O artigo 89, II, do Código de Processo Civil trata da competência exclusiva e, portanto, absoluta do juiz brasileiro para inventariar e partilhar bens situados no Brasil. Ele tem por finalidade evitar a intromissão de tribunais do exterior nas ações de inventário e partilha de bens situados no Brasil, sem a necessidade de verificar a nacionalidade e o domicílio do falecido. Assim, os bens de estrangeiro situados no Brasil serão sempre inventariados neste país.
O conceito de bens é amplo no dispositivo de lei do código, abrangendo bens móveis, imóveis e semoventes. Pontes de Miranda traz algumas questões em torno deste artigo de lei, como por exemplo, se são considerados bens situados no Brasil as coisas móveis que no Brasil se acham, como carros, barcos, cofres, jóias, dinheiro etc... Sua resposta é positiva, bem como, também considera que as ações de empresas brasileiras e estrangeiras com filial no Brasil devem ser consideradas como bens situados no Brasil e, portanto, inventariadas e partilhadas respeitando as leis brasileiras.
O legislador limitou a jurisdição brasileira ao inventário e partilha de bens situados no Brasil, sem fazer nenhuma menção à possibilidade da justiça brasileira inventariar e partilhar bens existentes em outros países.
É muito importante que o legislador tenha se preocupado em resguardar ao direito brasileiro a obrigação de inventariar bens situados no Brasil mas surge a dúvida se, a contrario sensu, o Brasil seria competente para inventariar bens em outros países?
Os doutrinadores entendem que, a "contrario sensu", não pode ser a justiça brasileira competente para inventariar e partilhar bens situados em outros países, da mesma forma que aqueles não podem fazer o mesmo com bens situados no Brasil. Deverá, para eles, ser respeitado o princípio da pluralidade de juízos sucessórios, que invalida o dogma da universalidade da herança, onde os bens situados no exterior deverão ser inventariados nos países em que se encontram.
Tal argumento pode ser fortalecido pelo julgamento do acórdão do Recurso Extraordinário nº 99.230 - RS, relatado pelo Ministro Rafael Mayer, assim ementado:
" Partilha de bens. Bens situados no estrangeiro. Pluralidade dos juízos sucessórios. Artigo 189, II do CPC.
Partilhados os bens deixados em herança no estrangeiro, segundo a lei sucessória da situação, descabe à Justiça Brasileira computá-los na quota hereditária a ser partilhada, no País, em detrimento do princípio da pluralidade dos juízos sucessórios, consagrada pelo art. 89, II do CPC. "
Ainda neste acórdão, segundo o relator, em seu voto, colheu na jurisprudência a seguinte afirmação:
" ... se pretendemos buscar, no Estatuto Processual em vigor, disposição que solucione o problema, poderemos encontrá-la no art. 89, II, tomado, contudo, a contrario sensu. Com efeito, se por força do que reza o texto, "compete a autoridade brasileira proceder inventário e partilha dos bens situados no Brasil" válido será induzir, por oposição, que "não compete à autoridade judiciária brasileira proceder a inventário e partilha de bens não situados no Brasil."
Portanto, defende o artigo 89, II do CPC o princípio da pluralidade dos juízos sucessórios, no qual, havendo bens imóveis em diferentes países, deverão ser inventariados estes bens em cada um deles, certo de que a Justiça estrangeira não poderá intervir nos bens que estiverem sob a jurisdição de outra nação.
Anteriormente ao Código de Processo Civil vigente, este não era o entendimento do nosso Tribunal. Os inventários e partilhas deveriam ser processados pelo juízo do último domicílio do falecido, mesmo que houvessem bens no Brasil.
Podemos citar, como exemplo, o acórdão julgado pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal o Recurso Extraordinário nº 66.608, em 2 de dezembro de 1969, no qual era relator o Ministro Djaci Falcão, que transcrevemos:
"Inventário. Foro competente. Se o de cujus era domiciliado no estrangeiro, tendo bens no Brasil, o Juízo competente para o processo de inventário e partilha é o do seu último domicílio."
Não concordamos com esta posição do novo Código de Processo Civil, pois, a nosso ver, por economia processual, se a lei estrangeira possibilitar que outro país inventarie bens localizados em seu território, ou mesmo, inexistindo previsão legal que impossibilite tal fato, não vemos necessidade de se abrir mais de um inventário. Por exemplo, se, em Portugal não houvesse uma lei que obrigasse a inventariar os bens localizados em seu território através da Justiça de seu país, não vemos problema em se inventariar e partilhar um bem situado naquele país junto com outros bens situados no Brasil, através de processo de inventário aberto neste país.
O legislador, na verdade, não se preocupou com a nacionalidade ou com o domicílio do falecido, mas sim, apenas com a situação do imóvel que virá a ser inventariado, como bem conclui Celso Agrícola Barbi, em seus "Comentários ao Código de Processo Civil":
"O interesse do legislador se limita aos bens aqui situados, de modo que se houver outros situados fora do país, o inventário relativo a esses escapa à jurisdição brasileira."
Da mesma forma se manifesta Hélio Tornaghi:
" O foro da situação da coisa pode considerar-se universalmente adotado. É norma consuetudinária, para o Direito Internacional Público e norma interna aceita nas legislações, para o Direito Internacional Privado. (...) A adoção do forum rei sitae decorre de razão de ordem prática, a da quase inutilidade do processo movido fora do país em que o imóvel esteja situado, pois a execução da sentença teria sempre de operar-se nele, após a necessária homologação. (...) Não seria possível a um Estado admitir a competência de outro para decidir das questões relativas a imóveis sem abrir mão da própria soberania. (...) O situs rei dentro do território nacional ou, melhor ainda, a circunstância de o imóvel ser território do Brasil leva à adoção da regra."
A doutrina e jurisprudência são pacíficas no sentido de que este artigo de lei veda, também, a homologação de sentença estrangeira que inventaria bens situados no Brasil.
Para reforçar tal argumento, podemos citar o julgamento que indeferiu, por unanimidade, a homologação da sentença estrangeira nº 2.293 – E.E.U.U., em 18 de agosto de 1976, em que foi relator o Ministro Xavier de Albuquerque e, presidente, o Ministro Djaci Falcão:
" Sentença estrangeira. Competência absoluta da justiça brasileira para proceder a inventário e partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja estrangeiro, ou tenha residido fora do território nacional. Artigo 89, II do Código de Processo Civil.
Pedido de homologação indeferido."
No mesmo sentido, o parecer do Procurador da República, Sr. Antonio de Pádua Ribeiro, na Homologação da Sentença Estrangeira nº 2.151 - Paraguai, em 07 de abril de 1976, na qual foi relator o Ministro Xavier de Albuquerque:
" Trata-se de pedido de homologação de sentença estrangeira, que declarou Juliana Gonzáles Cáceres, viúva legítima de Estanilao Acosta Elli, com direito aos bens deixados, sem prejuízos de terceiros.
Conforme se verifica na inicial, o que se objetiva é executar a sentença no Brasil, onde o falecido deixou bens.
Ocorre, porém, que constitui competência exclusiva da autoridade judiciária brasileira "proceder a inventário e partilha de bens, situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional.
Na mesma linha segue o acórdão que indefiriu a Homologação da Sentença Estrangeira nº 2.289 – Estados Unidos, em 18 de setembro de1975, na qual foi relator o Ministro Moreira Alves :
"Sentença estrangeira. O artigo 89 do novo Código de Processo Civil estabeleceu competência exclusiva – e, portanto, absoluta – do juiz brasileiro para proceder inventário e partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja estrangeiro, ou tenha residido fora do território nacional. Por isso, não pode ser homologada sentença proferida por juiz estrangeiro em inventário e partilha de bens situados no Brasil, qualquer que seja a nacionalidade, o domicílio e a residência do autor da herança.
Defere-se, ou não, a homologação em face da legislação nacional – que, em se tratando de competência absoluta, é de ordem pública – vigente ao tempo em que se decide a atribuição de eficácia à sentença estrangeira, no território brasileiro.
Homologação indeferida"
Para Celso Agrícola Barbi, a parte final do artigo 89, II não é muito clara, referindo-se a competência brasileira ainda que o falecido "tenha residido fora do território nacional". Para o autor insurge a dúvida de que o falecido, obrigatoriamente, também deveria ter residido, a qualquer tempo, no Brasil, o que não é correto afirmar.
Enquanto no Direito Brasileiro, a sucessão se rege por Lei única, seja qual for a natureza e a situação dos bens, o princípio da universalidade sucessória é contraposto pela força da norma da lex rei sitae no plano internacional.
Assim, enquanto a sucessão interna segue o princípio da universalidade, no plano internacional, a maioria dos países adota a fórmula de tantas sucessões quantas forem necessárias, em razão da localização dos bens imóveis.
Por este método, portanto, cada país aplicará suas normas aos bens imóveis ali situados, podendo acontecer de haver a aplicação de diversas leis numa mesma sucessão.
Ensina Georgette Nacarato Nazo, em parecer elaborado para caso em que norte-americano, que possui filhos americanos, residente e domiciliado no Brasil, fez testamento em seu país de nacionalidade e no país de domicílio (Revista dos Tribunais, número 493 de novembro de 1976, páginas 47/52):
"Desta maneira, a unidade e universalidade da sucessão cedeu lugar a pluralidade sucessória, que redunda em pluralidade processual no que tange a inventário e partilha, pois a sucessão estrangeira poderá ser aberta no lugar em que se deu o óbito do autor da herança, mas os bens imóveis situados no Brasil receberão o tratamento conforme disposição a norma de Direito Internacional Privado brasileiro (artigo 12, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil) e a regra processual interna expressa no artigo 1.603 do mesmo diploma legal."
Nossa doutrina e jurisprudência brasileira adotam o princípio da universalidade sucessória, enquanto vários outros países adotam o que pode ser chamado de sistema de fragmentação, aplicando diferentes leis na mesma sucessão, respeitando a situação do imóvel, independente da nacionalidade ou domicílio do falecido.
NOTAS
1. Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, Tomo II, Editora Forense, 1973, p. 159
2. Celso Agrícola Barbi, Comentários ao Código de Processo Civil, 9ª ed., Editora Forense, 1994, v. 1.
3. Hélio Tornaghi, Comentários ao Código de Processo Civil, 1974, v. I
4. Celso Agrícola Barbi, Comentários ao Código de Processso Civil, TomoII, Editora Forense, 1975, v. I, p. 400, n. 490