Ação penal de iniciativa pública é aquela em que o titular da ação penal é o Ministério Público, em caráter privativo, a teor do art. 129, inciso I, da Constituição Federal/88. Incondicionada é aquela modalidade de ação penal de iniciativa pública que independe da vontade da vítima para que o fato tido por delituoso seja processado e julgado. Assim, a par do interesse da vítima, o acusado será processado penalmente e ao final julgado. Não se discute aqui, então, o desejo da vítima na punição ou não do agente do crime. Logo, ação penal de iniciativa pública incondicionada é a ação promovida pelo Ministério Público sem que se indague ímpeto da vítima em ver processado e julgado o fato que violou seu bem jurídico tutelado pelo direito penal (vida, patrimônio, saúde etc).
Ao abordar os princípios da ação penal pública incondicionada, assevera o Eugênio Pacelli [01] que o princípio da obrigatoriedade nesse tipo de ação resulta do dever estatal da persecução penal e do consequente dever, como regra, de o Ministério Público promover a ação penal se estiver diante de fato que considere ilícito penal. Adverte ainda que a obrigatoriedade da ação penal diz respeito somente à ausência de discricionariedade quanto à conveniência e oportunidade da propositura da ação penal se constatada a presença de ação delituosa e satisfeitas as condições da ação.
Na mesma obra o autor levanta a questão sobre a obrigatoriedade de o Ministério Público oferecer denúncia quando evidente a presença de excludente de ilicitude. Entende que não está o Parquet obrigado a oferecer denúncia se as provas produzidas em sede de inquérito policial, ou mesmo nas peças de informação, sem a participação da defesa, portanto, são robustas no sentido da excludente de ilicitude. [02]
Contudo, esclarece que tal linha de pensamento não seria aceita pelos que excluem a culpabilidade como elemento do crime, ao lado da tipicidade e da ilicitude, devido ao fato de não considerarem a culpabilidade como elemento do crime. Assim, para os adeptos dessa corrente, a denúncia seria obrigatória. [03]
Alerta, todavia, que a questão está longe de ser pacificada e apresenta as ponderações feitas, "todas no sentido da exigência de oferecimento da denúncia" [04]:
a)a coleta de material probatório na fase de investigação, por mais completa que seja, não se realiza perante o juiz, daí por que o seu exame por ocasião do requerimento de arquivamento não oferece a mesma amplitude da fase judicial de absolvição sumária;
b)o pedido de arquivamento poderia atingir também o interesse do ofendido ou de seus sucessores, que, no curso da ação penal, poderiam contribuir decisivamente na produção de prova da inexistência das excludentes;
c)poder-se-ia, ainda, partindo das primeiras observações, argumentar que somente a prova jurisdicionalizada – ou seja, com a participação efetiva do Juiz na formação da verdade, no exercício, também, de seu livre convencimento – poderia afastar a competência do Tribunal do Júri;
d)a decisão judicial de arquivamento de inquérito não tem a mesma eficácia preclusiva daquela de absolvição sumária, permitindo a nova iniciativa persecutória se motivada na existência de prova nova.
Apesar dos argumentos acima Eugênio Pacelli entende que o Ministério Público não é obrigado a oferecer denúncia em casos tais. Para tanto ventila a inutilidade do inquérito policial, das peças de informação e do processo penal no caso, além do constrangimento a que estará submetido o acusado, bem como o perigo de se levar a decisão para os jurados em razão do fato da decisium deles não ser motivada. [05]
Outra questão relevante e que toca o princípio da obrigatoriedade da ação penal incondicionada é a disposta no artigo 76 da Lei n. 9.099/1995, a denominada transação penal. A doutrina convencionou chamar esse fato de discricionariedade regrada.
Ao versar sobre o tema, Eugênio Pacelli afirma que não há se falar em discricionariedade regrada, mas sim em mitigação do princípio da obrigatoriedade em "relação à exigência de propositura imediata da ação". Deve o Ministério Público primeiro oferecer a transação penal nos casos em que ela caiba, para somente após, e se frustrada esta, propor a ação penal. Igualmente, entende que a expressão regrada acrescida do termo discricionariedade desnatura este conceito, conforme sua definição em direito administrativo. [06]
Mougenot Bonfim também entende que houve mitigação do princípio da obrigatoriedade pelo mencionado dispositivo legal da Lei dos Juizados Especiais, mas trata da previsão, por este dispositivo, do princípio da discricionariedade regrada ou disponibilidade temperada, no que diverge de Pacelli. [07]
Nucci ressalva que, mesmo nos casos em que há transação penal, há exercício do direito de ação, pois o Estado satisfaz o seu direito de punir apesar de não o exercer por meio da ação. Isso porque a punição se dará em outros moldes. [08]
Como se percebe, a questão não é pacífica e o consenso está longe de ser alcançado. Entretanto, de suma relevância trazer a lume o entendimento de Rogerio Schietti, eminente membro do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios - ex-Procurador-Geral de Justiça desta instituição, pois o pensamento por ele desenvolvido é singular.
Entende Schietti [09] que:
O uso de tal expressão [discricionariedade regrada] pode ser equívoco na medida em que transmite a idéia de que o Ministério Público pode deixar de postular o exercício do ius puniendi do Estado, na forma e nas hipóteses reguladas em lei, mesmo se presentes as condições para a ação penal.
Mais adiante o autor aduz que não há discricionariedade regulada (ou regrada) no direito processual penal, ainda que sob a égide da Lei nº 9.099/1995, pois [10]:
Não permite a lei brasileira que o Ministério Público arquive o inquérito policial por mera conveniência institucional, o que seria a consagração do princípio da oportunidade pura, tal qual ocorre nos EUA. Também não permite a nossa lei que o membro do Parquet arquive o inquérito policial, presentes certas circunstâncias autorizadoras previstas em lei, tais como reparação do dano, culpa diminuta e condições subjetivas favoráveis do agente (conforme prevê o art. 75 do CPP português), o que seria adotar, aí sim, o princípio da oportunidade regrada (grifos originais).
Enquanto isso, Antonio Fernandes Scarance aduz a dicotomia princípio da obrigatoriedade oportunidade da ação penal e entende que deve prevalecer o princípio da obrigatoriedade. Todavia, ressalta que, diante do aumento populacional e do consequente incremento da criminalidade, é impossível o processo e julgamento de todos os crimes, razão pela qual "há de se admitir no plano geral certa discricionariedade de atuação do órgão acusatório, principalmente em infrações mais leves ou em determinadas situações concretas onde não há maior interesse em punir". [11]
O mesmo autor trata de outro tema de certa relevância em processo penal e igualmente sem entendimento pacífico na doutrina pátria. Ressalta que a ação popular foi prevista pela Medida Provisória n. 153, de 15/3/1990, para a punição de crimes de abuso de poder econômico caso o Ministério Público não oferecesse a denúncia no prazo legal. Todavia ação penal popular não se manteve no ordenamento jurídico pátrio [12]. Já Mougenot Bonfim [13] defende a sua existência por vislumbrar, pelo critério da legitimidade ativa, que estaria essa modalidade de ação em um terceiro gênero.
Em tempo, vale destacar que, no que toca à ação penal nos crimes complexos, a doutrina entende que o artigo 101 do Código Penal é inócuo e de difícil interpretação, pois a definição cabe ao que dispõe a lei, ou seja, quando a lei não confere a iniciativa ao ofendido, por exclusão, a ação é pública, segundo Mirabete [14], pensamento com o qual concordamos.
Questão que causa debates os mais diversos e está longe de ser pacificada é a que se refere à ação penal dos crimes de responsabilidade. Eugênio Pacelli diz que os crimes de responsabilidade não são crimes propriamente ditos, portanto, não têm relevância penal. Os seus julgamentos são políticos e feitos por órgãos políticos. Por essa razão entende que não há que se falar em titularidade privativa do Ministério Público para ajuizar ação penal para a investigação desses crimes, que na realidade, rigorosamente, não são processados por ação penal, "ainda que a CF/88 faça referência a crimes de responsabilidade". [15]
Os crimes de responsabilidade, a nosso ver, não são crimes propriamente ditos, o que faz com que a titularidade da ação penal não seja privativa do Ministério Público, tudo consoante lição de Eugênio Pacelli anteriormente ventilada.
Além do princípio da obrigatoriedade, há, segundo a doutrina de Marcellus Polastri os princípios da: i) oficialidade, que se refere ao fato de que "a repressão aos crimes cabe ao Estado, e este fará a persecução criminal através de órgãos oficiais"; ii) indivisibilidade, que é princípio geral do processo penal e que só foi mencionado para o caso da queixa, para deixar claro que o querelante não tem poder de escolha contra quem e qual crime ele irá ajuizar a ação penal privada, ou seja, ou ele ajuíza contra todos os ofensores e por todos os crimes ou contra nenhum; e iii) intranscendência, que consistente no fato de somente poder ser ajuizada a ação penal em face da pessoa do criminoso [16]. No mesmo sentido, Mougenot Bonfim. [17]
A obrigatoriedade, como dito alhures, se refere à ausência de conveniência e oportunidade do Parquet de propor a ação penal quando preenchidos todos os requisitos legais, mormente os do artigo 41 do Código de Processo Penal. Entretanto, o Ministério Público não é obrigado a oferecer denúncia quando estiver presente de modo claro causa excludente da ilicitude, pois há, nesse caso, nítida inutilidade de eventual processo penal, bem como imposição de constrangimento ilegal à pessoa do denunciado.
É bem verdade que a ação penal de iniciativa pública incondicionada deve ser proposta por um órgão oficial do Estado, que, nesse caso, é o Ministério Público, pois cabe ao Estado o jus puniendi e o jus persequendi. Tal é o princípio da oficialidade.
Do mesmo modo, em obediência ao princípio da intranscendência, a ação penal de iniciativa pública incondicionada deve ser intentada em face da pessoa a quem se imputa o fato delituoso, e não sobre seus parentes ou quaisquer outros que relação alguma guarde com o fato.
Ademais disso a ação penal de iniciativa pública incondicionada é indivisível, pois deve o Ministério Público propô-la em face de todos os envolvidos (réu, corréu, partícipe) incursos em todos os fatos típicos presentes. Não tem o Órgão Ministeriala discricionariedade de escolher quem e quais fatos denunciar.
Por fim, além dos princípios já tratados, a ação penal de iniciativa pública incondicionada é regida também pelo princípio da indisponibilidade, que é princípio lógico decorrente da obrigatoriedade, afinal, se o Ministério Público é obrigado a oferecer denúncia nos casos de ação penal pública incondicionada, é igualmente obrigado a persistir na ação penal intentada, não podendo dela dispor ao seu alvedrio, conforme a sua discricionariedade.
Referência
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
CRUZ, Rogerio Schietti Machado. Processo penal: pensado e aplicado. Brasília: Brasília Jurídica, 2005
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
LIMA, Marcellus Polastri. Curso de processo penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, v. 1.
MIRABETE, Julio Fabrinni. Código de processo penal interpretado. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 4. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
Notas
- OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 110/112.
- Idem.
- Ibidem.
- Ibidem.
- Ibidem.
- OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 114/116.
- BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 156/158. 156/158.
- NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 4. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 121/122.
- CRUZ, Rogerio Schietti Machado. Processo penal: pensado e aplicado. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p. 157/158.
- Idem.
- FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 196/201.
- Idem, p. 186.
- BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 153.
- MIRABETE, Julio Fabrinni. Código de processo penal interpretado. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 158.
- OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 108/110.
- LIMA, Marcellus Polastri. Curso de processo penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, v. 1, p. 236.
- BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 156/158.