INTRODUÇÃO
Com a constatação da necessidade de proteger os direitos básicos do homem, a comunidade internacional mobilizou-se e produziu normatizações capazes de estabelecer a promoção, consolidação e evolução das garantias básicas imanentes à adequada proteção da vida humana e ao convívio social.
Assim, para permitir um melhor debate acerca dos pontos divergentes e buscar a obtenção da maior harmonia possível, as organizações internacionais foram sendo paulatinamente instituídas e Declarações, Tratados, Convenções e Pactos foram sendo instituídos para formar o corpus legis atualmente denominado Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Neste sentido, é compreensível que existam divergências no trato dos Direitos Humanos por cada país, mas, em alguns aspectos de histórico descaso ou agressão, a proteção internacional deveria buscar o caminho da melhora.
Contudo, os horrores sentidos durante a Segunda Guerra Mundial impulsionou os países soberanos à necessária propagação e ampliação das normas até então vigentes, pois tal episódio nefasto restou incutido profundamente na memória recente mundial.
E assim se promoveu uma vasta normatização em busca da tão almejada Proteção Internacional aos Direitos Humanos, o que contou com a maciça participação dos Estados atuantes no cenário internacional.
Todavia, pouca valia é conferida a um sistema de normas que se limita a garantir direitos e esquece-se de promover a sua efetividade.
Por tal razão, o presente estudo busca demonstrar como a soberania estatal pode ser mitigada, relativizada, parcialmente reduzida com a finalidade de garantir a efetividade das normas protetivas do Direito Internacional dos Direitos Humanos, bem como apontar os seus reflexos no âmbito interno.
Com esta trilha delimitada, inicialmente são apresentados os aspectos introdutórios salutares para a devida compreensão do que se pretende analisar.
Primeiro, a soberania é analisada em breves, mas não superficiais palavras, demonstrando-se, desde já, sua real natureza em relação ao objeto final posteriormente abordado.
Em seguida, lança-se um olhar pontual sobre o vasto e rico Direito Internacional dos Direitos Humanos e a Proteção Internacional dos Direitos Humanos, apresentando em poucas linhas a sua evolução até os dias atuais e apontando, ao final, a atuação mantida pelo Brasil nesta seara.
Ao final, com a ajuda do conhecimento já obtido nas duas primeiras partes, apresenta-se, fundamentadamente, a análise da efetivação da Proteção Internacional aos Direitos Humanos por meio da mitigação da soberania de Estados atuantes nas relações internacionais.
Portanto, esta divisão na apresentação do presente estudo torna capaz a aferição, na medida do possível, dos fatos e fundamentos relacionados a este importante instrumento que busca a efetividade das normatizações do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
1.ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
Antes de adentrarmos no exame pormenorizado do tema objeto do presente estudo, é preciso tecer, ainda que sucintamente, algumas considerações acerca de dois conceitos estruturais e basilares: a soberania e o Direito Internacional dos Direitos Humanos.
1.1.SOBERANIA
Inicialmente, é importante observar que, sob o aspecto prático, o conceito de soberania altera-se de acordo com o momento histórico-político, não podendo confundir-se as suas atuais acepções com aquelas de sua época de origem [01].
Com tal noção preliminar, é possível atestar que a soberania trata-se de um conceito plástico, maleável, amorfo, variável de acordo com a ordem vigente.
Em seu sentido puramente etimológico, soberania significa "autoridade suprema: poder soberano. / Autoridade de um soberano. / Poder político, de que dispõe o Estado, de exercer o comando e o controle, sem submissão aos interesses de outro Estado: soberania nacional" [02].
Por sua vez, Jean-Jacques Rosseau dizia ser a soberania o "exercício da vontade geral", Jean Bodin apontava ser "o poder absoluto e perpétuo de uma República", Hans Kelsen notava-a como a "expressão da unidade de uma ordem", Miguel Reale observa-a como uma "qualidade essencial do Estado" e Georg Jellinek qualificava-a como "nota essencial do poder do Estado" [03].
Portanto, desde os tempos mais primórdios do estudo da ciência política e das relações estatais, a soberania é entendida como um conjunto de prerrogativas conferidas ao Estado para o exercício autônomo de suas funções de comando, tanto no âmbito interno, quanto externo.
Em termos mais atuais, a soberania configura-se como um dos elementos [04] pelo qual o Estado exerce autoridade absoluta em relação a qualquer outro poder, nos limites internos, e permanece no mesmo plano de poder de outros Estados, nas relações externas. Assim, soberania é, internamente, o império que o Estado exerce sobre seu território e sua população, enquanto é, externamente, a autonomia e paridade perante outros Estados.
Ademais, "a noção de soberania está sempre ligada a uma concepção de poder, pois mesmo quando concebida como o centro unificador de uma ordem está implícita a idéia de poder de unificação" [05], variando os entendimentos apresentados de acordo com a "evolução do sentido eminentemente político para uma noção jurídica de soberania" [06].
Contudo, o aspecto mais importante da soberania não está em sua conceituação, mas em suas características. Não por outro motivo, a Constituição Francesa definia já nos idos anos de 1791, em seu Título III, Artigo 1º, "la souveraineté est une, indivisible, inaliénable et imprescriptible. Elle appartient à la Nation; aucune section du peuple, ni aucun individu, ne peut s'en attribuer l'exercice. [07]".
Ainda que tais características tenham sido apresentadas há considerável tempo, no atual prisma do direito internacional apenas a idéia da imprescritibilidade, como a impossibilidade de perda da soberania, é que se demonstra ultrapassada, permanecendo as demais plenamente válidas.
Pela concepção de unidade, é possível entender que a jurisdição de um determinado Estado é, dentro de seu território, exclusiva e absoluta. Para Dallari, a unidade da soberania ocorre porque:
Não se admite num mesmo Estado a convivência de duas soberanias. Seja ela poder incontrastável, ou poder de decisão em última instância sobre a atributividade das normas, é sempre poder superior a todos os demais que existam no Estado, não sendo concebível a convivência de mais de um poder superior no mesmo âmbito. [08]
Assim, a soberania impõe-se como um único e preciso facho de poder determinante para o reconhecimento estatal no âmbito interno e externo.
Como corolário da unidade surge a característica da indivisibilidade, que traduz a idéia imanente de que o poder soberano não é seccionável ou fragmentável como um mosaico, pois, do contrário, desapareceria.
Portanto, a soberania, não bastando sua unidade, incide indivisivelmente nos fatos relacionados ao Estado, inexistindo várias partes de uma mesma soberania.
Por sua vez, do agrupamento das características da unidade e da indivisibilidade da soberania surge a sua inalienabilidade, pois, apesar de denotar redundância, o Estado soberano, sem sua soberania, desaparece, ipso facto, por ausência de um de seus elementos constitutivos.
Além destas três características seculares, a soberania também é originária por não invocar sua legitimidade e sua validade no âmbito jurídico ou político. Nesta toada, a soberania, teoricamente, não se subordina a quaisquer condições ou autorizações, assim como não é afligida ou sobrepujada por qualquer outra força que se denote superior.
Como última e mais relevante característica para os fins deste estudo, a soberania é limitada. Segundo Maluf:
A soberania é limitada pelos princípios de direito natural, pelo direito grupal, isto é, pelos direitos dos grupos particulares que compõem o Estado (grupos biológicos, pedagógicos, econômicos, políticos, espirituais etc.), bem como pelos imperativos da coexistência pacífica dos povos na órbita internacional. [09]
Todavia, é interessante notar que esta característica caminha pacificamente ao lado da natureza absoluta [10] da soberania desde que (e somente nesta hipótese) por vontade do próprio Estado.
Deste modo, sem perder sua soberania e a consequente natureza estatal, é possível a um Estado limitar sua própria soberania em precisas hipóteses, sendo uma delas observada logo ademais.
1.2.DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
Em sua origem, os Direitos Humanos [11], apesar de historicamente reconhecidos desde os séculos XI e X a. c. [12], durante muitos séculos possuíam direcionamentos locais e específicos, variando de acordo com cada povo e período da história, mas, no geral, mantendo uma irretratável e gradativa evolução.
Conforme aponta Reis:
Interessante a observação de Bobbio no sentido de que se verificou a passagem dos direitos da liberdade – liberdade de religião, de opinião, de imprensa etc. – para os direitos políticos e sociais, que requerem a intervenção direta do Estado. Relativamente ao segundo processo, ocorreu a passagem do indivíduo humano para sujeitos diferentes do indivíduo, de que são exemplos: a família, as minorias étnicas e religiosas, e mesmo toda a humanidade. Quanto ao terceiro processo, houve a passagem do homem genérico para o homem específico, classificado com base em múltiplos critérios de diferenciação (sexo, idade, condições físicas). [13]
Não por outra razão, Bobbio conclui: "os direitos humanos nascem como direitos universais, desenvolvem-se como direitos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais" [14].
Todavia, esta judiciosa consolidação material não se mostrou suficiente para garantir a efetiva proteção dos Direitos Humanos, pois estes eram limitados pela própria ordem jurídica interna estatal.
Assim, Alves afirma, em magistrais dizeres, que, quanto aos Direitos Humanos, "consolida-se a convicção entre os governados – cidadãos, ativistas e minorias nacionais – de que somente a proteção dos Direitos Humanos, em todas as suas dimensões, confere real legitimidade aos governantes" [15].
Neste sentido, tornou-se necessária a proteção dos Direitos Humanos em um patamar internacional, inclusive para fins de harmonização [16], na medida do possível, dos instrumentos e políticas aplicáveis aos casos de notória e histórica violação [17].
Como ponto de partida para a internacionalização das normas relativas aos Direitos Humanos, é possível apontar o Direito Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho.
Piovesan aponta que o Direito Humanitário é aquele "que se aplica na hipótese de guerra [18], no intuito de fixar limites à atuação do Estado e assegurar a observância de direitos fundamentais" [19].
É de se notar a relevância de tal normatização, pois estabeleceu, pioneiramente, limites à autonomia e discricionariedade dos Estados soberanos na órbita internacional, ainda que em situações extremadas de beligerância.
Progredindo na Proteção Internacional aos Direitos Humanos, a Liga das Nações, estabelecida após a Primeira Guerra Mundial (1920), acenava pela necessidade da relativização da soberania estatal com o fim de consolidar a cooperação, paz e segurança internacional pela desaprovação de atos danosos à independência política e incolumidade territorial de seus participantes [20]. Para a efetivação destas pretensões, esta convenção possibilitava à comunidade internacional aplicar penalizações econômicas e militares aos Estados transgressores de suas disposições.
Assim observado, neste momento já se mitigava o entendimento até então dogmático do caráter absoluto da soberania estatal por meio da vinculação a uma série de obrigações internacionais ligadas à proteção dos Direitos Humanos.
Completando a tríade normativa pouco antes citada, a Organização Internacional do Trabalho, também criada após a Primeira Guerra Mundial (1919) [21], adveio com a finalidade de efetivar a adoção de parâmetros lídimos de trabalho e bem estar social [22].
Apesar das consideráveis discussões travadas até esta época, as monstruosidades cometidas no período da Segunda Guerra Mundial provocaram a necessidade de grandes mudanças no panorama da Proteção Internacional dos Direitos Humanos. Segundo Buerghenthal, apud Piovesan:
O moderno direito internacional dos direitos humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte destas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse. [23]
Neste quadro histórico, o direito internacional público foi impactado nas mais diversas áreas, inclusive em seus fundamentos, o que tornou possível a ascensão de suas normas a um patamar superior e a inclusão do indivíduo à condição de sujeito do direito internacional.
Mas isto não foi tudo.
O ponto nevrálgico desta situação historico-política foi permitir a evolução da sociedade internacional, outrora caracterizada por relações de coexistência marcadas por obrigações meramente jurídicas e relacionadas a interesses individuais e egoístas, a uma atuante comunidade internacional pautada pelo interesse público e compartilhamento de noções fundamentais comuns.
Assim, revelou-se de clareza solar que a proteção dos Direitos Humanos não poderia se reduzir à esfera doméstica de cada Estado [24], pois se manifesta como tema de legítimo interesse internacional.
Portanto, o fim da guerra marcou o universo jurídico pela busca de alternativas ao positivismo até então reinante e à positivação de normas protetivas dos Direitos Humanos.
Já em 1945, a comunidade internacional mobilizou-se e assinou a Declaração das Nações Unidas comprometendo-se, "após a destruição da 'tirania nazista', a procurar estabelecer uma situação de paz em que todas as nações pudessem viver com segurança dentro de suas fronteiras, livres do medo e da miséria" [25].
Com esta meta delimitada, em uma primeira etapa foi aprovada, por unanimidade [26], sem qualquer questionamento ou reserva [27], a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Posteriormente, em 1966, também foram aprovados o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Estas normas de conjunta natureza e destinação receberam o nome de International Bill of Rights e proporcionaram significativa robustez ao corpus legis do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Tomado este caminho sem volta na acertada direção da Proteção Internacional dos Direitos Humanos, várias outras normatizações de idêntica estirpe foram surgindo, configurando um processo de "multiplicação de direitos" [28].
Como aponta Piovesan:
É neste cenário que se apresentam a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, a Convenção sobre os Direitos da Criança, a Convenção contra a Tortura, a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, dentre outros importantes instrumentos internacionais. [29]
Entretanto, a Proteção Internacional dos Direitos Humanos não é limitada aos instrumentos convencionais apresentados anteriormente. Existem, também, mecanismos oriundos de resoluções elaboradas por órgãos criados pela Declaração das Nações Unidas, como a Comissão de Direitos Humanos.
Por tais razões, o Direito Internacional dos Direitos Humanos encontra-se fortemente amparado globalmente por Tratados, Convenções e pela atuação efetiva da Comissão de Direitos Humanos, assim como regionalmente por diversas outras organizações de semelhante destinação.
Em relação ao Brasil, foi possível notar uma considerável mudança no perfil adotado nas relações internacionais e no processo de internalização dos instrumentos internacionais voltados à proteção dos Direitos Humanos a partir da intensificação de seu processo de democratização advindo com a Constituição Federal de 1988.
Assim, o Brasil ratificou alguns atos internacionais direcionados à proteção dos Direitos Humanos, tais como estes apresentados abaixo:
- Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (1984) [30];
- Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1989);
- Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1989);
- Convenção sobre os Direitos da Criança (1990);
- Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1992);
- Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1992);
- Convenção Americana de Direitos Humanos (1992);
- Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1995);
- Protocolo à Convenção Americana referente à Abolição da Pena de Morte (1996);
- Protocolo à Convenção Americana referente aos Direitos Econômicos, Sociais e culturais (1996);
- Estatuto de Roma (2002);
- Protocolo facultativo à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (2002);
- Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados (2004);
- Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança sobre Venda, Prostituição e Pornografia Infantis (2004);
- Protocolo Opcional à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes (2007);
- Convenção internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado (2007);
- Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2009)
Com base neste posicionamento adotado, o Brasil assume, internacionalmente, obrigações destinadas à consolidação e aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito, bem como à manutenção de um núcleo mínimo de direitos essenciais, ainda que em situações excepcionais. Consequentemente, aceita que o cumprimento destas obrigações seja fiscalizado e controlado pela comunidade internacional.