RESUMO: O presente trabalho busca a contextualização do atual modelo de intervenção estatal brasileiro no que tange à concorrência, com enfoque na análise dos aspectos históricos, constitucionais e legais da criação e atuação do Conselho de Administração de Defesa Econômica – CADE.
A ORIGEM DA DISCIPLINA DA CONCORRÊNCIA
A regulamentação do mercado por meio da intervenção do Estado leva à indagação do momento em que a concorrência e o livre mercado passam a ser identificados como valores dignos de tutela em um ordenamento jurídico.
A concorrência vista como fenômeno econômico tem existência desde a Antiguidade.
Com efeito, já na Antiguidade grega e romana verifica-se a existência de monopólios estatais instituídos em período de dificuldade econômica, para garantir a renda governamental.
Na Idade Média, num primeiro momento (Alta Idade Média), o destaque deixa de ser o monopólio estatal, para que a ideia de monopólio passe a ser ligada à concessão de privilégios exercidos por agentes privados (monopólio privado).
Na Baixa Idade Média, a política mercantilista verificada a partir do século XI, coloca em discussão a legalidade ou não daqueles monopólios, o que leva muitos autores (notadamente os norte-americanos) a identificar o período como início da história antitruste. Ainda na Baixa Idade Média, têm destaque as corporações de ofício, que surgem em um contexto de florescimento do comércio e artesanato nas cidades, como associações daqueles que tinham interesses comuns e intencionavam protegê-los. Nota-se, inclusive, certa semelhança entre tal motivação e a encontrada hoje em relação aos cartéis.
Com a Revolução Industrial, as corporações de ofício foram substituídas pelas fábricas, na qual a atividade é caracterizada pela assunção do risco do empreendimento, exigindo-se, por isso, maior liberdade do que a verificada na atividade desenvolvida anteriormente pelas corporações.
Essa liberdade de atuação consistia na liberdade de busca de novos mercados, prática de preço que entender conveniente, conquista de consumidores, etc. Por isso é que se tem no mercado liberal a correlata idéia de livre concorrência.
Mas desde este primeiro momento, a liberdade econômica não era vista como um direito ilimitado dos comerciantes, já sendo possível identificar restrições impostas pelo Estado, objetivando o atendimento do interesse público.
A concorrência passou a ser, então, encarada como a solução para conciliar a liberdade econômica individual com o interesse público, com preços inferiores aos do monopólio, melhor qualidade dos produtos e serviços, etc. Assim, a concorrência passou a ser vista como o antídoto natural ao grande mal dos monopólios, apta, naquela conceituação, a regulamentar o mercado. O preço ideal, por exemplo, seria fixado pela lei da oferta e da procura.
Contudo, essa situação livre dos agentes econômicos gerou elevada concentração de capital e poder na mão de poucos, acarretando concentrações e monopólios que causavam distúrbios sociais, identificados, por exemplo, nos preços de monopólio e nas condições desfavoráveis de trabalho, além de prejuízos à própria manutenção do mercado.
Concluiu-se, então, que a competição selvagem entre agentes econômicos era, no final, potencialmente prejudicial ao próprio mercado, podendo levar a sua autodestruição. Deveria, por isso, ser regulamentada, com o intuito de corrigir o sistema, propiciando a sua própria manutenção, sem deixar de prezar pelo princípio do liberalismo.
Assim, nos Estados Unidos, um contexto de grande concentração de capital nas mãos de alguns empresários em detrimento de consumidores, trabalhadores e pequenos empresários culminou na edição do Sherman Act, em 1890 Com o intuito de corrigir distorções geradas por esta excessiva cumulação de capital, o diploma tratou de tutelar o mercado contra seus efeitos autodestrutíveis. Por isso representa, para muitos, o ponto de partida para o estudo dos problemas políticos relacionados ao poder econômico,
Entretanto, dada a vagueza de suas previsões, esse diploma não se mostrou suficiente para propiciar aos agentes econômicos a segurança e a previsibilidade desejadas. Assim, em 1914, foi promulgado o Clayton Act, que tipificou como ilícita as práticas concorrenciais tidas por "não razoáveis". Neste mesmo ano, o Federal Trade Comission Act criou a Federal Trade Comission (FTC), órgão com função de vigilância e aplicação da lei antitruste. Destacam-se ainda, nesta disciplina, o Ribson – Patman Act, de 1936 (tratando da discriminação), e o Celler – Kefawer Act, de 1950 (que reforça as previsões do Clayton Act).
Assim, foi a partir do século XX que alguns acontecimentos passaram a modificar a postura do Estado em face da regulamentação e da condução econômica.
Com efeito, após a Primeira Guerra Mundial nota-se um surto de regulamentação estatal da atividade econômica, com o intuito de organizar a economia e impulsionar a máquina econômica, notadamente após a Crise de 1929.
A atuação estatal transmudou-se, então, em disciplina da atividade econômica privada, com a implementação de políticas públicas. O Estado passou a conduzir o mercado, por meio de técnicas de direção sobre este, configuradas na intervenção estatal em suas variadas formas (intervenção por absorção, intervenção por participação, intervenção por direção e intervenção por indução [01]).
EVOLUÇÃO DA DEFESA DA CONCORRÊNCIA NO BRASIL
A intervenção econômica no Brasil sempre houve, desde a época da colônia. Mas é na década de 1930 que há uma intensificação dessa intervenção, dada a situação de crise mundial advinda das duas grandes guerras e evidenciado em 1929.
Após a eclosão da primeira guerra mundial, o momento de crise evidenciado em 1929 demandou uma atuação estatal mais ativa para evitar um colapso econômico.
Assim, a Constituição de 1934 elevou, pela primeira vez, a liberdade econômica ao nível constitucional. Segundo aquele diploma, a liberdade econômica poderia ser limitada para garantir a Justiça e as necessidades da vida nacional:
TíTULO IV
Da Ordem Econômica e Social
Art 115 - A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da Justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna. Dentro desses limites, é garantida a liberdade econômica.
Parágrafo único - Os Poderes Públicos verificarão, periodicamente, o padrão de vida nas várias regiões da País.
Art 116 - Por motivo de interesse público e autorizada em lei especial, a União poderá monopolizar determinada indústria ou atividade econômica, asseguradas as indenizações, devidas, conforme o art. 112, nº 17, e ressalvados os serviços municipalizados ou de competência dos Poderes locais.
Art 117 - A lei promoverá o fomento da economia popular, o desenvolvimento do crédito e a nacionalização progressiva dos bancos de depósito. Igualmente providenciará sobre a nacionalização das empresas de seguros em todas as suas modalidades, devendo constituir-se em sociedades brasileiras as estrangeiras que atualmente operam no País.
Contudo, não obstante referida previsão constitucional, não houve a promulgação de qualquer Lei que regulamentasse o processo competitivo sob uma ótica antitruste. Foi promulgado tão somente o Código da Propriedade Intelectual, regulamentando a concorrência de forma individual.
Posteriormente, a Constituição de 1937, com inspiração nitidamente fascista, também previu a ordem econômica em sua redação:
DA ORDEM ECONÔMICA
Art 135 - Na iniciativa individual, no poder de criação, de organização e de invenção do indivíduo, exercido nos limites do bem público, funda-se a riqueza e a prosperidade nacional. A intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento dos interesses da Nação, representados pelo Estado. A intervenção no domínio econômico poderá ser mediata e imediata, revestindo a forma do controle, do estimulo ou da gestão direta.
Sob a égide deste diploma constitucional, foi promulgado o Decreto-Lei nº 869/1938 que, visando a proteção da economia popular, trouxe em seu corpo aspectos de natureza antitruste.
O Decreto-Lei introduziu no sistema jurídico brasileiro a condenação de determinadas práticas anticoncorrenciais, autorizando a atuação do Estado sobre o domínio econômico apenas para neutralizar os efeitos autodestrutíveis decorrentes da própria estrutura do mercado, mas sem maiores funções de condução do sistema econômico.
Portanto, no Brasil, diferentemente do que ocorreu no sistema norte-americano, o antitruste não nasceu como um elo lógico entre o liberalismo econômico e a liberdade de concorrência, para a proteção do mercado. Nasceu como proteção constitucional ao interesse da população, do consumidor.
Outro diploma legal que merece destaque é o Decreto-Lei 7.666/1945, conhecido como Lei Malaia. Referido diploma, na intenção de proteger o interesse nacional em face do poder estrangeiro, tratou de atos contrários ao interesse da economia nacional. Com caráter eminentemente administrativo, o diploma trouxe a criação do CADE para a aplicação de sanções e autorização prévia de práticas restritivas. Além disso, de acordo com o Decreto-Lei, a ilicitude das práticas comerciais seria determinada em virtude de seus efeitos (atuais ou potenciais), sem levar em consideração a intenção do agente. O Decreto-Lei, contudo, teve apenas três meses de vigência.
A Constituição de 1946, mantendo a previsão sobre a ordem econômica, trouxe de forma expressa, pela primeira vez, o princípio da repressão ao abuso de poder econômico. Além disso, vedava qualquer forma de abuso de poder que tivesse por finalidade: dominar o mercado nacional, eliminar a concorrência ou aumentar arbitrariamente os lucros. Os atos eram condenados por sua finalidade e não por seus efeitos, cabendo à lei o papel repressor:
TíTULO V
Da Ordem Econômica e Social
Art 145 - A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano.
Parágrafo único - A todos é assegurado trabalho que possibilite existência digna. O trabalho é obrigação social.
Art 146 - A União poderá, mediante lei especial, intervir no domínio econômico e monopolizar determinada indústria ou atividade. A intervenção terá por base o interesse público e por limite os direitos fundamentais assegurados nesta Constituição.
Art 147 - O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.
Art 148 - A lei reprimirá toda e qualquer forma de abuso do poder econômico, inclusive as uniões ou agrupamentos de empresas individuais ou sociais, seja qual for a sua natureza, que tenham por fim dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros.
Contudo, somente em 1962 foi promulgada a Lei nº 4.137, que se destaca por apartar a lei antitruste dos dispositivos que tratam da economia popular e do abastecimento. Além disso, revogado o Decreto-Lei nº 7.666/1945, cria-se novamente o CADE, órgão estatal responsável pela intervenção na economia no contexto concorrencial.
Referida Lei tem destaque por seu caráter instrumental, pois passou a ser um instrumento de legitimação das práticas que a economia nacional começava a incentivar. Assim, somente o ato que acarretasse o domínio do mercado ou a eliminação da concorrência é que seria reprimido, verificando-se a existência de válvulas de escape e o jogo de interesses protegidos (interesse nacional e interesse do consumidor) que poderiam justificar a licitude do ato concentração, ainda que tipicamente inseridos como prática ilícita. Contudo, não encontrou maior efetividade, à época, na realidade brasileira
Neste mesmo ano, foram ainda promulgadas as Leis Delegadas 4 e 5, que regulamentaram o artigo 146 da Constituição.
Após, foram promulgadas a Constituição de 1967 e a Emenda de 1969, permanecendo o mesmo regime legal.
Mas é sob a égide da Constituição Federal de 1988 que ocorrou a promulgação de duas leis de maior importância: Lei nº 8.158/91 e Lei nº 8.884/94.
Com a abertura do mercado brasileiro e a liberalização da economia, a Lei nº 8.158/1991, sem revogar a Lei nº 4.137/62 procurou celerizar o procedimento administrativo de apreciação dos atos concorrenciais, criando a Secretária de Direito Econômico (SDE). Contudo, verifica-se que a partir de 1992 essa legislação passou a ser utilizada como instrumento de retaliação do governo federal [02] contra determinados setores da economia, ensejando uma reformulação do ordenamento jurídico antitruste.
É neste contexto que a Lei nº 8.884/94 transformou o CADE em autarquia federal, assegurando, com isso, uma destinação orçamentária própria. Implementou-se, ainda, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), composto pelo CADE, pela Secretária de Acompanhamento Econômico (SEAE, vinculada ao Ministério da Fazenda) e pela Secretaria de Direito Econômico (SDE, vinculada ao Ministério da Justiça).
Assim, no contexto da concorrência, passou o Estado a privilegiar a sua função reguladora, ganhando o CADE uma maior dimensão. Passou o Conselho a exercer a função estatal de intervenção indireta na economia, mais especificadamente em um modelo de intervenção por direção, em que pese ser inconcebível a "criação" de normas cogentes pelo Conselho. Com efeito, tratando-se de norma de restrição da atividade econômica, não há outro instrumento normativo diverso da Lei apto a tal incumbência, conforme determinado pelo próprio texto constitucional. Deste modo, a intervenção do Estado por meio desta autarquia pode ser sintetizada num modelo de intervenção indireta por direção, mas que ocorre por meio da aplicação legislativa existente, esta sim, de natureza cogente.
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Notas
- GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1998: interpretação e crítica. p. 149.
- FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste, p. 143