Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

O crime de estupro de vulnerável à luz do princípio da ofensividade e da teoria da tipicidade conglobante

Exibindo página 1 de 2
Agenda 01/08/2011 às 15:59

Vislumbramos a necessidade de trabalhar de maneira mais cautelosa a questão da tipicidade material das condutas formalmente enquadráveis ao tipo penal insculpido no artigo 217-A do Código Penal brasileiro.

1 - Introdução

Em <http://jus.com.br/artigos/13356> artigo anteriormente publicado nesta revista, abordamos, de forma sucinta, questões relativas à reforma operada pela então recém publicada lei n.º 12.015/2009 nos crimes sexuais previstos no Código Penal brasileiro. Na oportunidade, ainda nos bancos da faculdade e sem doutrina ou jurisprudência disponíveis sobre as inovações legislativas, lançamos severas críticas à forma como o referido ato normativo instituiu o chamado "estupro de vulnerável"; fizemos uma leitura axiológica da novel norma penal incriminadora e criticamos parte de seu conteúdo valorativo, pois em desacordo com a realidade social; tratamos, ainda, da desproporcionalidade que cerca o preceito secundário do artigo 217-A do Código Penal, diante de determinadas hipóteses, se comparado às penas cominadas abstratamente ao crime de estupro tipificado pelo artigo 213 do mesmo diploma legal. Hoje, após prisões e instaurações de inquéritos policiais noticiadas pela mídia em decorrência de práticas de crimes de "estupro de vulnerável", bem como diante de considerável construção jurisprudencial e doutrinária, nossas críticas merecem nova leitura. Da mesma forma, em reflexão, vislumbramos a necessidade de trabalhar de maneira mais cautelosa a questão da tipicidade material das condutas formalmente enquadráveis ao tipo penal insculpido no artigo 217-A do Código Penal brasileiro. Deve-se acrescentar que a presente abordagem não trata das hipóteses previstas no §1º do artigo ora em análise, pois, de forma indiscutível, a presunção de vulnerabilidade dos sujeitos passivos ali enumerados é juris et de jure.


2 - A Questão da Tipicidade Material das Condutas Formalmente Amoldáveis ao Crime Previsto no Artigo 217-A, caput, do Código Penal – Princípio da ofensividade.

Da simples leitura das elementares expressas no tipo penal do artigo 217-A, caput, do Código Penal, nota-se que não há que se falar em necessidade de violência ou de grave ameaça para que haja tipicidade formal do crime de estupro de vulnerável. Como anotado anteriormente, após a reforma legislativa regida pelas disposições da lei n.º 12.015/2009, não mais se deve cogitar presunção de tais circunstâncias, pois absolutamente prescindíveis para que se caracterize, formalmente, o delito em questão. Para tanto, basta a prática de qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 (catorze) anos, ainda que haja consentimento da vítima.

Assim, o valor contido da norma é claramente no sentido de que a conduta de praticar atos libidinosos consentidos com menor de 14 anos atenta contra a dignidade sexual da vítima, tendo em vista a sua vulnerabilidade e seu discernimento reduzido. A presunção legal, portanto, é de vulnerabilidade sujeito passivo e não de emprego de violência ou grave ameaça.

Em parecer aprovado pelo Senado Federal no texto substitutivo do Projeto de Lei n.º 253/2004, o qual deu origem à lei de n.º 12.015/2011, fica clara a mens legis intrínseca na redação do artigo 217-A:

"Esse artigo, que tipifica o estupro de vulneráveis, substitui o atual regime de presunção de violência contra criança ou adolescente menor de 14 anos, previsto no art. 224 do Código Penal. Apesar de poder a CPMI advogar que é absoluta a presunção de violência de que trata o art. 224, não é esse o entendimento em muitos julgados. O projeto de reforma do Código Penal, então, destaca a vulnerabilidade de certas pessoas, não somente crianças e adolescentes com idade até 14 anos, mas também a pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não possuir discernimento para a prática do ato sexual, e aquela que não pode, por qualquer motivo, oferecer resistência; e com essas pessoas considera como crime ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso; sem entrar no mérito da violência e sua presunção. Trata-se de objetividade fática [01]".

Como se vê dos termos do parecer aprovado pela casa legislativa e como já havíamos defendido no artigo anterior, a intenção do legislador foi impossibilitar que a presunção de violência fosse afastada diante das circunstâncias do caso concreto, pois diversos tribunais refutavam a aplicação do artigo 224 do Código Penal para absolver réus processados por estupro ou atentado violento ao pudor presumidos, diante de alegação de que se tratava de presunção relativa [02]. O que se quis, foi evitar a discussão sobre a existência ou não de violência que vinha sendo travada caso a caso, substituindo-se o embate jurídico-criminal por "objetividade fática". Pretendia-se, portanto, amarrar as mãos dos julgadores, obrigando-os a proferir sentenças condenatórias nos mesmos casos em que se exaravam absolvições, a despeito da análise dos fatores sociais que circundam a aplicação do direito.

Bem leciona o Professor Cezar Roberto Bitencourt que, ao operar a reforma em questão e editar o artigo 217-A, caput, do Código Penal brasileiro, o legislador teve a pretensão de "ludibriar o intérprete e aplicador da lei" em "tentativa dissimulada de estancar a orientação jurisprudencial que se consagrou no Supremo Tribunal Federal sobre a relatividade da presunção de violência contida no dispositivo revogado (art. 224) [03]".

Aos olhos de parte da jurisprudência, a alteração textual conseguiu solucionar definitivamente a controvérsia. A título de exemplo, julgado do Superior Tribunal de Justiça:

"Saliente-se, porém, que a presunção de violência era matéria controversa, geradora de inúmeras teses doutrinárias e jurisprudenciais, já que se discutia a natureza relativa ou absoluta da mencionada presunção. Dessa forma, o legislador entendeu por expungir a questão polêmica, afastando a presunção de violência. A configuração do tipo estupro de vulnerável independe do consentimento da vítima, grave ameaça, violência de fato ou presumida, bastando que o agente mantenha conjunção carnal ou pratique outro ato libidinoso com menor de catorze anos, como se vê da redação do art. 217-A [04]".

Em nossa primeira leitura, acreditávamos, também, que o legislador conseguira atingir tais fins, de forma que não seria possível, a partir da vigência da nova lei, prolatar decreto absolutório em processos de estupro de vulnerável com base em certas circunstâncias, tais como o consentimento da vítima e sua vida sexual pregressa, pois argumentos nesse sentido seriam inócuos diante das "enxutas" elementares do artigo 217-A. Com base nesse raciocínio, seria suficiente a comprovação objetiva da prática de ato libidinoso com menor de catorze anos para que fosse a condenação medida de rigor.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Quanto à análise formal do crime, cabe ressaltar, mais uma vez, que o legislador cruzou os braços, recusando-se a acompanhar as mutações sociais. Como anotou o Ministro Celso Limongi do Superior Tribunal de Justiça, é "insustentável que uma adolescente, com acesso aos modernos meios de comunicação, seja incapaz de consentir relações sexuais" [05].

Não obstante esse juízo de valor, deve-se anotar que o legislador fracassou na referida investida. Tipicidade formal, em Estado Democrático de Direito, não é suficiente para que se fale em crime. Em verdade, a mera adequação típica da conduta ao preceito primário nada deve representar se em seu conteúdo não se verificar ofensividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora – no caso, a dignidade sexual. Com isso, tem-se que, dadas as circunstâncias, deve-se aferir se houve ou não efetivo prejuízo à vítima menor de catorze anos com a prática dos atos libidinosos. Ressalte-se, só haverá tipicidade material, se houver ofensa à dignidade sexual da vítima. Caso contrário, deve incidir o princípio da insignificância. Assim, o aplicador da lei mantém a mesma possibilidade que tinha antes da reforma de, nos casos sub judice, concluir pela atipicidade da ação formalmente típica. Afinal, hoje, resta plenamente superada a teoria naturalista ou causal.

Enquanto em pleno século XXI nossos legisladores buscam formalismo e "objetividade fática", em meados da década de 60 do século passado, Claus Roxin já lecionava que a lesão a bens jurídicos deve ser enxergada como pressuposto para que se possa falar em punição pelo direito penal e que o conceito material de crime precede o direito penal codificado [06].

Ora, se o conceito material precede o texto legal, a ausência de ofensa ao bem jurídico deve ser enxergada como causa supralegal de exclusão de tipicidade [07].

Nesse diapasão, nas hipóteses em que se evidenciar a maturidade sexual da vítima, o exercício consciente da sua liberdade sexual e até mesmo eventual estabilidade no relacionamento desta com o "autor", se tais fatores forem suficientes a evidenciar que não houve ofensa à dignidade sexual do menor, o fato será atípico. De bom grado, diante das circunstâncias, analisar a presença dos quatro fatores estabelecidos jurisprudencialmente para que se fale em conduta materialmente atípica, quais sejam: mínima ofensividade da conduta; ausência de periculosidade social da ação; ínfimo grau de reprovabilidade da conduta; e inexpressividade da lesão jurídica ocasionada [08].

Deve-se anotar, contudo, que o conceito material de crime não deve ser apreciado apenas na aplicação do direito. Antes de tudo, deve fornecer um norte político criminal ao legislador para que saiba quais condutas deve tipificar como crime e quais devem ser deixadas fora do alcance do Direito Penal [09].

É razoável que, em tempos modernos, fale-se em presunção de vulnerabilidade de pessoas maiores de doze anos e menor de catorze anos a ponto de tolher-lhes a possibilidade de consentir a prática de atos sexuais, punindo como criminosos seus parceiros sexuais? Parece-nos que o ponto de vista do legislador está em dissonância com o quadro social contemporâneo.

Crítica no mesmo sentido já tinha sido formulada em julgado do Supremo Tribunal Federal, sob relatoria do Ministro Marco Aurélio de Mello, em data anterior à reforma:

"Nos nossos dias não há crianças, mas moças com doze anos. Precocemente amadurecidas, a maioria delas já conta com discernimento bastante para reagir ante eventuais adversidades, ainda que não possuam escala de valores definidos a ponto de vislumbrarem toda a sorte de conseqüências que lhes podem advir. A presunção de violência prevista no artigo 224 cede à realidade. Até porque não há como deixar de reconhecer a modificação de costumes havida, de maneira assustadoramente vertiginosa, nas últimas décadas, mormente na atual quadra" [10].

Assim, o fenômeno da precocidade sexual existe no meio social e não poderia ter sido negado pelo legislador penal. Políticas educacionais devem ficar a cargo do Poder Executivo e não devem ser executadas por meio de imposição de pena privativa de liberdade, sob pena de ofensa à fragmentariedade do Direito Penal.

Por isso, parece-nos que o legislador se equivocou em dois momentos: 1º: ao tentar impossibilitar que o operador do direito refutasse a tipicidade penal diante das circunstâncias do caso concreto; 2º: ao ignorar a capacidade de discernimento do adolescente maior de doze anos, já reconhecida em outras searas do nosso ordenamento jurídico, conforme apontaremos no item "2" do presente artigo.

Tais enganos não devem prevalecer na aplicação prática do Direito, pois este não se pode isolar do ambiente em que vigora, tampouco ignorar as manifestações da vida social [11]. Se o Direito é mecanismo de controle social, deve estar de acordo com o meio em que se aplica.

Anote-se que esse norte interpretativo de cunho social foi estudado especificamente na seara do Direito Penal por Hans-Heinrich Jescheck [12], defensor da teoria social da ação. De acordo com o doutrinador alemão, não serão consideradas como crime as condutas que, formalmente típicas, estiverem adequadas ao meio. Para o autor, ausência de repercussão social do fato implica, também, atipicidade material por ausência de resultado relevante.

Assim, pelo que expusemos, condições pessoais da vítima e o contexto em que se der a prática de atos libidinosos com menor de catorze anos devem ser analisados caso a caso, para que, nas hipóteses em que não houver reprovação social do fato ou ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma, entenda-se ser materialmente atípica a conduta.


3 - Tipicidade Conglobante e Estatuto da Criança e do Adolescente: o consentimento do maior de 12 anos e menor de 14 é irrelevante à tipicidade do crime de estupro de vulnerável?

Os ilustres doutrinadores Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, que trouxeram a nós a teoria da tipicidade conglobante, lecionam que o juízo de tipicidade não se deve dar apenas com base na mera análise formal da conduta e de sua adequação ao tipo legal, mas, também, através da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, mas conglobada na ordem normativa. Em síntese: qual a extensão do "não fazer" contido na norma penal incriminadora diante de uma visão sistemática de todo o conjunto de normas vigente?

Com isso, tem-se no juízo de tipicidade a materialização do caráter unitário do ordenamento jurídico e a consagração do princípio hermenêutico da harmonização. Se o ordenamento jurídico é uno e indivisível [13], o Direito Penal não pode reprovar condutas incentivadas por outras normas.

Em suas lições, os autores firmam duas recomendações na manutenção da ordem jurídica com base na tipicidade conglobante:

"Esta ordem mínima que as normas devem guardar entre si, impede que uma norma proíba o que a outra ordena, como também impede que uma norma proíba o que a outra fomenta" [14].

O primeiro mandamento, na prática, é bem fácil de ser visualizado. Diante de um dever legal, não haverá fato típico [15]. Por outro lado, o segundo demanda análise mais cautelosa. Até onde o "fomento" de outros ramos do direito alcança a tipicidade no Direito Penal?

A norma expressa no artigo 101 combinado com o artigo 2º, ambos do Estatuto da Criança e do Adolescente, reconhece certa capacidade de discernimento, ainda que reduzida, em pessoas maiores de 12 (doze) anos e menores de 18 (dezoito) anos, possibilitando que lhes sejam aplicadas as denominadas medidas socioeducativas.

Ressalte-se que tais medidas destinadas a adolescentes infratores, apesar de carregarem o discurso de que não possuem caráter punitivo, implicam, na prática, verdadeira punição, principalmente quando se trata de "internação em estabelecimento educacional". Ao dizer que o menor de dezoito anos não pode sofrer sanção penal, o Estado adota, corretamente, postura protetiva, porém enaltecendo de forma demagógica a impossibilidade de punir adolescentes. O tratamento jurídico conferido a menores infratores constitui, por isso, espécie de controle social punitivo institucionalizado, com discurso, porém, não punitivo [16].

Não obstante a realidade prática, a imposição de medidas socioeducativas encontra respaldo na doutrina do direito infracional, a qual considera que estas possuem finalidade puramente educativo-pedagógica [17].

Assim, o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao prever a possibilidade de aplicação das referidas medidas a adolescentes, com finalidade educativo-pedagógica, reconhece nessas pessoas a capacidade de reflexão prévia sobre suas condutas e de assimilação das respectivas conseqüências, pois, se assim não fosse, as medidas socioeducativas possuiriam caráter meramente retributivo, em detrimento do sistema de proteção integral à criança e ao adolescente.

Parte da jurisprudência entende que essa disposição normativa pode afetar a tipicidade das condutas enquadráveis ao preceito primário do artigo 217-A do Código Penal, por haver reconhecimento legal da capacidade de discernimento – ainda que em grau reduzido, do adolescente. Compartilhamos desse entendimento.

É evidente que as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente aqui aduzidas não representam incentivo para que menores pratiquem atos sexuais. Não é nesse sentido o "fomento" da norma. O que a lei n.º 8.069/90 reconhece é a faculdade de compreensão do adolescente, sua capacidade intelectual e, indubitavelmente, estimula o desenvolvimento desses atributos.

Faz sentido que o Direito Penal, ao contrário, negue, mormente nos dias atuais, a capacidade da pessoa maior de doze anos de consentir a prática de atos sexuais? Para sofrer internação, o adolescente é considerado capaz pela lei, mas para consentir atos sexuais é visto como vulnerável por não ter discernimento para tanto. Trata-se de clara contradição.

O cerceamento da liberdade do menor infrator, materializado pela sua internação em estabelecimento "educacional" em meio a diversos outros infratores, demanda, para que não haja males irreversíveis ao seu desenvolvimento, maturidade intelectual superior à necessária para a prática de um ato sexual.

Ressalte-se que o "fomento" do Estatuto da Criança e do Adolescente a que nos referimos não diz respeito à própria conduta proibida pelo artigo 217-A do Código Penal, mas ao desenvolvimento de um atributo do sujeito passivo. Ainda assim, seria suficiente para afetar a tipicidade da referida norma penal incriminadora?

Eugênio Raúl Zaffaroni (1981, p. 233), em sua principal obra, trabalha as bases da teoria da tipicidade conglobante lecionando que:

"A ordem jurídica se estabelece mediante um funcionamento harmônico de normas proibitivas e preceitos permissivos, todos expressos em lei. Para que a aspiração ética do direito se realize, é necessário que essas normas e preceitos se operem de modo não contraditório, pois contradições representam arbitrariedade e não se prestam a assinalar padrões de conduta [...] A norma proibitiva do tipo não é uma norma isolada, mas sim que se comporta como um neurônio que integra um farto tecido normativo, ou seja, que está submersa em um universo normativo jurídico, cujos componentes estão postos em ordem" [18].

Assim, a teoria em análise tem como base a manutenção da ordem jurídica mediante a expurgação das contradições legais na aplicação prática do Direito Penal. Por isso, o consentimento da vítima maior de doze anos não pode ser desconsiderado, tendo em vista o que consta do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Nesse sentido, de grande valia transcrever parcialmente lapidar voto do Ministro Celso Limongi em julgado do Superior Tribunal de Justiça:

"Para a boa interpretação da lei, é necessário levar-se em consideração todo o arcabouço normativo, todo o ordenamento jurídico do País. A interpretação da lei não prescinde do conhecimento de todos os ramos do Direito. Uma visão abrangente desse arcabouço facilita - e muito - o entendimento e a interpretação da lei.

[...]. É necessário levar em conta o Estatuto da Criança e do Adolescente, porque, pelo artigo 2° desse Estatuto, o menor é considerado adolescente dos 12 aos 18 anos de idade, podendo até sofrer medidas socioeducativas. E, como lembra Carlos Antônio R. Ribeiro:

‘se o menor a partir de 12 anos pode sofrer medidas socioeducativas, por ser considerado pelo legislador, capaz de discernir a ilicitude de um ato infracional, tido como delituoso, não se concebe, nos dias atuais, quando os meios de comunicação em massa adentram em todos os locais, em especial nos lares de quem quer que seja, com matérias alusivas ao sexo, que o menor de 12 a 14 anos não tenha capacidade de consentir validamente frente a um ato sexual (cf. "Violência presumida nos crimes contra a liberdade sexual", in Revista da Escola Superior da Magistratura de

Pernambuco, vol. 5, número 12, pág. 216)’.

[...].

O Código, ao presumir a violência por não dispor a vítima de vontade válida, está equiparando essa adolescente a uma pessoa portadora de alienação mental, o que, convenhamos, não é razoável. Isto, em pleno século XXI! [19]".

Ademais, Eugênio Raúl Zaffaroni acrescenta à análise da tipicidade conglobante que também serão atípicas as condutas que, não obstante preencherem todas as elementares do tipo, estejam fora do poder repressivo do Estado e no âmbito da privacidade do indivíduo [20].

Por outro lado, Claus Roxin, leciona que meras imoralidades não devem ser abrangidas pelo alcance do Direito Penal. O autor leciona que a questão é mais bem visualizada no âmbito do Direito Penal sexual que, em tempos passados, punia condutas como homossexualismo entre adultos e difusão da pornografia. No Brasil, podemos nos lembrar da criminalização do adultério, que se sustentou até o ano de 2004. Diz-se que, apesar de tais condutas certamente serem consideradas como imorais, não carregam real causalidade lesiva e, por isso, só podem ser entendidas como infração contra conceitos gerais – como a própria moral, mas não como lesões a bens jurídicos [21].

Por isso, estão fora do alcance repressivo do Estado as condutas meramente imorais, fato que, com base na teoria de Eugênio Raúl Zaffaroni, implica atipicidade.

O contraste que existe nos relacionamentos entre maiores de idade e adolescentes, aos olhos de muitos, pode parecer ofensa aos costumes de modo geral, o que não se nega, mas não se pode permitir que as escolhas individuais que repercutam tão somente na vida privada sejam causa de privação de liberdade, pelo simples fato de causarem desconforto a terceiros no que diz respeito à aceitação.

Trata-se de mais uma razão para se repudiar a mera análise formal das elementares do tipo penal expresso no artigo 217-A do Código Penal. Se o consentimento do maior de doze anos traz para o âmbito de sua privacidade seus relacionamentos de caráter sexual, por que se justificaria a intervenção do Direito Penal?

Sobre o autor
Olavo Evangelista Pezzotti

Analista Processual e Assessor Jurídico Criminal do Ministério Público Federal, pós-graduando em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público de SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEZZOTTI, Olavo Evangelista. O crime de estupro de vulnerável à luz do princípio da ofensividade e da teoria da tipicidade conglobante. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2952, 1 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19667. Acesso em: 5 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!