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Desmistificando e simplificando a Lei nº 11.705/08 (Lei Seca).

Direto ao ponto

Agenda 24/06/2011 às 17:37

Quase três anos se passaram desde a publicação da Lei 11.705 de 20/06/2008 (conhecida Lei Seca), e ainda muitos questionamentos são levantados acerca do referido ato normativo.

As alterações trazidas à Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro) foram benéficas? As intenções do legislador foram efetivamente conquistadas com tais mudanças? Uma lei que veio para atender ao clamor social por justiça, por segurança, que veio na esperança social de um combate à impunidade mostrada por diversas vezes nos noticiários em todo o país, tornou-se eficaz?

Na exposição de motivos da Medida Provisória nº 415, que foi convertida na supracitada lei modificadora do Código de Trânsito Brasileiro, constam dados consideráveis que levaram o legislador à alteração normativa:

"2. A Organização Mundial de Saúde - OMS estima em aproximadamente 2 bilhões o número de consumidores de bebidas alcoólicas no mundo. Do ponto de vista da Saúde Pública, 76,3 milhões de pessoas apresentam problemas diagnosticáveis associados ao consumo de bebidas alcoólicas. O álcool causa anualmente 1,8 milhão de mortes, 3,2% do total, e é responsável por 4% dos "anos perdidos de vida útil" no mundo. Entre as décadas de 70 e 90 o consumo de álcool cresceu mais de 70% entre os brasileiros.

3. A Secretaria Nacional Antidrogas - SENAD, realizou em parceria com a Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP, pesquisa sobre os Padrões de Consumo de Álcool na População Brasileira. Este estudo de abrangência nacional, detectou que 52% dos brasileiros acima de 18 anos consome bebida alcoólica pelo menos uma vez ao ano. O estudo apontou também que dois terços dos motoristas já dirigiu depois de ter ingerido bebidas alcoólicas em quantidade superior ao limite legal permitido. Segundo o levantamento, 74,6% dos brasileiros entre 12 e 65 anos já consumiu bebida alcoólica pelo menos uma vez na vida" [01].

Com o advento da lei, o Código de Trânsito, em seu art. 306, fixou a concentração de álcool em seis decigramas por litro de sangue, em condutor de veículo automotor na via pública, como conduta delituosa, passível de uma pena de detenção de 6 meses a 3 anos, cumulada com multa e a suspensão para dirigir veículo automotor.

"Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor (...)".

Muito se discutia ao nascedouro da lei, e ainda se discute, sobre como constatar o estado de embriaguez. O que de fato serve de elemento probatório cabal para uma constatação efetiva de que o motorista estava embriagado no momento em que conduzia o veículo?

Antes da alteração normativa, o Código de Trânsito Brasileiro não especificava a concentração de álcool necessária para caracterizar crime de trânsito. Bastava estar o motorista sob a influência de álcool e expondo a um possível dano a incolumidade de outrem. Assim era a redação legal do art. 306:

"Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substancia de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem..."

O retrocitado artigo encontrava-se no Capítulo XIX (Dos Crimes de Trânsito), Seção II (Dos Crimes em Espécie) do Código de Trânsito Brasileiro, e notava-se a ausência de qualquer quantificação de concentração alcoólica. Esta, por sua vez, vinha estampada no caput do art. 165, localizado no Capítulo XV (Das Infrações) do já citado diploma legal. Havia, portanto, uma concentração alcoólica necessária para a caracterização da infração administrativa, mas não para a configuração de uma infração penal, haja vista que o art. 165 trazia a penalidade de multa e suspensão do direito de dirigir, retenção do veículo e recolhimento da habilitação. Já o art. 306 trazia como pena, além das constantes no art. 165, a detenção de seis meses a três anos.

Com a reforma da lei, o caput do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro passou a quantificar a concentração de álcool para fins de configuração de crime de trânsito. A nova redação tipifica a conduta de conduzir veículo automotor, na via pública, estando o motorista com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas.

Conclui-se então ser condição necessária para a configuração do crime de dirigir embriagado que esteja o motorista sob influência de álcool, mas não apenas isso, mas que também a dosagem alcoólica em seu organismo esteja igual ou superior ao nível estabelecido em lei.

A chamada Lei Seca (Lei 11.705/08) conferiu nova redação ao art. 165 do Código de Trânsito, classificando como ilícita a conduta de dirigir sob influência de álcool. No art. 276, alterado pela mesma lei, tem-se que a conduta é caracterizada ilícita estando o motorista com qualquer concentração de álcool no sangue, entretanto, seu parágrafo único faz referência ao regulamento da lei, que será tratado adiante.

"Art. 276. Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código. (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)

Parágrafo único. Órgão do Poder Executivo federal disciplinará as margens de tolerância para casos específicos. (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)".

Oportunamente indaga-se: como provar o nível de concentração alcoólica do motorista? A dicção legal constante no art. 306 é clara e precisa em estabelecer cabalmente a concentração de álcool para a configuração do crime. Não há espaços para "achismos", ou qualquer meio que não mostre indubitavelmente qual era o nível de álcool presente no organismo do motorista no momento do fato. Desse modo, o meio para se obter a concentração de álcool no motorista é através do aparelho de medição de ar alveolar pulmonar, o conhecido bafômetro, ou ainda pelo exame de sangue.

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Sejamos realistas, o exame de sangue é praticamente inviável de ser realizado nesse contexto. Os órgãos de fiscalização não vão levar consigo "laboratórios portáteis" e profissionais da área da saúde a fim de realizar tal teste. Muito mais prático e adequado se mostra o bafômetro para tal finalidade. Mas a lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro) traz em seu texto os níveis extraídos de um exame sanguíneo. Como dito acima, o caput do art. 306 menciona a concentração de álcool por litro de sangue, então qual o seu correspondente no teste alveolar? O Poder Executivo, através do Decreto 6488/08, que regulamenta a Lei 11.705, traz a equivalência entre distintos testes de alcoolemia. Estabelece que a concentração alcoólica exposta no art. 306 (concentração igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue) corresponde à 0,3mg/litro de ar expelido pelos pulmões. Um número muito mais factível e próximo do condutor quando parado no trânsito para realizar o teste.

Questão que poderia suscitar dúvidas é quanto à aplicação e eficácia do art. 277 do Código de Trânsito Brasileiro. A redação do seu parágrafo segundo nos traz:

"A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor".

Em um inicial trabalho interpretativo, em obediência ao cânone da totalidade, "segundo o qual haveria um intercâmbio de sentido entre a parte e o todo, ou, segundo o dito corrente da hermenêutica, que texto deve ser compreendido pelo contexto" [02], nota-se estar o referido dispositivo legal situado no Capítulo XVII do Código, desse modo não se refere aos crimes de trânsito, mas às medidas administrativas, não podendo, por certo, ser aplicado com fins de caracterizar como criminosa a conduta do motorista. Seriam suposições acerca do estado de embriaguez do condutor, e não uma certeza como exige a norma. Isso inclusive se extrai da decisão do Superior Tribunal de Justiça mais adiante aduzida.

São de grande importância, para o entendimento do tema em foco, as produções jurisprudenciais. Decisões de mérito provenientes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) vêm unificando as diversas interpretações acerca da matéria. Em um julgado de relatoria do respeitável Ministro Og Fernandes, da sexta turma do Tribunal, houve o entendimento, por parte do Ministro, de que

"O legislador inseriu, na nova redação, quantidade mínima de álcool no sangue para a configuração do delito, passando tal circunstância, portanto, a ser um componente fundamental da figura típica, ou, em outras palavras, passou a ser elementar objetiva do tipo penal. Exige a lei certa quantificação mínima para conformação da conduta ao tipo penal incriminador. Não basta, portanto, dirigir sob o efeito de álcool, mas que a quantidade de álcool seja igual ou superior a 6 (seis) decigramas por litro de sangue".

E arremata o Ministro:

"Doravante, a figura típica só se perfaz com a quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue o que, por óbvio, não se pode presumir".

Cita em seu voto, Luiz Flávio Gomes e Silvio Maciel:

"Se a quantidade mínima de álcool no sangue do condutor não ficar comprovada e, portanto, não for mencionada expressamente na denúncia ou queixa, o fato narrado na exordial será evidentemente atípico, sendo o caso de rejeição da peça acusatória, ex vi do disposto no art. 395, I c/c art. 41, ambos do Código Processual Penal de regência, ou mesmo rejeição por falta de uma das condições da ação (art. 395, II do CPP), qual seja, a possibilidade jurídica do pedido, em razão da atipicidade do fato (dirigir sob o efeito de álcool, por si só, não é crime; crime é conduzir veículo com o mínimo de seis decigramas de álcool por litro de sangue)".

Os demais Ministros acompanharam o entendimento do relator, como pode ser visto na ementa do acórdão:

"RECURSO ESPECIAL. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. AUSÊNCIA DE EXAME DE ALCOOLEMIA. AFERIÇÃO DA DOSAGEM QUE DEVE SER SUPERIOR A SEIS DECIGRAMAS. NECESSIDADE. ELEMENTAR DO TIPO.

1. Antes da edição da Lei nº 11.705/08 bastava, para a configuração do delito de embriaguez ao volante, que o agente, sob a influência de álcool, expusesse a dano potencial a incolumidade de outrem.

2. Entretanto, com o advento da referida Lei, inseriu-se a

Quantidade mínima exigível e excluiu-se a necessidade de exposição de dano potencial, delimitando-se o meio de prova admissível, ou seja, a figura típica só se perfaz com a quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue o que não se pode presumir. A dosagem etílica, portanto, passou a integrar o tipo penal que exige seja comprovadamente superior a 6 (seis) decigramas.

3. Essa comprovação, conforme o Decreto nº 6.488 de 19.6.08 pode ser feita por duas maneiras: exame de sangue ou teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro), este último também conhecido como bafômetro.

4. Isso não pode, por certo, ensejar do magistrado a correção das falhas estruturais com o objetivo de conferir-lhe efetividade. O Direito Penal rege-se, antes de tudo, pela estrita legalidade e

tipicidade.

5. Assim, para comprovar a embriaguez, objetivamente delimitada pelo art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, é indispensável a prova técnica consubstanciada no teste do bafômetro ou no exame de sangue.

6. Recurso a que se nega provimento

Acórdão

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ/SP), Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ/CE) e Maria Thereza de Assis Moura votaram com o Sr. Ministro Relator. Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura"

Depreende-se do voto do Ministro que a exigência legal de quantificação da concentração alcoólica no organismo do motorista é para efeitos penais, no sentido de atribuir uma pena de detenção. Pode-se concluir, por conseguinte, que as penalidades administrativas têm cabimento ante a recusa do motorista em fazer o teste de alcoolemia? A lei traz a possibilidade de uma autuação administrativa independendo da constatação de um nível mínimo alcoólico no condutor, por força do art. 277 §3º, caso o agente de trânsito proceda na forma do §2º, ambos do Código de Trânsito Brasileiro.

"Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado. (Redação dada pela Lei nº 11.275, de 2006)

(...)

§ 2º A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor. (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)

§ 3º Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.705, de 2008)".

Neste caso, aplicam-se as penalidades de multa e de suspensão do direito de dirigir pelo período de 12 meses, notadamente após o devido processo administrativo perante o órgão competente, em obediência aos constitucionalmente consagrados princípios do contraditório e da ampla defesa, conforme a Constituição Federal em seu art. 5º, LV. Há ainda a medida administrativa de recolhimento do documento de habilitação e a retenção do veículo até que se apresente um condutor habilitado. Por ser considerada uma infração de trânsito gravíssima, sujeita ainda o condutor à computação de 7 pontos em sua habilitação.

Todo esse procedimento é previsto em lei, mas não se exibe em harmonia com a Carta Magna. Não parece razoável a aplicação de tais medidas administrativas ante a recusa em fazer o teste. O exercício de um direito constitucional, conforme será abordado mais adiante, não pode gerar uma sanção, ainda que administrativa.

Caso o condutor, por sua vontade, se submeta ao teste de alcoolemia e seja constatada concentração alcoólica igual ou superior ao estabelecido em lei, deverá ser conduzido à autoridade da polícia judiciária de plantão. Esta deverá arbitrar fiança, pois se trata de crime punido com uma pena de detenção de seis meses a três anos, o que autoriza a sua concessão. Tal direito do condutor não encontra limitações legais e encaixa-se nas possibilidades de arbitramento de fiança legalmente estabelecidas.

Outro ponto importante é o que se refere ao instituto da transação penal, consagrado no art. 76 da Lei 9099/95, que não tem aplicação nos crimes de trânsito de lesão corporal culposa quando cometidos pelo agente que encontrar-se, comprovadamente, sob a influência de álcool. Após a edição da Lei 11.705, portanto, ficou expressamente vedada a possibilidade de proposta por parte do Ministério Público de aplicação imediata de uma pena restritiva de direitos ou multa. No entanto, tal vedação não impede a possibilidade de uma aplicação de pena restritiva de direitos em substituição a uma privativa de liberdade por parte do poder judiciário. O juiz, verificando a presença dos requisitos autorizadores para a substituição de pena, pode e deve aplicá-la nos moldes da Parte Geral do Código Penal, que tem aplicação subsidiária ao Código de Trânsito.

Também por expressa vedação legal, a supracitada lei inovou no intento de efetivar a punição. As ações penais no caso do crime ora tratado (lesão corporal culposa no trânsito) não necessitam de representação do ofendido caso o condutor do veículo esteja, comprovadamente, sob efeito de álcool. As ações penais, portanto, nesse caso serão públicas incondicionadas.

Ponto relevante no tocante à chamada Lei Seca refere-se a não obrigatoriedade de o condutor do veículo submeter-se ao teste de alcoolemia. Por imperativo constitucional, que se sobrepõe à lei ordinária, ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo e tal recusa, que é um direito constitucional fundamental, não pode servir para lhe imputar a culpa.

De acordo com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aprovada em 22/11/1969, em São José da Costa Rica, promulgada no Brasil pelo Decreto nº 678 de 6/11/1992, no artigo 8º, §2º, g, nos traz:

"Artigo 8º. Garantias Judiciais

2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada" [03].

Outra norma internacional da qual o Brasil é signatário é o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU, de 16.12.1966. No artigo 14, n. 3, g, assevera:

"3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, a, pelo menos, as seguintes garantias:

g) de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada" [04].

Tais normas internacionais encontram-se estampadas no relevo constitucional pátrio, estando a manifestação do princípio da não autoincriminação presente no art. 5º constitucional.

O privilégio contra a autoincriminação garante que

"O preso tem o direito de permanecer calado para não incriminar a si próprio com as declarações prestadas, seja no inquérito policial, seja perante a autoridade judiciária (CF, art. 5º, LXIII). O privilégio contra a autoincriminação traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento..." [05].

Trata-se, afirma o autor, de uma manifestação do direito de permanecer calado (CF, art. 5º, LXIII).

É, portanto, entendimento de que não existe a obrigatoriedade legal de um suspeito fazer prova em seu desfavor. Conclui-se, pois, que a Lei 11.705/08 veio a fazer o condutor de automóvel pensar, e limitar a mistura álcool e direção. Não pode, contudo, haver uma interpretação da referida norma em afronta à princípios constitucionais consagrados, nem tampouco em desacordo com os limites legais, posto estar tal ato normativo inserido em um sistema jurídico que deve prezar por um mínimo de harmonia e coerência, até para que tenhamos segurança jurídica e o tão procurado respeito aos direitos fundamentais. Sistemas repressivos já existiram, foram e são abominados até os dias atuais. Interpretações que visem a estender o alcance de normas penais abrem um perigoso caminho para um retrocesso na conquista das garantias individuais e coletivas, além de ferir de morte princípios elementares regedores da matéria penal.

Exibe-se inconstitucional esta lei, pois o Direito Penal está calcado sobre princípios basilares e que não podem ser desconsiderados quando da elaboração e aplicação das leis. Mostra-se flagrante a afronta ao princípio constitucional implícito da ofensividade. Segundo tal princípio, a interferência do Direito Penal tem cabimento quando ocorrer uma lesão a um bem jurídico de outrem, não sendo possível a aplicação da reprimenda penal quando um crime nem mesmo chega a ser tentado (art. 31 Código Penal). Conforme explica Rogério Greco, "O Direito Penal também não poderá punir aquelas condutas que não sejam lesivas a bens de terceiros, pois que não excedam ao âmbito do próprio autor..." [06].

Assim sendo, o fato de conduzir um veículo, mesmo estando seu condutor embriagado, não necessariamente deverá ensejar uma sanção penal. É preciso que além da ingestão de álcool comprovadamente acima do limite legal, o motorista conduza o veículo de modo irresponsável, em desobediência às leis de trânsito, embora não seja exatamente o que traz a lei. Tal celeuma será elucidada pelo Supremo Tribunal Federal, que selará entendimento pela via do controle concentrado de constitucionalidade, em decorrência da Ação Direta de Inconstitucionalidade de número 4103/08, promovida pela Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (ABRASEL) em face de alguns dispositivos da chamada Lei Seca.


Notas

  1. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Exm/EMI-13-gsi-mj-mcidades-mec-mt.htm>, acesso em 27.04.2011.
  2. Streck, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p.90.
  3. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/conv_americana_dir_humanos.htm>, acesso em 27.04.2011.
  4. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/pacto_dir_politicos.htm>, acesso em 27.04.2011.
  5. Resumo de direito constitucional descomplicado/ Vicente Paulo, Marcelo Alexandrino, - 3. Ed. – Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: MÉTODO, 2010.
  6. Greco, Rogério. Curso de Direito Penal – 11ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009, p.54.
Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AQUINO, Thiago Lima. Desmistificando e simplificando a Lei nº 11.705/08 (Lei Seca).: Direto ao ponto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2914, 24 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19396. Acesso em: 25 nov. 2024.

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