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Lacunas, meios de integração e antinomias.

Uma abordagem à luz do sistema jurídico aberto e móvel

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Agenda 11/07/2011 às 20:33

2.LACUNAS NO SISTEMA JURÍDICO

A questão das lacunas no sistema jurídico e suas formas de colmatação passaram a despertar maior interesse e atenção dos juristas a partir do século XIX, com o advento do positivismo jurídico.

Tal como se apresenta atualmente, surgiu na época da Revolução Francesa, sendo que a teoria dos três poderes idealizada por Montesquieu com base na fórmula "Pour qu’on ne puisse pas abuser du pouvoir, il faut que par la disposition des choses, le pouvoir arrête le pouvoir" [44], culminou por dar origem a uma concepção do Poder Judiciário com feições próprias.

Essa concepção do Poder Judiciário, então, elimina o antigo procedimento de colmatação das lacunas do direito pelo rei e os arrêts de règlement [45], uma vez que em sua elaboração os juízes se imiscuíam no exercício do Poder Legislativo, mantendo, porém, o recurso do Judiciário ao Legislativo. [46]

Hodiernamente, a Ciência do Direito aparece como uma sistematização de normas para a obtenção de decisões possíveis [47], havendo uma maior preocupação com a conexão das normas entre si, atentando-se para o problema da completude ou incompletude do ordenamento jurídico, que implica a questão da existência ou inexistência das lacunas.

A esse respeito, autores há que se dividem em duas principais correntes antitéticas: (i) a primeira, afirma a inexistência de lacunas, pois o sistema jurídico formaria um todo orgânico sempre suficiente para disciplinar todos os comportamentos humanos; (ii) a segunda, admite a existência de lacunas nos ordenamentos que, por mais perfeitos que almejem ser, não poderiam jamais prever todas as situações de fato que, frequentemente, surgem nos mais variados estilos e ritmos de vida da pós-modernidade [48].

Analisaremos com maior profundidade ao longo deste trabalho essas doutrinas afirmadoras e negadoras da existência das lacunas jurídicas, porém não sem antes examinarmos de forma preliminar a importante noção de sistema.

2.1.Noção de lacuna e de sistema

Consoante os ensinamentos da professora Maria Helena Diniz, "as idéias de completude ou incompletude do sistema, de seu aspecto uno ou multifário, de sua abertura ou fechamento é que possibilitam a formulação de uma definição explícita de ‘lacunas’. É, portanto, a partir de um modelo de sistema jurídico que se pode mostrar o funcionamento dos ‘vazios’ jurídicos" [49].

Daí entendermos adequado apresentar, com base na lição de Tercio Sampaio Ferraz Jr., a noção de sistema, que nas palavras do ilustre professor teria origem grega, significando aquilo que é construído (syn-istemi) [50].

"Sistema", diz Maria Helena Diniz, "significa nexo, uma reunião de coisas ou conjunto de elementos, e método, um instrumento de análise. De forma que o sistema não é uma realidade nem uma coisa objetiva; é o aparelho teórico mediante o qual se pode estudar a realidade. É, por outras palavras, o modo de ver, de ordenar, logicamente, a realidade, que, por sua vez, não é sistemática. Todo sistema é uma reunião de objetos e seus atributos (que constituem seu repertório) relacionados entre si, conforme certas regras (estrutura do sistema) que variam de concepção a concepção. O que dá coesão ao sistema é sua estrutura. Esse sistema será fechado quando a introdução de um novo elemento o obriga a mudar as regras, ou seja, a estrutura, e a elaborar uma nova regra. Por exemplo: o jogo de xadrez é um sistema fechado, porque se inventarmos uma peça nova ao lado do cavalo, um burro, exemplificativamente, teremos que criar uma regra nova que diga como é que o burro anda: de costas ou se pode pular como o cavalo etc. O sistema fechado é completo porque contém uma norma que regula todos os casos e retrospectivo, uma vez que se refere a fatos que circunscreveu. Será aberto quando se pode encaixar um elemento estranho sem necessidade de modificar a sua estrutura. Como exemplo, poder-se-ia citar a língua portuguesa, na qual podemos utilizar uma palavra pertencente ao repertório de outro sistema sem alterar a estrutura gramatical, dentro de um certo limite, como na frase: ‘Yes é um termo inglês’. Porém se se empregasse quatro vocábulos ingleses e um português, haveria quebra da estrutura do sistema linguístico português. Isso porque há um certo limite para a abertura do sistema. O sistema aberto é incompleto e prospectivo, porque se abre para o que vem, não alterando suas regras" [51].

Com efeito, o direito é realidade que pode ser estudada sistematicamente pela Ciência do Direito, não se constituindo um sistema jurídico em si mesmo.

Entretanto, caberá ao jurista apresentar o direito de uma maneira ‘sistemática’, a fim de facilitar o seu conhecimento e estudo, bem como a aplicação pelos operadores do Direito, sejam eles juízes, promotores de justiça ou advogados.

"O fenômeno da ‘lacuna’ está correlacionado com o modo de conceber o sistema", segundo adverte Maria Helena Diniz. E prossegue a ilustre doutrinadora:

"Se se fala em sistema normativo como um todo ordenado, fechado e completo, em relação a um conjunto de casos e condutas, em que a ordem normativa delimita o campo da experiência sem ser condicionada pela própria experiência, o problema da existência das lacunas ficaria resolvido, para alguns autores, de forma negativa, porque há uma regra que diz que ‘tudo o que não está juridicamente proibido, está permitido’, qualificando como permitido tudo aquilo que não é obrigatório nem proibido. Essa regra genérica abarca tudo, de maneira que o sistema terá sempre uma resposta; daí o postulado da plenitude hermética do direito. Toda e qualquer lacuna é uma aparência, nesse sistema que é manifestação de uma unidade perfeita e acabada, ganhando o caráter de ficção jurídica necessária. De uma forma sintética, poder-se-á dizer como Von Wright que ‘um sistema normativo é fechado quando toda ação está, deonticamente, nele determinada’. [52]"

Refere-se a expressão ‘lacuna’, portanto, a um estado incompleto do sistema ou, como diz Binder, "há lacuna quando uma exigência do direito, fundamentada objetivamente pelas circunstâncias sociais, não encontra satisfação na ordem normativa" [53].

Por outras palavras, Maria Helena Diniz abeberando-se em Paulino J. Soares de Souza Neto assevera que "haverá sempre lacunas quando uma solução jurídica para determinado caso se torne necessária e a legislação não ofereça uma solução que se adapte ao caso concreto em espécie" [54].

Assim sendo, o conjunto ordenado se transmuda em desordem e descontinuidade, passando a apresentar um ‘vazio’ (rectius: uma lacuna [55]), justamente por não conter solução expressa para o caso ‘sub judice’.

Por fim, lembra a professora Maria Helena Diniz que "o vocábulo ‘lacuna’ foi introduzido, com sentido metafórico, para designar os possíveis ‘vazios’, ou melhor, os referidos casos em que o direito objetivo não oferece, em princípio, uma solução; em que há, por outras palavras, uma impossibilidade lógica de solução normativa a um caso, dentro de um determinado sistema" [56].

Daí se justificar a íntima relação entre ‘lacuna’ e ‘sistema’.

2.2.A incompletude do sistema e a existência das lacunas

Conforme demonstramos acima, o direito aparece como um sistema que apresenta ‘lacunas’, sendo de rigor, agora, o estudo relativo à incompletude do sistema.

Para tanto, valemo-nos do conceito elaborado por Karl Engisch, para quem "lacuna é uma imperfeição insatisfatória dentro da totalidade jurídica" [57]. Logo, na concepção deste autor, a lacuna representa, em verdade, nada mais que uma ‘falha’ ou uma ‘deficiência’ do sistema jurídico, revelando o intrínseco caráter relacional entre ‘lacuna’ e ‘sistema’ [58].

Por outro prisma, Tercio Sampaio Ferraz Jr. faz uma interessante análise acerca da ‘imperfeição insatisfatória’ e da ‘totalidade jurídica’, relacionando-as à problemática das lacunas no sistema jurídico. Assim se pronuncia o eminente doutrinador:

"‘Perfeição’ é a qualidade daquilo que está concluído, ou, mais propriamente, acabado de fazer. O perfeito é aquilo que está feito, plena e completamente, ou seja, o que não possuía, mas passou a possuir tudo o que precisa, dentro de um determinado limite. O perfeito é algo que ocorre dentro de um limite. Logo, a imperfeição é um não-acabado, é aquilo que não foi concluído dentro de um limite. No caso de ‘lacuna’ essa imperfeição é, ainda, insatisfatória. O termo ‘insatisfatório’ é negação do satisfatório, que é o suficientemente feito. Porém, nem tudo o que é imperfeito é insatisfatório; há imperfeições satisfatórias. Um exemplo disso é a noção de ‘obra aberta’ de Umberto Eco. A obra aberta é um tipo de obra, um quadro, por exemplo, que não está acabado. Ser ele imperfeito, mas não insatisfatório, porque o artista ou aquele que o observar tem a possibilidade de completá-lo. A obra aberta é, portanto, aquela que torna disponíveis a várias integrações complementares ‘complementos produtivos concretos’; é a obra que possui uma vitalidade estrutural e que, não sendo completa, é válida, tendo-se em vista diversos resultados. Assim sendo, a ‘lacuna’, enquanto ‘imperfeição insatisfatória’, exprime uma falta ou uma insuficiência que não deveria ocorrer dentro de um certo limite. A lacuna pode ocorrer, porém não deve ocorrer. O vocábulo ‘limite’ conduz ao segundo elemento da definição de Engisch, a ‘totalidade jurídica’, na qual não deve, mas pode, ocorrer uma imperfeição insatisfatória; é algo feito, que tem um início definido e um fim previsível, dotado de uma certa permanência. Tendo limites temporais definíveis, ela aponta para limites espaciais, representados pela qualificação jurídica. Percebe-se que se trata de uma totalidade entre totalidades, na qual se pode separar o que pertence e o que não pertence a ela, o que está dentro e o que está fora, o que pode entrar e o que não pode, o que deve e o que não deve, sendo, portanto, um sistema. Há lacuna no sistema de normas se há um dado que não pode ser regulado por ele, não se podendo dizer, portanto, se pertence ou não ao sistema, ou mesmo se deve ou não pertencer a ele. De forma que o sistema é uma ordem, capaz de uma perfeição (satisfatória) que de repente pode apresentar uma desordem (imperfeição insatisfatória) pela intersecção do sistema com qualquer outro com o qual tenha limites." [59]

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Na verdade, uma vez que a palavra ‘lacuna’ traz consigo a idéia de incompletude, mister desvendarmos se essa ‘falta de solução’ seria ou não insatisfatória. Eis aí a nosso ver o ponto nevrálgico da questão, cuja resposta Maria Helena Diniz, estribada na lição de Karl Engisch nos auxilia a encontrar:

"(...) Na hipótese de ‘lacuna legal’ o seu preenchimento é possível mediante o emprego dos argumentos analógicos e a contrario ou de outras operações de pensamentos baseados em lei, realizadas pelos magistrados. Contudo, tais técnicas não excluem as lacunas; simplesmente procuram fechá-las ou colmatá-las. Mas em relação à ‘lacuna jurídica’ a questão não é tão simples quanto parece, porque, para Engisch, mesmo que exista uma norma (art. 126 do CPC brasileiro, p. ex.), prescrevendo a ‘proibição da denegação da justiça’, obrigando o juiz a decidir todo e qualquer litígio, isso não significa que a sua decisão possa ser, suficientemente, fundamentada a partir de princípios jurídicos, que ela seja uma decisão de direito e não uma mera decisão arbitrária. Isto porque, apesar de todas as possibilidades de uma descoberta integradora do direito – analogia, princípios gerais de direito etc. – sempre haverá casos nos quais não é possível uma colmatação das lacunas. De maneira que a questão será a de se saber em que medida a ‘valoração pessoal’ é uma decisão efetivamente pessoal (ou subjetiva) ou se encontra apoio em critérios objetivos.

Na opinião de Engisch podem ficar em aberto lacunas insuscetíveis de preenchimento; assim sendo, o dogma da plenitude do ordenamento jurídico e a conhecida proibição da denegação da justiça não são válidos a priori: seria até concebível que o órgão judicante tivesse o poder de, em casos de lacunas, recusar a resposta, pois nenhum juiz ou tribunal tem competência ou é designado para proferir decisão, segundo o seu alvedrio ou de acordo com a oportunidade. O que se lhe exige é que responda a todos os conflitos jurídicos juridicamente, que preencha as lacunas do direito positivo, na medida do possível através de meios e instrumentos jurídicos. Por conseguinte, para esse autor, não existe uma plenitude, um fechamento do sistema que seja lógico – teorético – juridicamente necessário. Todavia, afirma que sempre é verdade que a plenitude do ordenamento jurídico pode ser mantida como uma idéia ‘regulativa’, como um princípio da razão que, enquanto regra, postula o que deve acontecer, não aceitando o que no objeto nos é apresentado como um dado em si. Admitindo dessa forma a existência de autênticas lacunas na ordem jurídica que devem ser colmatadas pelo poder competente, mediante o emprego de mecanismos jurídicos, a fim de que se mantenha como princípio a completude do sistema jurídico." [60]

Fato é que o direito não é estanque, devendo sempre acompanhar a nova realidade social dentro da qual se insere, sob pena de não ser alcançado o ideal de pacificação social a que se propõe. É sabido que a vida em sociedade proporciona diariamente um sem-número de novos fatos e conflitos, os quais deverão ser equacionados pelos juízes, mercê da elaboração de novas leis pelo Poder Legislativo.

Mas, grandiosa e complexa é essa tarefa, lembrando-se ainda que as normas, por mais completas que sejam, são só uma parte do direito.

Nesse passo, Santi Romano há muito criticava a noção de direito como pura normatividade. São suas as seguintes palavras:

"Derecho no es sólo la norma dada, sino también la entidad de la cual ha emanado la norma. El proceso de objetivación, que da lugar al fenómeno jurídico, no se inicia en la emanación de una regla, sino en un momento anterior: las normas no son sino una manifestación, una de las distintas manifestaciones; un medio por medio del cual se hace valer el poder del ‘yo’ social". [61]

Segundo Maria Helena Diniz, "há até quem diga que a simples noção de direito reduzida à afirmação ‘o direito é norma’ é um conceito ao alcance de qualquer mentalidade primária, perfeitamente acessível aos graus mais elementares de cultura, de maneira que um pequeno número de noções elementares é o suficiente para dar um perfeito conhecimento do direito a quem quer que seja, pois ele é tão simples – é a norma. Para que, dizem, cinco anos de ensino superior, para que toda essa preparação filosófica, sociológica etc.?" [62]

Outrossim, não há que se fazer confusão entre ‘norma’ e ‘proposição jurídica’, distinção esta sobre a qual a professora Maria Helena Diniz igualmente teve oportunidade de pontuar:

"a) O dever ser da norma jurídica tem sentido prescritivo (imperativo), o dever ser da proposição um sentido descritivo (indicativo);

b) A norma decorre de um ato de vontade, trata-se de uma criação real e a proposição de um ato de conhecimento, sendo assim uma criação epistemológica, como diz Kelsen.

A norma jurídica, portanto, não é um juízo, mas um imperativo, é uma manifestação de um ato de vontade e não de um ato de conhecimento. A função significativa de uma norma não é enunciar, mas prescrever um determinado comportamento humano, ou seja, impor um dever." [63]

Também Giorgio Campanini afirma que o direito não se reduz apenas à lei, com o que estamos plenamente de acordo:

"Indubbiamente el concetto di legge è parte integrante del più generale concetto di diritto non è soltanto da legge, nè con essa è stato storicamente identificato: accanto alla legge positiva sono sempre state poste, anche nel momento normativo del diritto, legge naturale e consuetudine, talchè ridurre la storia del concetto di diritto alla storia del concetto de legge sareabbe un’arbitraria e ingiustificata trasposizione sul piano storico di attuali posizioni teoretiche non sufficientemente e criticamente fondate." [64]

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Portanto, as normas fazem parte de um âmbito maior, que é o direito, estando nele inseridas; "dever-se-á levar em conta, em caso de lacunas no direito civil, o sistema jurídico em sua totalidade e não apenas o normativo, e além disso sempre tendo-se em vista determinado caso concreto, que está sendo submetido à apreciação do magistrado." [65]

2.3.Espécies de lacunas

A seguir pretendemos apresentar ao leitor, de modo o mais possível claro e objetivo, as espécies de lacunas frequentemente mencionadas pela doutrina nacional e estrangeira, sem, contudo, termos a pretensão de esgotar o assunto, mormente diante do escopo do presente trabalho.

Lembramos, por oportuno, que a rigor não há classificação certa ou errada, mas sim útil ou inútil. Por isso, o nosso esforço em apresentar uma classificação que se coadune com o direito pós-moderno, sem nos afastarmos, é claro, dos fundamentos doutrinários de renomados e conhecidos juristas, os quais nos serviram – e sempre servirão – de base.

Passamos, então, a relacionar, abaixo, as espécies de lacunas que possam despertar maior interesse científico aos operadores do Direito, ao menos segundo a nossa ótica (para uma visão mais detalhada do tema sugerimos consultar a obra "As Lacunas no Direito", de autoria de Maria Helena Diniz, publicada pela Editora Saraiva, de cujos ensinamentos ora nos valemos – 5ª edição, pp. 84-95):

"Zitelmann distingue as lacunas em "autênticas" e "não autênticas". Tem-se a lacuna autêntica quando, a partir de uma análise da lei, é impossível a obtenção de uma decisão a um caso concreto. A inautêntica ocorre quando o fato-tipo está previsto em disposição legal, mas a solução possível é tida como insatisfatória ou falsa. Só a autêntica é uma lacuna jurídica; a não autêntica é apenas uma lacuna política." (g.n.)

"Engisch denomina essas lacunas de modo diverso. Diz ele que, quando uma conduta, cuja punibilidade nós talvez aguardemos ‘consciente e deliberadamente’ não é punida pela norma e se esta punibilidade nos cai mal, podemos falar em lacuna político-jurídica, crítica, imprópria ou de lege ferenda, de uma lacuna do ponto de vista de um futuro direito mais perfeito e não em lacuna autêntica, própria, isto é, de lege lata, de uma lacuna no direito vigente. E, esclarece, uma lacuna de lege ferenda apenas pode motivar o legislativo a reformular o direito, mas não o judiciário a uma colmatação da referida lacuna. O preenchimento de lacunas só diz respeito à lacuna de lege lata." [66] (g.n.)

"Bobbio [67] ao se referir a esses tipos de lacunas lança mão de outras denominações. A ausência de uma norma justa é uma lacuna de jure condendo, ideológica ou imprópria, ou ainda objetiva, já que se trata de uma lacuna no sentido de uma confrontação entre o que é um sistema real e um sistema ideal. (...) Não pode haver lacuna, no sentido de falta de normas, mas sim lacuna no sentido de ausência de norma justa. A lacuna imprópria distingue-se da lacuna real, de jure condito ou propriamente dita, ou ainda subjetiva, imputável ao legislador e que seria uma lacuna dentro do sistema." (g.n.)

"Karl Larenz [68] denomina as lacunas impróprias de Zitelmann de lacunas de regulação, que concernem a uma norma jurídica que se apresenta incompleta relativamente a um setor material. Essas lacunas de regulação, por sua vez, podem ser ‘abertas’ ou ‘ocultas’. Serão abertas quando faltar na lei uma ordem positiva que não atinge o fim da regulação, e ocultas quando faltar uma limitação, para determinados casos, de uma norma dada, isto é, uma ‘ordem negativa de validade’. Só que para Larenz essas duas espécies são ‘lacunas próprias’, sendo que o juiz está obrigado a integrá-las." (g.n.)

"Para Zitelmann, o ordenamento jurídico, sob o prisma lógico, não tem lacunas, uma vez que ‘tudo que não está proibido, está juridicamente permitido’. Não se trata, portanto, de lacuna normativa, mas, evidentemente, de lacuna axiológica, já que não há forma de interação humana que não esteja juridicamente regulada. (...) Hipóteses há em que a norma existente revela-se inaplicável por abranger casos ou consequências que o legislador não teria contemplado se os tivesse conhecido. Temos aqui uma lacuna axiológica, uma vez que, logicamente, a matéria estava disciplinada, embora de modo insuficiente, e vivenciada como injusta." (g.n.)

"Com base na classificação das lacunas em autênticas e inautênticas, a doutrina entendeu que as lacunas podem ser intencionais ou não-intencionais, sugerindo, dessa forma, que o sistema normativo contém uma certa intencionalidade, que permite saber se um caso é de falha que deve ser sanada (lacuna autêntica) ou que deve ser deixada tal como está (lacuna inautêntica). As lacunas voluntárias ou intencionais são as que o legislador, propositadamente, deixa em aberto, porque a matéria, por ser assaz complexa, exigiria normas excessivamente minuciosas ou porque, por não se sentir em condições adequadas, entende ser mais propício confiar ao juiz a missão de encontrar a norma mais específica. As não-intencionais ou involuntárias são as que podem surgir quando o elaborador da norma não observou o direito cabalmente (lacuna de previsão), seja porque a matéria não existia na época (lacuna desculpável), seja porque não examinou o caso corretamente (lacuna indesculpável)" [69]. (g.n.)

"Werner Goldschmidt [70], ao se referir às lacunas, emprega terminologia bem peculiar: lacunas normológicas, pertinentes à ausência de normas requeridas por outras, isto é, que não se normativizam por lei ou que não se regulamentam por decreto etc., e lacunas dikelógicas, que ocorrem na falta de normas requeridas pela justiça, que, por sua vez, podem ser diretas, se tal omissão se deve a motivos históricos em que o legislador não pôde prever a necessidade das normas, ou indiretas, se as normas existentes são tão injustas que não podem ser aplicadas." (g.n.)

"Schreier [71] chama lacunas transcendentes à ausência total de regulamentação de um fato social e lacunas imanentes às que existem dentro da ordem jurídica, enquanto esta disciplina uma determinada questão e não outra que se encontra intimamente correlacionada com ela." (g.n.)

"A doutrina alemã distinguiu as lacunas em primárias (originárias) e secundárias (derivadas ou posteriores). As primárias são as existentes na ordem normativa desde o momento de sua gênese, e as secundárias são as que aparecem posteriormente, seja em consequência de uma modificação da situação fática (p. ex., em virtude de progresso econômico e técnico), ou de aparecimento de figuras contratuais que não se encaixem nos tipos jurídicos predeterminados de um sistema, ou devido a uma mutação de valores em relação à ordem jurídica [72], hipóteses essas que trazem em si questões novas que o legislador não poderia ter previsto, dando lugar às lacunas." (g.n.)

"Amedeo Conte [73] apresenta um conceito geral de lacuna. Lacuna, ensina ele, de uma ordem normativa é uma inadequação que designa, sempre, um conceito genérico, que é a ausência de uma norma. O gênero nada mais é senão a ausência de uma norma. Nesse teor de idéias propõe uma classificação de lacuna, em lacuna deontológica, que se subdivide em ideológica e teleológica, e lacuna ontológica, que sofre a subdivisão em crítica e diacrítica.

As lacunas deontológicas seriam inadequações da ordem normativa ao ‘dever-ser’ (Sollen), ou seja, àquilo que deve ser. Trata-se de uma lacuna de dever-ser, quando há uma coisa em relação ao processo de avaliação que não se pode avaliar, por faltar um critério. Esse tipo de lacuna contém duas subespécies. Das lacunas deontológicas resultam as ideológicas – caso em que temos lacunas relacionadas a um critério transcendente, isto é, extrínseco à ordem jurídica, expressando a ausência de uma qualificação justa de um comportamento e a presença de uma norma que difere daquilo que se estima como justo, apresentando uma inadequação da ordem normativa em relação a uma ideologia dessa mesma ordem – e as teleológicas ou técnicas – subsistem em relação a um critério imanente, apresentando uma inadequação da ordem normativa a um fim imanente à própria ordem, contendo uma ausência de eficácia, ou por outras palavras, integrando a ausência de uma norma cuja validade é condição de eficácia de uma outra.

As lacunas ontológicas representam inadequações da ordem normativa quanto ao ‘ser’ (Sein), aquilo que é, abrangendo as lacunas críticas e diacríticas. Há lacunas críticas quando for impossível uma avaliação deôntica de um comportamento de acordo com a norma, devido a incompletude da ordem jurídica. As lacunas críticas se subdividem em objetivas e subjetivas. A lacuna crítica objetiva subsiste na hipótese de não-qualificação deôntica de condutas, isto é, nos casos em que um comportamento não tem status deôntico, pelo fato de nenhuma prescrição normativa qualificar, deonticamente, sua omissão ou comissão, isto é, quando, pelo menos, um comportamento (omissão ou comissão) não é nem permitido nem proibido, havendo aí três hipóteses de lacuna: a comissão de um comportamento que não é permitida nem proibida; a omissão de uma conduta que não é nem permitida, nem proibida; a comissão e omissão de, pelo menos, um comportamento não são nem permitidas nem proibidas. A lacuna crítica subjetiva deriva da impossibilidade de reconhecer se uma norma é válida ou da impossibilidade de a conhecer. A impossibilidade de reconhecer essa norma pode derivar de sua antinomia com uma outra norma, hipótese em que está presente uma lacuna lógica. A lacuna lógica pode, por sua vez, ser distinguida em duas espécies: lacunas lógicas consistentes na antinomia de normas, em que um comportamento (comissão ou omissão) é permitido por uma norma e proibido por outras, e lacunas lógicas consistentes na antinomia de normas sobre normas e na consequente impossibilidade de se saber qual entre as normas incompatíveis é válida. A impossibilidade de conhecê-la pode advir da indeterminação semântica de sua expressão.

As lacunas diacríticas derivam da impossibilidade de uma decisão ou de uma resolução para o caso concreto controvertido.

As lacunas ontológicas e as deontológicas ideológicas são lacunas do direito, ao passo que as lacunas deontológicas teleológicas são lacunas no direito." (g.n.)

"Paul Foriers [74] também apresenta uma classificação de lacunas em técnicas e práticas. A técnica ou intra legem seria a ausência pura e simples de uma regulamentação, e a prática consistiria na presença de uma norma considerada pelo juiz, no estado atual de nossas concepções e costume, como inadequada." (g.n.)

"Bastante interessante é a distinção proposta por Ulrich Klug [75], tendo por base a consideração do problema das lacunas como uma inadequação entre um sistema de normas N, e um conjunto de fatos S, classificando as lacunas do seguinte modo: lacunas verdadeiras e não-verdadeiras. Ter-se-iam as primeiras quando a solução para um estado de coisas S falta no sistema normativo N, e as segundas quando S é disciplinado por N, porém a solução é tida como falsa, porque não satisfaz; lacunas intencionais e não-intencionais, que, no mesmo sentido abordado anteriormente, dependem da vontade do legislador; lacunas primárias e secundárias, sendo as primeiras já existentes por ocasião do nascimento do sistema normativo N, e as segundas as que se manifestariam mais tarde; lacunas da lei e do direito, que se distinguem se se admitir a existência de dois sistemas normativos N1 e N2, onde N1 seria a ordem legal positiva, e N2, uma ordem de direito supralegal, e as lacunas surgiriam, no primeiro caso, como a falta de norma no sistema N1, e no segundo, como a ausência de norma do sistema N2 supralegal; lacunas provisórias da lei, que apareceriam, admitindo-se a referida existência dos sistemas N1 e N2, onde a falta de norma no N1 é preenchida por norma de N2; lacunas imanentes e transcendentes, que requerem a consideração de dois sistemas de normas, sendo imanente a oriunda de uma falha no sistema N1 e transcendente a advinda do N2, considerando-se que o conjunto de fatos S esteja apenas disciplinado por N1. Klug fala, ainda, em ‘domínio vazio do direito’, que abrange um conjunto de fatos S não regulamentados, intencionalmente, pelo legislador, por isso não são nem proibidos nem permitidos.

Menciona Klug as lacunas de conflito ao se referir à contradição de duas normas de um sistema normativo, sem que se possa saber qual dessas disposições deverá ser aplicada ao caso singular. Aqui temos o que se denomina ‘antinomia real’; esta dá origem, no entender de Klug, a uma lacuna de conflito, isto porque, em sendo contraditórias, as normas se excluem reciprocamente, obrigando o magistrado a solucionar o caso segundo os critérios de preenchimento de lacunas." (g.n.)

"Zygmunt Ziembinski [76] fala em lacunas lógicas, em caso de antinomias; em axiológicas, na hipótese de lacuna de lege ferenda, e em lacunas de construção, sendo esta última a verdadeira lacuna, surgindo quando houver uma omissão nas normas de organização de um sistema legal, tão frequentes nos sistemas legais contemporâneos (que contêm normas de conduta que fixam os deveres impostos aos sujeitos de direito pelo legislador e as de organização, que são normas dirigidas a outros sujeitos ao conferir-lhes um poder). Se houve omissão nas normas de organização, temos a autêntica lacuna, segundo esse autor, pois seriam situações em que a lei nos apresenta uma norma que determina que uma relação jurídica se dê de tal modo, sem contudo especificar as várias possibilidades para a consecução do que nela está previsto, deixando ‘em branco’ as decisões de detalhes ou sem eleger qual das possibilidades deseja." (g.n.)

"Krings [77] separa as lacunas externas, que se situam fora do sistema legal, das internas, que são as que se apresentam dentro dos limites do sistema legal, requerendo a colmatação das lacunas. As ‘externas’ são as que para ser preenchidas requerem a extensão do sistema ao caso concreto não previsto; p. ex., mediante o recurso analógico. As ‘internas’ surgem quando a lei emprega alguns termos, sem contudo fornecer sua definição, ou seja, quando tal lei é ambígua, obscura ou imprecisa, caso em que são colmatadas pelos tribunais." (g.n.)

Como dito, sem qualquer pretensão de esgotarmos todas as possibilidades classificatórias – o que seria, convenhamos, um trabalho hercúleo –, entendemos por bem apresentar, por derradeiro, os tipos de lacunas relacionados por Betti [78]:

"Lacunas ínsitas

ab origine na norma ou supervenientes com o decurso do tempo ao modificarem-se as relações; lacunas resultantes da falta de valorações normativas, daquelas de que se deduz a máxima de decisão (lacunas de valoração) ou de sua inadequação no tratamento jurídico; lacunas dependentes de definições totais ou parciais de quaisquer elementos do tipo legal ou do estatuído no preceito (lacuna de previsão); lacunas dependentes da alternatividade, isto é, decorrentes de mudanças de relações fáticas; e lacunas de colisão, que supõem a exigência de uma adequação e de um ponto de acordo das normas existentes com a sobrevinda." (g.n.)

Lobriga-se, portanto, haver infinitas possibilidades de classificação das lacunas, as quais são analisadas por cada um dos juristas sob um prisma peculiar. Se, de um lado, é certo que as dificuldades classificatórias existem – como muito bem ressalta a professora Maria Helena Diniz [79] –, de outro lado, é certo que essas dificuldades decorrem, principalmente, da metodologia e da terminologia empregada pelos juristas.

2.4.As lacunas nas decisões judiciais

Em trabalho de extraordinária grandeza, o saudoso Ministro Carlos Alberto Menezes Direito [80] muito bem pontuou o papel do juiz frente às decisões judiciais.

Procurando analisar como se forma a decisão judicial [81], quais os elementos essenciais que levam o julgador a decidir a questão de determinada maneira e por que uma mesma regra jurídica recebe tratamento diferenciado dos Juizes e Tribunais, sustenta que a decisão judicial não decorre da pura aplicação da lei considerando um dado caso concreto.

Diz que o direito positivo é, apenas, um meio para que o juiz preste a jurisdição, sendo que após o contato com a realidade dos autos, o juiz alcança o segundo momento de sua atividade: a determinação das regras ou princípios jurídicos aplicáveis ao caso. E essa determinação, afirma Menezes Direito abeberando-se em José de Oliveira Ascensão [82], pode ser dividida em três processos fundamentais: 1) interpretação; 2) integração das lacunas; e 3) "interpretação enunciativa". (g.n.)

No que nos fala mais de perto, a questão da integração das lacunas relaciona-se diretamente com a proibição de aplicação do "non liquet" [83], que "era a fórmula empregada pelo magistrado ao perceber que não dispunha de elementos para decidir" [84].

Conforme relata Maria Helena Diniz, houve época em que vigorou a idéia de que na falta de norma expressa, o juiz deveria abster-se de julgar, como era o caso do pretor romano [85]. Hodiernamente, porém, não é mais assim, estando o juiz obrigado, por lei, a decidir todo e qualquer litígio jurídico que lhe seja submetido à apreciação.

Com efeito, as regras expressas de proibição da denegação de justiça estão insculpidas no artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942), bem como no artigo 126 do Código de Processo Civil (Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973), os quais serão melhor analisados no item 3.1 a seguir.

O legislador prescreveu ambas as normas acima, objetivando estabelecer a "plenitude do ordenamento", uma vez reconhecida a total impossibilidade de se regulamentar todas as condutas na vida em sociedade.

Note-se que, "se o juiz deixa de julgar, alegando ausência de norma para o caso sub judice, o sistema será, em relação ao referido caso, incompleto" [86], sendo que a decisão judicial, em última análise, sequer elimina as lacunas porventura existentes.

De fato, não se fecha a lacuna ao aplicar a um caso não previsto em lei a analogia, o costume ou, ainda, os princípios gerais de direito. Se o ordenamento não for completo, não será a jurisdição que o tornará completo. [87]

Além disso, nas sempre sábias palavras do professor Tercio Sampaio Ferraz Jr., "o processo judicial não tem por escopo acabar com ressentimentos, eliminar conflitos, mas pôr-lhes fim. A decisão, em seu conceito moderno, soluciona uma questão sem eliminá-la, pois ressentimentos e decepções não podem ser institucionalizados. A decisão jurídica distingue-se das demais, porque é idônea para terminar conflitos, pondo-lhes um ‘fim’. Pôr um fim não quer dizer eliminar incompatibilidades; significa tão somente que os conflitos não podem mais ser retomados no plano institucional (coisa julgada), não tendo, portanto, o poder de eliminar as dúvidas, que podem subsistir após a decisão dos conflitos." [88]

E arremata, dizendo: "A ausência de norma, a omissão, ou a lacuna, não torna um comportamento obrigatório ou permitido, mas juridicamente indecidível, cabendo ao órgão judicante torná-lo decidível." [89]

Por conseguinte, vê-se que por mais sagaz que o legislador seja, jamais conseguirá prever todos os fatos que possam ocorrer na sociedade pós-moderna – como, aliás, também não o fez no passado –, sendo desarrazoado pretender que no ordenamento jurídico existam normas exaustivas regulando todas as relações jurídicas. Daí uma primeira conclusão é inevitável: o direito é e sempre será lacunoso! Disso não podemos fugir. Nunca.

Logo, a problemática das lacunas jurídicas, ante o caráter dinâmico do direito é, conforme ensina Maria Helena Diniz, "uma decorrência lógica oriunda de sua própria estrutura" [90].

Caberá, então, ao magistrado, a colmatação [91] das lacunas existentes, ao aplicar o direito ao caso concreto, suprindo-se a omissão legislativa.

Sobre o autor
Tarlei Lemos Pereira

Especialista em Direito de Família e das Sucessões e Mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito – FADISP; Membro fundador da Academia de Pesquisas e Estudos Jurídicos – APEJUR; Advogado em São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEMOS PEREIRA, Tarlei. Lacunas, meios de integração e antinomias.: Uma abordagem à luz do sistema jurídico aberto e móvel. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2931, 11 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19511. Acesso em: 5 nov. 2024.

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