disciplina e hierarquia militares. Assim, é aplicável, além dos preceitos previstos nos regulamentos e códigos de ética, o Código Penal Militar (CPM), o qual prescreve os crimes e as penas a que serão submetidos os militares brasileiros.
Portanto será considerado crime militar aquela conduta típica, ilícita e culpável que se enquadrar em uma das situações previstas no art. 9º do Decreto-lei nº 1001/69 (CPM) [02].
No tocante aos militares casados ou companheiros pelo regime da união estável surge uma pergunta: Se um militar agressor sendo superior hierárquico ao outro cônjuge e, em detrimento de uma relação desgastada, a mulher (que é militar) sofrer uma agressão, de quem será a competência para julgamento do fato ilícito, se a conduta ocorrer no âmbito familiar? E se ocorrer de a mulher (militar e superior hierárquico) do cônjuge agressor (militar hierarquicamente inferior) vier a ser agredida ou humilhada, terá o militar agressor cometido crime militar ou crime comum?
Ademais, sob a ótica do direito administrativo, restaria a punição advinda da transgressão residual apurada em inquérito policial contra o militar agressor? São perguntas que tentaremos responder com o objetivo de demonstrar a solução aceitável na visão do ordenamento jurídico, em especial com relação à Constituição Federal.
4.A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MIILITAR À LUZ DA CARTA MAGNA VERSUS A LEI MARIA DA PENHA
A competência da Justiça Militar surge do comando constitucional trazido no art. 125, § 4º da Carta Maior, a qual delineia a jurisdição militar como competente para julgar os crimes militares definidos em lei, cometidos pelos policiais das milícias dos Estados.
Os crimes militares definidos em lei estão previstos no Código Penal Militar (CPM) – Decreto–Lei nº 1001/69 - sendo definida como crime a conduta amoldada ao rol previsto no art. 9º, que traz como regra algumas situações abstratas que concluirão se o crime é ou não militar.
Assim, não competirá à Justiça Castrense o julgamento de condutas elencadas em lei excepcionais, já que sua competência se restringe ao fato típico previsto no CPM, conforme se lê no art. 125, § 4º da CF:
"Art. 125. Os Estados organizarão sua justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição:
[...]
§4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares previstos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças".(grifo nosso)
Portanto, no caso de agressões ocorridas no âmbito familiar entre o casal de militares (entendido assim na vida privada e na intimidade) não seria o caso de a ação penal transcorrer no âmbito da Justiça Militar, eis que foge a sua alçada constitucional o julgamento da presente demanda.
A lei Maria da Penha, em seu artigo 5º, inciso I, prescreve que configurará violência contra mulher a conduta omissiva ou ativa que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano patrimonial ou moral no "âmbito da unidade doméstica, compreendida como espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas".
O inciso II prescreve também que será considerado violência doméstica "no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa".
E por fim, o inciso III prescreve "em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação".
Observando-se o dispositivo da lei Maria da Penha citado, conclui-se que a competência da Justiça Militar para a instrução do feito seria afastada, já que a lei considera violência doméstica aquela ocorrida no âmbito doméstico-familiar, ou em qualquer relação íntima.
Tal entendimento é cristalino e lógico pelo fato de as relações no âmbito doméstico-familiar entre os militares se darem no plano privado e não no regime jurídico de direito público, o qual rege as relações entre os militares na vida da caserna.
Portanto, no âmbito das relações conjugais entre militares (seja superior e subordinado e vice-versa) prevalecerá as relações privadas e não a relação superior-subordinado. Nesse caso, se aplicará as regras do Código Penal (CP) comum e as medidas protetivas elencadas no art. 22 da lei Maria da Penha.
Assim, qualquer conduta que configure fato típico, ilícito e culpável à luz da norma penal militar, ocorrida em uma das situações previstas no art. 5º, incisos I, II ou III da lei Maria da Penha, não será considerado crime militar, mas tão somente ilícito comum, com tratamento regrado no CP, conforme o caso.
Como exemplo, cito o seguinte: dois militares casados ou no regime de união estável, um sendo superior hierárquico ao outro ou até mesmo sendo pares (iguais hierarquicamente), no caso de agressão do homem contra a mulher, no âmbito da relação doméstico-famliar, na ocorrência de lesão corporal será aplicado a norma do art. 129, § 9º do CP [03] e não o art. 209 do CPM [04].
Da mesma forma, caso ocorra um estupro contra a mulher, o militar agressor seria processado pelo crime do art. 213 [05], com o aumento de pena previsto no art. 226 do CP [06] e não pelo art. 232 do CPM [07] que possui tratamento jurídico do crime menos severo.
Assim, não será considerado Desacato a Superior – art. 298 do CPM – a conduta do cônjuge ou companheiro agressor (subordinado hierárquico) contra a mulher (superior hierárquico).
Assim, com do devido respeito a opiniões contrárias, a Justiça Militar no âmbito Federal ou Estadual, conforme o caso, não seria competente para o conhecimento e julgamento dos delitos ocorridos no âmbito das relações doméstico-familiares entre militares. O STM em decisão prolatada na década de 80 assim se posicionou:
"EMENTA: CRIME PRATICADO POR MILITAR EM RESIDENCIA LOCALIZADA EM PREDIO SOB ADMINISTRAÇÃO MILITAR. INCOMPETENCIA DA JUSTIÇA MILITAR. LOCAL SUJEITO A ADMINISTRAÇÃO MILITAR NÃO INCLUI O INTERIOR DO APARTAMENTO ONDE RESIDE O MILITAR COM SUA FAMILIA, EM FACE DO PRECEITO CONSTITUCIONAL QUE ASSEGURA A INVIOLABILIDADE DO LAR - ART. QUINTO XI DA CONSTITUIÇÃO Desavenças conjugais terminando em agressões físicas do marido (oficial) a esposa não descaracterizam o lar como bem particularmente tutelado pela constituição federal. Conflito negativo de competência entre tribunal superior e juiz federal. remessa dos autos ao excelso pretório em razão do art. 27 parágrafo primeiro das disposições transitórias da constituição federal em vigor, combinado com o art. 119, inciso i letra 'e', da carta de 1967. iv- decisão unânime". (STM – Rec. Sentido Estrito - 1989.01.005859-7 – Rel. Ministro Raphael de Azevedo Branco – 02/03/1989).
Contudo, caso haja, eventualmente, um Auto de Prisão em Flagrante ou Inquérito Policial Militar em curso iniciado pela autoridade militar, caberá a análise pelo Juiz de Direito do Juízo Militar o deferimento das medidas protetivas previstas no art. 22 da Lei Maria da Penha, como forma de afastar qualquer tipo de ameaça contra a mulher (seja militar estadual ou federal).
O Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais (TJMMG) no julgamento do Habeas Corpus nº 1.678 de 01/02/2011, da relatoria do Juiz Fernando Galvão da Rocha, assentou o entendimento de que as medidas protetivas poderão ser deferidas, conforme o seu voto a seguir transcrito:
"O paciente está sendo investigado por supostamente ter praticado diversos crimes, dentre eles crime que ofende a dignidade sexual de militar que é sua própria filha. A apuração dos fatos, apesar de terem ocorrido no seio do lar, se dá por meio de inquérito policial militar e pode indicar a ocorrência de crime militar, o que fixa a competência desta Justiça Especializada para processar e julgar a presente ação mandamental. (...)
Ora, se é admissível a condenação do réu sem que alguém tenha presenciado o estupro, com muito mais razão deve-se entender possível a aplicação, por analogia, das medidas urgentes de proteção previstas na Lei federal n. 11.340/2006".
Por arremate, caso a conduta delitiva do militar em relação ao parente, ou à esposa ou à companheira, também militares, ocorra em local público e estando ambos fardados, ou venha ocorrer no interior das instituições militares, a competência será evidente da Justiça Militar, nos termos do art.9º, inciso II, alíneas a,b,c,d do CPM, em virtude da prevalência da função pública exercida pelos militares no momento do fato.
5.RESPONSABILIDADE DISCIPLINAR RESIDUAL EM VIRTUDE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
É cristalina a independência entre as instâncias civil, penal e administrativa, a exceção dos casos em que a decisão judicial comunicará os seus efeitos na órbita civil e administrativa, nos termos do art. 935 do Código Civil de 2002. [08]
Como se sabe, a casa é o local privado da família não podendo ser alvo de violações indevidas tanto por outras pessoas, quanto pelos agentes do Estado. A limitação constitucional veda a intromissão na vida particular e privada das pessoas, conforme o art. 5º, inciso X da CFRB [09].
Porém, os direitos e garantias fundamentais não são absolutos podendo ser relativizados em face do interesse público, aplicando-se os princípios da razoabilidade e proporcionalidade os quais fundamentam o Estado, no caso concreto, a aplicar a supremacia do interesse público sobre o interesse privado [10]. PIETRO (2008) [11] assevera que o administrador público não pode dispor do interesse público sob pena de ferir seus deveres funcionais. Assim preleciona a renomada autora:
"Precisamente por não poder dispor dos interesses públicos cuja guarda lhes é atribuída por lei, os poderes atribuídos à Administração têm o caráter de poder-dever; são poderes que ela não pode deixar de exercer, sob pena de responder pela omissão. Assim, a autoridade não pode renunciar ao exercício das competências que lhe são outorgadas por lei; não pode deixar de punir quando constate a prática de ilícito administrativo; não pode deixar de exercer o poder de polícia para coibir o exercício dos direitos individuais em conflito com o bem-estar coletivo; não pode deixar de exercer os poderes decorrentes da hierarquia; não pode fazer liberalidade com o dinheiro público. Cada vez que se omite no exercício de seus poderes, é o interesse público que está sendo prejudicado". (grifos nossos).
Em Minas Gerais a Lei Estadual nº 14.310/2002 que trata do Código de Ética e Disciplina dos Militares (CEDM) estatui aos policiais e bombeiros militares regras de comportamento profissional que, se violadas, responsabilizam os militares no âmbito administrativo-disciplinar. MEIRELES (2007) [12] com bastante propriedade traz lição doutrinária a respeito do dever de punir:
"Todo chefe tem o poder e o dever de punir o subordinado quando este der ensejo, ou, se lhe faltar competência para a aplicação da pena devida, fica na obrigação de levar o fato ao conhecimento da autoridade competente. É o que determina a lei penal (CP, art. 320)."
Em razão disso, na ocorrência de fatos envolvendo militares cônjuges, no âmbito das relações íntima e privada, o militar somente poderá ser punido caso os acontecimentos extrapolem os atos da sua vida privada e atinjam, de modo inequívoco, a sua vida profissional. Assim preleciona MELO (2001) [13] em relação aos poderes da Administração Pública:
"Os poderes administrativos - na realidade, deveres-poderes - só existirão - e, portanto, só serão validamente exercidos - na extensão e intensidade proporcionais ao que seja irrecusavelmente requerido para o atendimento do escopo legal a que estão vinculados. Todo excesso, em qualquer sentido, é extravasamento de sua concepção jurídica"
Assim, discussões e atritos entre o casal de militares que não assumam maiores proporções, e que fiquem no âmbito da vida privada, não serão sujeitos à intromissão do Estado por meio de apuração administrativa (sindicância), ou mesmo à aplicação de sanções nos moldes do CEDM.
PIETRO (2008) [14] define bem quais seriam as situações em que a Administração Pública teria o dever-poder de apurar e punir a má conduta do funcionário em razão de atos da vida privada. Assim avalia a eminente jurista:
"A vida privada do funcionário, na medida em que afete o serviço, pode interessar à Administração, levando-a a punir disciplinarmente a má conduta fora do cargo". (...)
"Entendendo coerente essa posição, quer-nos parecer que a má conduta na vida privada, para caracterizar-se como ilícito administrativo, tem que ter, direta ou indiretamente, algum reflexo sobre a vida funcional, sob pena de tudo, indiscriminadamente, poder ser considerado "procedimento irregular" e ensejar demissão". (grifos nossos).
Portanto, a violência doméstica que tenha como agente agressor (a) um (a) militar da ativa, tendo tais fatos repercussão na esfera funcional do agente, este poderá ser alvo de apurações administrativas visando sua punição no âmbito disciplinar, nos moldes do art. 13, I, II, III, V, VI do CEDM [15], conforme o caso concreto [16].
A depender da situação, nos casos mais graves, poderá o militar (no caso dos militares de Minas Gerais) ser submetido a Processo Administrativo Disciplinar Sumário (PADS) ou (PAD) nos termos do art. 34, II [17]ou art. 64 II [18]do CEDM, com a sua conseqüente demissão das fileiras da Corporação Tiradentes, após o devido processo legal, observados o direito ao contraditório e à ampla defesa.
Assim, não há um escudo protetivo absoluto sobre as ações do militar, agente de violência doméstica, sob o fundamento de uma possível violação de sua vida privada ou íntima, quando essas ações extrapolarem os limites privados e atingirem a dignidade da função pública, tornando-se de interesse público a apuração administrativa e a conseqüente punição disciplinar caso seja comprovada a violação dos princípios da ética e do dever militares.