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Educação jurídica no Brasil: substituindo trincas por tríades

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Agenda 23/06/2011 às 12:33

O professor e os tempos da educação

Mello (2007) elenca algumas características dos professores dos primeiros cursos de Direito, em São Paulo e Olinda no século XIX, e aponta para sua persistência na atualidade: os professores eram formados por universidades européias (o que indicava um distanciamento da realidade nacional), especificamente em Direito (isto é, sem formação na docência) e gozavam sucesso em suas atividades profissionais ("como se esse fato fosse o mais importante na docência, deixando o ensino em segundo ou terceiro plano" (MELLO, 2007, p.60)).

Mello nota que "o corpo docente dos cursos em Direito, em geral, é formado por profissionais competentes, porém horistas e sem o devido preparo para o exercício do magistério" (2007, p. 61). Esta é uma outra faceta do que apontamos, no tópico anterior, ser uma "confusão de papéis" entre teóricos e práticos: o fato único de ser o indivíduo excelente advogado ou prestigioso juiz não o habilita, de pronto, a ser um bom professor. Daí que Nobre (2005) defenda a exigência de dedicação integral à pesquisa, ao ensino e à extensão como fundamental às escolas de Direito, o que, obviamente, não acontecerá sem apoio financeiro adequado.

A interação entre professor e aluno torna-se reduzida (e, por vezes, prejudicada) quando o vínculo do professor com a Universidade não é de comprometimento exclusivo, ou se ele não dispuser de um local e de uma agenda para atender aos alunos, ou ainda se agrupar número muito grande de alunos como orientandos. É assim porque a orientação não deverá ser um evento de despedida, apenas quando da realização de trabalhos finais, mas sim uma relação construída com tempo para que laços possam ser tecidos.

Na chegada à Universidade, o discente já traz consigo uma bagagem cultural, afetiva, memorial, que deve ser apreciada e potencializada – quando, novamente, exige-se disponibilidade do docente em ouvir e do discente em contar. O professor não haverá de pretender romper esta relação, mas a superar através do que Freire (1996) chamava "pensar certo": pensar certo é considerar a incerteza, o falibilismo e a historicidade, "daí que seja tão fundamental conhecer o conhecimento existente quanto saber que estamos abertos e aptos à produção do conhecimento ainda não existente" (1996, p.28). Esta "inscrição temporal" do conhecimento é também sinalizada por Costa quando sustenta que doutrina é "formular teorias jurídicas que estejam aptas a resolver os problemas do presente e a morder o futuro promovendo a reconstrução dos conceitos" (2005, p.40).

Assim, a orientação não deverá ser um exercício de transposição ou "colonização", no qual o aluno transforma-se em imagem especular do professor e tem sua liberdade intelectual cerceada, negando-lhe autonomia para estudar seus próprios focos de interesse e desenvolver trabalhos independentemente. Contudo, para estimular a reflexão, apresentar aos alunos as possibilidades de carreiras jurídicas e os diversos campos de pesquisa, debater e dialogar, é, outra vez mais, preciso tempo.

Mesmo que pululem cursos à distância, a relação professor-aluno não poderá ser remota e pontual; ainda nessa modalidade de educação, a tônica é o ensino individualizado, personalizado: para compensar a indisponibilidade física do professor, são convocados diversos recursos didáticos e o apoio de tutorias que favoreçam e intensifiquem a comunicação bidirecional (PRETI, 1996). Assim, a abertura e a flexibilidade de tempo não excluem o imperativo de uma prática educativa participativa, crítica, comprometida e disposta.

A necessidade de um quadro docente de dedicação integral à Academia não equivale, todavia, a dispensar professores envolvidos com a prática, porque seria um equívoco supor teoria dissociada de prática; isto é, mesmo o jurista teórico não deixa de ter em conta a utilidade cotidiana, um problema concreto, uma experiência social, enfim, uma razão prática (COSTA, 2005).

"Pensar conceitualmente" e "realidade empírica" só têm sentido um com o outro (...) Esquecer as bases empíricas do direito faz a "visão de mundo" irreal e inútil, ainda que pareça coerente; reduzir-se a descrever dados empíricos sem uma teoria, por outro lado, deixa a informação fora de rumo e dificulta a comunicação (ADEODATO, 1999, passim).

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Obstaculizar a comunicação é também resultado de um "estilo floreado" de alguns profissionais de Direito, de um modo "escriturístico" de expressão, de verbalismo excessivo, que se vale do sistema de remissões infindáveis e do discurso circular como recurso ao reforço de determinada tese. Sendo a educação um ato comunicacional, o fracasso deste tipo de linguagem, muito peculiar do Direito (HAFT, 2002), importa o fracasso da própria aprendizagem.

Além da linguagem "ruidosa", outra falha comunicacional/educacional comum é, como já indicado, o fato do professor não ter "aprendido a ensinar", o que acarreta duas conseqüências imediatas: o baixo desempenho dos sujeitos da aprendizagem e a utilização, pelo professor, de atitudes e idéias que não são exatamente as que acredita, mas que reproduz por serem a "corrente majoritária", a "linha do concurso", o "de acordo com o manual", etc..


Avaliações, Exame da Ordem e Cursos Compensatórios

A avaliação seria um momento para analisar "falhas de comunicação", monitorando até que ponto os objetivos instrucionais estão sendo alcançados. A avaliação da aprendizagem deveria, então, procurar evidências de aprendizagem significativa e precisaria incluir apreciação também do ensino, do currículo, do desempenho discente e institucional (MOREIRA, 1999); seria bidirecional e constante, tanto quanto a educação deveria ser permanente.

No entanto, por mais amplo, polissêmico e aberto ao debate que seja o Direito – e, a princípio, ele assim o é –, ao medir a aprendizagem, os professores tendem a pontualmente marcar uma prova na qual o aluno será instado a dizer "quais os atributos criteriais de um conceito ou os elementos essenciais de uma proposição", obtendo, assim, "respostas mecanicamente memorizadas" (MOREIRA, 1999, p. 56). A avaliação, portanto, torna-se episódio (e não processo) em que docente julga o discente (unilateral) por sua capacidade de repetição e memorização (e não por seu pensar independente).

No Direito, a comum busca pela "única resposta certa", na ambição de se atingir o "julgamento justo", inibe, na academia, a possibilidade de discussão sobre alternativas de respostas; se só há "uma única resposta certa", todas as demais são, então, erradas. O aluno será, usualmente, solicitado a encontrar qual a lei se aplica a uma determinada situação ou qual a solução para determinado caso de acordo com o entendimento corrente do tribunal superior. A avaliação de tal maneira "esvaziada" perde seu propósito de auxiliar o ensino. Ela passa a existir apenas para atribuir notas e classificar os alunos:

O ato de avaliar tem sido utilizado como forma de classificação e não como meio de diagnóstico, sendo que isto é péssimo para a prática pedagógica. A avaliação deveria ser um momento de "fôlego", uma pausa para pensar a prática e retornar a ela, como um meio de julgar a prática. Sendo utilizada como uma função diagnóstica, seria um  momento dialético do processo para avançar no desenvolvimento da ação, do crescimento para a autonomia e competência. Como função classificatória, constitui-se num instrumento estático e freador do processo de crescimento, subtraindo do processo de avaliação aquilo que lhe é constitutivo, isto é, a tomada de decisão quanto à ação, quando ela está avaliando uma ação (FENILI et al., 2002).

Ao lado do modelo de ensino jurídico "norma-centrista", há, assim, o modelo de avaliação "nota-centrista", gravitando em torno de exames, testes, provas, quantificando-se o desempenho de cada estudante em um evento único através de uma escala de 0 a 10. Mas o que acontece após a entrega de notas? Há oportunidade de aprimoramento? O rendimento do aluno pode, afinal, ser mensurado em um evento?

Parece-nos que seriam necessários relatórios e observações progressivas, acompanhamento, intervenção e orientação diante de dificuldades, possibilitando diálogo, re-análise. Para tanto, novamente seria indispensável tempo para interação professor-aluno – todavia, são muitos e cada vez mais os alunos, sendo difícil garantir esta disponibilidade docente para todos eles.

Para o exercício da advocacia requer-se, nacionalmente, a aprovação dos bacharéis no Exame da Ordem dos Advogados, que funciona, afinal, como uma avaliação derradeira, seguindo os mesmos modelos das avaliações procedidas nos cursos de Direito, com questões voltadas para ramos específicos (Direito Civil, Direito Penal, Direito do Trabalho, etc. – o dito "eixo de formação profissional") e verificando no candidato sua aptidão, sobretudo, de fundamentação legal.

Foi possivelmente pelos baixos índices de admissão no Exame da Ordem e, sobretudo, pela má qualidade da educação jurídica brasileira que se criaram condições para um novo "nicho empresarial, que são os chamados cursos preparatórios para as carreiras jurídicas" (GOMES, 2006). Deste modo, a busca por tais cursos é antes um expediente de urgência a fim de reparar a formação deficitária na graduação do que um compromisso com atualização profissional e educação continuada.


As fontes e a divulgação científica

Martínez ressalta que os conteúdos a serem debatidos em sala de aula devem ser, eles próprios, escolhidos em colaboração entre discentes e docente, através de uma "dialogicidade da dialogicidade", "ou seja, a montagem dialogada daquilo que futuramente vai ser dialogado em sala de aula" (2000, p.9).

Por outro lado, escolher bem as fontes a serem utilizadas na pesquisa e no ensino jurídicos é um momento delicado e essencial à qualidade do trabalho. Adeodato (1999) registra que os juristas brasileiros costumam usar mais livros e manuais do que artigos científicos, o que contraria as tendências modernas. Além da estrutura dos artigos permitir especificidade temática e detalhamento, bastante adequados à produção acadêmica, para que sejam publicados, os artigos se submetem, em geral, a um processo de avaliação por pares, o que, ao menos a princípio, confere-lhes maior validação que a simples publicação de um livro, nem sempre previamente sujeito à análise e à crítica da comunidade científica ou de um corpo editorial.

Ademais, privilegiando o uso de livros em detrimento de periódicos, também a produção dos alunos será afetada, pois: 1) torna-se mais difícil publicar em Direito: rareiam as boas revistas da área, sua circulação progressivamente limita-se aos próprios programas de pós-graduação ou aos tribunais que as editam; 2) a possibilidade de parcerias entre discente e docente é mais favorecida ao se escrever artigos em co-autoria, sendo mais rara a produção de livros em conjunto.

Silva (2003) apresenta um detalhado – e algo frustrante – quadro das revistas jurídicas brasileiras, destacando que os periódicos científicos de Direito demoraram a surgir se comparados aos de outras áreas científicas, sobretudo as ciências naturais, pois os juristas preferiam publicar grandes tratados contendo comentários de códigos, repertórios de jurisprudência e manuais para o ensino. Além disto, as primeiras revistas brasileiras eram apenas incidentalmente jurídicas e prioritariamente destinadas a assuntos políticos ou veleidades literárias; somente após 1891 apareceram revistas de fato acadêmicas.

Adeodato (1999) registra que certos temas, por suas características ou novidade, têm nas reportagens da imprensa uma fonte de pesquisa importante. Embora não se deva desprezar a produção jornalística durante a produção científica (a notícia certamente tem um alcance na comunidade que a reveste de especial importância e a faz digna de ser discutida nas salas de aula e nos textos científicos), é preciso considerar que nem sempre a pretensão do jornalismo ajusta-se ao escopo acadêmico: por pressões editoriais, frequentemente há pressa na apuração do noticiado e falta de rigor na publicação; pressa e falta de rigor não se compatibilizam ao trabalho reflexivo e criterioso da ciência.

Neste ponto, vale lembrar que, para todas as áreas do conhecimento, mas sobretudo para o Direito, a realização e a divulgação de pesquisas devem ser, além de eticamente orientadas, legalmente adequadas. Atenção à preservação dos direitos dos envolvidos e dos potencialmente afetados pela pesquisa é um mandamento a guiar todos os profissionais da educação. Assim, é de se cuidar, por exemplo, para que os "estudos de caso", cada vez mais populares no ensino do Direito, não exponham identidades e subjetividades levianamente, a pretexto de conferir "realidade" ao ensino.

As "importações" da realidade, aliás, são sempre delicadas. Ao interpretar jurisprudência ou proceder a trabalho de campo, por exemplo, é necessário máximo respeito à alteridade e cuidado ao trabalhar com categorias como "verdadeiro/falso", "legal/ilegal", "inocente/culpado", evitando, de um lado, distorções mediante enquadramentos que não foram pretendidos no contexto original e, de outro, antecipações de misteres que são próprios de outra sede, a judicial.

É preciso escrever, divulgar o saber, pois "é impossível compreender o que não se diz" (LÉVY-LEBLOND, 2004, p.27). No entanto, todas as precauções éticas, legais, além das técnicas, devem ser observadas; o epíteto "científico" ainda é um rótulo de qualidade que transmite seriedade e confiabilidade, daí ter de ser usado com compromisso.


Conclusão

Este artigo não ambiciona ser conclusivo em suas considerações sobre educação jurídica: primeiramente porque, em educação, tudo se move, tudo é construção, não há fatalismos e pontos finais; em segundo lugar, por ser escrito de maneira panorâmica, não pretendemos abordar nem todas as trincas, rachaduras, da formação jurídica, nem tampouco todos os aspectos resolventes ou emancipadores das tríades defendidas; satisfazemo-nos se ao menos apontarmos alguns pontos neurálgicos em que a desintegração dos tripés condena toda a edificação desta formação.

Neste cenário, a proliferação de centros destinados apenas ao ensino, desprivilegiando pesquisa e extensão, incorre em dois graves equívocos: "um, epistemológico, ao negligenciar a exigência da postura investigativa, e outro, social, ao negligenciar a extensão" (SEVERINO, 2007, p.32).

Assim, vacila a concepção de educação jurídica baseada em um eixo de formação fundamental (abrangendo conteúdos essenciais de Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História, etc., o que conferiria interdisciplinaridade ao curso), outro de formação profissional (abrangendo, além do enfoque dogmático, o conhecimento e a aplicação, sistematizados e contextualizados, de diversos ramos do Direito, como Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito Penal, Direito Civil, Direito Empresarial, Direito do Trabalho, Direito Internacional e Direito Processual) e um terceiro eixo, de formação prática (abrangendo integração entre a prática e os conteúdos teóricos em atividades extensionistas e também relacionadas com o Estágio Curricular Supervisionado, Trabalho de Curso e Atividades Complementares), formando assim um outro "tripé" (seria já o quarto neste nosso artigo) curricular; temos, em geral, o predomínio do segundo eixo, através de um ensino com ênfase no dogmatismo, e incúria quanto aos outros dois (GOMES, 2006). Uma das explicações possíveis a esta ênfase apenas em um ensino é uma simples questão de lucro: é mais barato apenas "dar aulas" e conferências do que investir em produção e socialização de conhecimento (SEVERINO, 2007); contudo, desvincular o ensino destas duas dimensões é mutilar a educação e produzir uma "mini-formação".

Esta "mini-formação" revela-se ainda nos modelos tradicionais de ensinar e pesquisar Direito: "norma-centristas", fragmentários, monológicos. Estes modelos são focalizados em um professor-sabedor, que transmite conteúdo e coloniza discípulos em atos de comunicação unidirecional: é ele quem avalia, é ele quem expõe, é ele quem publica e ele o faz confiante em sua própria opinião.

No solilóquio deste docente, arruína-se a possibilidade de uma relação triangular entre conhecedores – ao que também contribui a deficiência dos instrumentos de divulgação científica. Desfeita, consequentemente, a segunda tríade, de professores, alunos e sociedade, aprofunda-se a crise da educação jurídica: não identificamos mais um por quê para sua sobrevivência, deixamos de acompanhar as necessidades atuais, defasamo-nos, não somos inventivos.

No Direito, a promessa de educação continuada também foi algo subvertida: precisamos de mais e mais "cursos pré-paratórios" para nos ensinarem o que não aprendemos mesmo quando já estamos pretensamente na fase "pós"; não continuamos a formação, postergamo-la. Cede-se o terceiro tripé, que representa a educação como compromisso permanente, integral e conjunto.

Consertar as trincas e substituí-las por estes tripés em que se assenta a formação ampliada é ainda possível, reorganizando-se estes elementos e articulando-os mediante, por exemplo, apoio à iniciação científica; à qualificação continuada dos docentes; à adequada remuneração; estimulando a produção de artigos, monografias, trabalhos de conclusão de curso; orientando, divulgando e valorizando esta produção; aproximando graduação e pós-graduação através de seminários, grupos de pesquisa e atividades extensionistas; difundindo eficazmente as atividades de pesquisa em andamento e seus relatórios, bem como as defesas de dissertações e teses (SÁ et al., 1994).

Sobre a autora
Anna Cruz de Araújo Pereira da Silva

bacharel em Direito em Belém (PA), especialista em Geriatria e Gerontologia pela UnATI/UERJ, mestra em Direito pela UFPa

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Anna Cruz Araújo Pereira. Educação jurídica no Brasil: substituindo trincas por tríades. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2913, 23 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19383. Acesso em: 23 nov. 2024.

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