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Mecanismos de solução de controvérsias no Mercosul e na União Européia.

Uma abordagem comparativa

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Agenda 15/09/2011 às 09:03

Busca-se estudar de forma comparativa os mecanismos mercosulinos e europeus, como forma de se avaliar a sua eficácia e a eventual necessidade de modificações para otimização do bloco regional.

RESUMO

Elemento relevante no estudo do Direito Internacional Público tem sido a formação de blocos regionais. Na medida em que os processos integracionistas avançam, problemas surgem entre Estados membros, sejam eles políticos ou comerciais. Nesse sentido, mecanismos de solução de controvérsias são criados para eliminar ou minimizar as disputas existentes, as quais podem, eventualmente, repercutir negativamente dentro do bloco. O presente trabalho realiza uma análise sobre os mecanismos de solução de controvérsias no âmbito do Mercosul. Busca-se estudar de forma comparativa os mecanismos mercosulinos e europeus, como forma de se avaliar a sua eficácia e a eventual necessidade de modificações para otimização do bloco regional.

Palavras-chave: Direito Internacional Público, Mecanismos de Solução de Controvérsias, Mercosul, União Européia, globalização.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. INTEGRAÇÃO, REGIONALISMO E O DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO. 1.1 Integração e regionalismo. 1.2 Direito Internacional Público – Direito Comunitário: distinções entre as ordens jurídicas européia e mercosulina. 1.2.1. Da horizontalidade e da verticalidade. 1.2.2. Direito comunitário. 1.2.2.1. Da hierarquia das normas do Direito Comunitário. 1.2.2.2. Os Princípios do Direito Comunitário. 1.3. Direito da Integração no Mercosul. 2 . DO SISTEMA JURISDICIONAL DA UNIÃO EUROPÉIA. 2.1. Tribunal de Justiça da União Européia (TJUE). 2.1.1. Tribunal de Justiça. 2.1.2. Tribunal Geral da EU. 2.1.3. Tribunal da Função Pública. 3. SISTEMA DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS NO MERCOSUL. 3.1. Anexo III do Tratado de Assunção. 3.2. Protocolo de Brasília (PB). 3.3. Protocolo de Ouro Preto (POP). 3.4. Protocolo de Olivos (PO). 3.4.1. Tribunal Permanente de Revisão (TPR). 3.5. Fases do atual Mecanismo de Solução de Controvérsias do Mercosul. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS . REFERÊNCIAS


INTRODUÇÃO

Rápidas mudanças têm ocorrido nas últimas décadas na estrutura internacional e, mais especificamente, no desenvolvimento das organizações internacionais. Permanecem, entretanto, em grande medida inalterados os valores e interesses envolvidos, quais sejam a garantia de direitos fundamentais, a liberdade, a dignidade e o bem-estar da pessoa humana. Em verdade, colocando-se de maneira extremamente simplista, pode-se afirmar que a base fundamental de toda organização internacional é aprimorar as relações entre países e demais sujeitos de direitos, inclusive a pessoa humana, seja no âmbito econômico, político ou dos direitos humanos. Em termos jurídicos, Accioly (1999, p. 224) classifica uma organização internacional como "uma associação de Estados (ou de outras entidades possuindo personalidade internacional), estabelecida por meio de um tratado, possuindo uma constituição e órgãos comuns e tendo uma personalidade legal distinta da dos Estados-membros". Segundo Seitenfus (2000), as organizações internacionais (que ele denomina de ‘organizações inter-governamentais) são associações voluntárias de Estados que podem ser definidas como uma sociedade entre Estados, constituída através de um Tratado, com a finalidade de buscar interesses comuns através de uma permanente cooperação entre seus membros. Tal processo transformativo se revela incessante no âmbito da sociedade internacional, na medida em que refletem as novas circunstâncias e tecnologias que emergem dos próprios Estados nacionais.

Segundo Solingen (1998) a idéia de universalidade é vista como a fonte para a solidificação e aplicação de valores acima mencionados, os quais de certa maneira poderiam se contrapor ou, ao menos, minimizar os aspectos maléficos da globalização. No que se refere à universalidade, há abordagens diversas sobre sua conceituação. Nesse sentido, tem também sido associado à universalidade o conceito de regionalismo. De acordo com Walter (1999) os dois conceitos supracitados - quais sejam universalidade e regionalismo -, são complementares entre si na medida em que ambos são orientados para a melhoria das organizações internacionais e, em última instância, de toda a sociedade.

Outra mudança significativa ocorrida nas últimas décadas se refere à emergência e importância crescente da atuação de atores não-estatais, cujo impacto se percebe nas organizações internacionais e nos Estados. Embora em boa parte do tempo a política interna prepondera, o papel desempenhado por atores não-estatais, em certos casos, consegue ir além do próprio Estado. Isso se revela na medida em que se observa a influência e o nível de ‘authoritative power’, bem como a autonomia de que gozam, seja nas relações intra ou inter-regionais. De acordo com o Ministro Gilmar Mendes, neste novo cenário "o Estado deixa de ser o Estado-império e passa a ser Estado-região. Ademais, o Estado deixa de ser o detentor da última decisão" (2005, p. 56).

Walter (1999) explica que, sob a égide do regionalismo, os países membros são instados a aprimorar as organizações que gerenciam a cooperação regional, os tratados e os acordos nos quais são partes diretamente envolvidas. Ele ressalta que a existência de inter e intra-organizações seria vital, na medida em que nelas repousam o cumprimento de seus objetivos fundamentais, o desenvolvimento e, em última análise, o sucesso da integração regional (WALTER, 1999).

É notório que o processo evolutivo dos blocos regionais impactou diretamente o direito internacional. Nakagawa (2006) afirma que o direito internacional e o regionalismo são complementares, pois ambos buscam aprimorar a qualidade e estrutura da comunidade internacional, alcançando as pessoas sob sua égide.

Nesse sentido, a criação de Cortes de Justiça e a previsão legal da existência de tribunais arbitrais seriam respostas a esta nova realidade integrativa. No âmbito dos órgãos judiciais se manifestariam o direito internacional e os princípios fundamentais contidos nos tratados. Tais órgãos, em muitos casos, deteriam o poder de avaliar e julgar reclamações e as queixas apresentadas por representantes de governos, organizações (NAKAGAWA, 2006) e de particulares.

No entanto, verificam-se numerosas críticas direcionadas aos mecanismos de solução de controvérsias (MSCs), seja no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), no NAFTA ou no Mercosul. Critica-se, por exemplo, a utilização de juízes supostamente inadequados para determinados casos, julgamentos que estabeleceram sanções inviáveis e incompreensíveis e ausência de objetividade nas decisões proferidas. Não obstante, de acordo com Nakagawa (2006), não existem soluções ‘fáceis’ no âmbito dos MSCs. Assim, os problemas dos MSCs e seu impacto no processo global de integração regional têm sido relevantes. Trata-se de um dos temas importantes do século XXI, na medida em que o comportamento do MSC se tornou um fator decisivo para determinar o sucesso de um bloco de integração regional que, eventualmente, poderá influenciar os contextos político e econômico mundiais.

Diante da relevância do MSC, convém analisá-lo de maneira mais detida no que concerne ao seu aspecto jurídico. No intuito de delimitar o objeto de pesquisa, o estudo será realizado sobre o MSC do Mercosul e da União Européia de maneira comparada. Em grande medida o estudo será facilitado pela existência de documentos primários e obras de referência acessíveis. Sendo assim, o foco deste trabalho refere-se ao processo de aprimoramento das soluções de controvérsias no Mercosul e na União Européia, mas não sem antes repassar alguns conceitos básicos sobre as organizações internacionais e a sua criação.

O Mercosul encontra-se em vigor desde 1991 pelo Tratado de Assunção, que mais tarde foi alterado e atualizado pelos Protocolos subseqüentes. De fato, somente com a assinatura do Protocolo de Ouro Preto é que o bloco efetivamente adquiriu personalidade jurídica. Em verdade, a criação do Mercosul deve ser entendida como resultado de um processo histórico iniciado sobretudo com o entendimento favorável em suporte da integração econômica na América Latina por meio da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), entendimento esse pautado na experiência européia (ACCIOLY, 1999). O processo de fato se iniciou com a criação da Associação Latino-americana de Livre Comércio (ALALC) em 1960 e, posteriormente com sua transformação na Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), já em 1980. Ocorrida uma subsequente aproximação bilateral entre Brasil e Argentina no decorrer da década de 1980, sobremaneira facilitada pelo fim da ditadura em ambos os países, assinou-se em 1990 a Ata de Buenos Aires, pela qual decidiram fixar o prazo para a criação definitiva do Mercado Comum.

O Tratado de Assunção dispunha que os Estados membros, quais sejam Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, deveriam constituir um Mercado Comum no prazo de aproximadamente quatro anos, ou mais precisamente em 31 de dezembro de 1994. O Protocolo de Ouro Preto completou o processo de transição, na medida em que institucionalizou o bloco e lhe conferiu personalidade jurídica. A estrutura institucional do Mercosul então foi estabelecida, composta pelo Conselho do Mercado Comum (CMC), o Grupo Mercado Comum (GMC), a Comissão de Comércio do Mercosul (CCM), a Comissão Parlamentar Conjunta (CPCM), o Foro Consultivo Econômico-Social (FCES) e a Secretaria Administrativa do Mercosul (SAM).

Desde então, o bloco tem apresentado grande potencial regional de comércio e investimento e, de fato, tornou-se um ator importante nas relações internacionais. No entanto, algumas das suas realizações têm sido prejudicadas pelos atrasos e problemas ligados à estrutura originária do bloco regional. Mecham (2003) afirma, por exemplo, que o Mercosul tem vivenciado momentos de disputas internas e desunião relacionados ao seu sistema institucional. De acordo com o autor, o MSC do Mercosul não estaria apto a lidar com os problemas de seus Estados membros. Diante de tal constatação, o bloco estaria sujeito às incertezas e dúvidas por parte de críticos internos e externos.

Um ponto que exerce influência sobre a referida insegurança jurídica repousa no processo de internalização das normas emanadas do Mercosul por parte de seus Estados Membros (RODRIGUES, 1997). A resolução de controvérsias pode ser dificultada, por exemplo, pela demora na aprovação legislativa de tratados já assinados pelo Presidente da República; pode causar ambiguidade com relação à falta da publicação no Diário Oficial da União do decreto presidencial, no caso brasileiro. São questões importantes que serão objeto de reflexão.

Protocolos foram assinados e ratificados pelos Estados Membros do Mercosul visando à resolução dos problemas do MSC e de outros tantos que impediriam a ampliação da cooperação e o aumento da produtividade comercial do bloco. De maneira diversa, a União Européia já possui estrutura jurídica autônoma e supranacional para dirimir conflitos entre seus Estados membros.

Diante do acima exposto, propõe-se a análise já no primeiro capítulo do presente trabalho da relação entre regionalismo, integração, direito internacional público e direito comunitário. São conceitos imprescindíveis para a compreensão dos mecanismos de solução de controvérsias criados tanto no Mercosul como na União Européia para a resolução de suas respectivas disputas.

Ultrapassado o debate sobre a relação entre direito internacional público e direito comunitário, o segundo e terceiro capítulos tratarão, respectivamente, dos sistemas de solução de controvérsias na União Européia e no Mercosul. Finalmente, o quarto capítulo conterá as considerações finais sobre ambos os mecanismos e o papel que vêm desempenhando na solução de controvérsias e no processo evolutivo dos blocos de integração.


1.INTEGRAÇÃO, REGIONALISMO E O DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO

1.1.INTEGRAÇÃO E REGIONALISMO

Ideais integracionistas surgiram ainda no início do século XVII, na Europa. Tais projetos objetivavam eliminar conflitos e buscar a paz na região. Como conseqüência, seria então iniciada uma era de prosperidade por meio do estabelecimento da cooperação entre as forças no continente (MERLE, 1966). Ideias nesse sentido podem ser encontradas nos trabalhos de Rousseau, Kant e Tocqueville, em que se defende a idéia da união da Europa, que poderia implicar inclusive na paz mundial por meio da cooperação e acordos mútuos entre os povos do continente. Após a Primeira Guerra Mundial Jean Monnet afirmava que não seria bastante a mera cooperação entre os Estados, mas sim a criação de uma Federação Européia em que houvesse um interesse comum superior às soberanias individuais, de maneira a solidificar a união entre eles. Verifica-se, portanto, que alguns séculos após as primeiras ideias integracionistas se retoma a discussão por conta das Guerras Mundiais. Em verdade, as mudanças no sistema internacional do pós Segunda Guerra dão o impulso necessário para a colocação em prática dos ideais supracitados. Emergem novas potências e o mundo vive em um sistema bipolar (WATSON, 1992). A balança do poder mundial se modifica e este novo cenário contribui decisivamente para o início de fato do processo de integração na Europa.

Inicia-se, portanto, nos anos 1950 uma nova fase de cooperação internacional entre Estados europeus, que culmina inicialmente com sua institucionalização através da Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA), em que toda a produção de ambas as matérias-primas é então submetida à direção de uma autoridade comum. Há, portanto, a delegação espontânea da soberania dos Estados signatários a um órgão designado, qual seja a Alta Autoridade, o qual se encontrava acima dos Estados membros, possuindo independência em relação a estes, por meio do modelo de supranacionalidade. Esse mesmo modelo é adotado quando da posterior criação, em 25 de março de 1957, da Comunidade Econômica Européia (CEE) e da Comunidade Européia de Energia Atômica (CEEA). Como se denota, os elementos da supranacionalidade então criados são os que persistem até os dias de hoje. Neste momento verifica-se, portanto, uma mudança radical sobre a percepção da soberania, do Estado nação, da autoridade política e, evidentemente, do direito internacional. Na observação do Ministro Gilmar Mendes (2005, p. 56):

Os movimentos ligados à globalização e à regionalização abriram fendas significativas no âmbito do Estado-nação (fronteira/cidadania/moeda/segurança). Essas questões se, de um lado, testam a ordem constitucional, produzem, de outro, a necessidade de desenvolvimento de uma nova compreensão para essas entidades de integração política supranacional.

De fato, esta nova realidade trouxe possibilidades de estudos em diversos campos. No que tange ao Direito Internacional Público, debate importante se dá com relação ao Direito Comunitário criado no âmbito na EU e com o projeto de criação de uma Constituição européia. Ainda de acordo com Mendes (2005, p. 63):

[...] com a concretização do projeto de construção de uma Constituição européia, torna-se cada vez mais evidente a perspectiva de que, diferentemente do século XX, em que se consolidaram os Estados nacionais, o século XXI poderá ter como nota diferenciadora uma reorganização das nações em ordens sociopolíticas que transcendam o perfil clássico dos Estados-Nação.

As mudanças ocorridas na Comunidade Européia desde o início dos anos 1990 e a criação de outros processos de integração ao redor do globo estimularam o aumento de estudos sobre integração. Nesse sentido, estudiosos têm se dedicado ao estudo não somente da União Européia, mas também de outros blocos regionais, tais como o Nafta, APEC e o Mercosul. A abordagem tem sido multivariada, com os estudiosos se utilizando de conceitos e fundamentações provenientes dos campos de estudo do direito internacional, mas também da ciência política, das relações internacionais, sociologia e economia.

1.2.DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO – DIREITO COMUNITÁRIO: DISTINÇÃO ENTRE AS ORDENS JURÍDICAS EUROPÉIA E MERCOSULINA

1.2.1 Da horizontalidade e da verticalidade

A distinção entre o Direito Internacional Público e o Direito Comunitário nos remete ao conceito de horizontalidade e verticalidade. Enquanto no interior dos Estados se verifica a verticalidade das normas, em que o Leviatã é o responsável pela orientação jurídica e pelo monopólio da força dentro de seus limites territoriais, no âmbito das relações internacionais prevalece o conceito da horizontalidade, em que, em tese, nenhum Estado tem prevalência sobre os demais quanto ao cumprimento de normas.

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De acordo com Gallagher (2008), existem contemporaneamente duas maneiras em que o direito internacional poderia ser visualizado, quais sejam a vertical e a horizontal. Uma corrente diversa representada aqui por Gal-Or (2008) acredita que, apesar das alterações no seio da sociedade internacional, o direito internacional permanece "horizontal" em termos de governança no âmbito das relações internacionais. Não se pode olvidar, entretanto, da existência da faceta "vertical" do direito internacional, principalmente quando se analisam os órgãos supranacionais existentes, por exemplo, no âmbito da União Européia. Pode-se ainda acrescentar como exemplo de verticalidade a preponderância dos direitos humanos sobre ordenamentos jurídicos nacionais, como se verifica inclusive em previsão contida em nossa Carta Magna em seu art. 4º, II. De fato, a dita verticalidade por vezes submete os Estados a uma regra de direito independentemente de normas internas já existentes (GALLAGHER, 2008).

Convém salientar que a existência da verticalidade não soluciona automaticamente os problemas quanto ao cumprimento das normas. Apesar de avanços pontuais, permanece em geral um grande debate sobre Direito Interno e Direito Internacional, as normas aplicáveis, base de legitimidade, transparência e o conceito de soberania dentro do sistema internacional. Segundo Soares (2002, p. 201):

O tema das relações entre o Direito Internacional e o ordenamento jurídico interno dos Estados é um dos mais complexos, pois, além de seu difícil enquadramento na teoria do Direito, ainda tem reflexos na ordem prática, em particular, quando os aplicadores do Direito se confrontam com dispositivos normativos contraditórios, uns originados do legislador interno, inclusive do legislador constituinte, e outros constantes de normas do Direito Internacional, seja jus scriptum (tratados e convenções internacionais), seja o jus non scriptum (o costume internacional).

É cediço que o direito internacional tem sido objeto de rápida evolução durante os séculos XX e XXI, quando a sociedade internacional e os atores que a compõem posicionaram-se de forma mais pró-ativa em relação à globalização e ao regionalismo. No âmbito dessas duas forças, o direito internacional foi forçado a mudar e a se adaptar, na medida em que ele tentou acomodar um novo sistema e regras indiretamente impostas tanto pela globalização como pelo regionalismo. Conforme anteriormente mencionado, dentre as características do direito internacional destacam-se a verticalidade e horizontalidade. De acordo com Gal-Or (2008), algumas dessas inovações e alterações têm conduzido a uma nova estrutura do direito internacional.

Modificações importantes foram a limitação da soberania do Estado a fim de acomodar as organizações internacionais e a intensificação do papel dos indivíduos, elevando o seu status e dando ênfase aos seus direitos individuais. Isso também destacou a importância do novo papel do Estado, na medida em que incorpora a proteção e o dever de garantir não apenas seu direito nacional, mas também o que está na esfera do direito internacional. No que tange à transferência de responsabilidades e poderes, deve-se destacar que na maioria dos casos ela é limitada, de forma que os Estados membros se mantêm diretamente ou indiretamente responsáveis pelas decisões tomadas no âmbito dos blocos regionais. Em poucos casos as atividades desempenhadas por órgãos dos blocos de integração estão ‘acima’ da soberania dos Estados membros. Tais atividades ‘supranacionais’ ocorrem de fato na UE, onde há órgãos com tal prerrogativa. De acordo com Gomes (2006, p. 26):

Em face do sucesso da integração, a própria União Européia criou um mecanismo de funcionamento – o chamado Direito Comunitário -, pautado por princípios que garantem o funcionamento harmônico do bloco, conciliando-os com os ordenamentos jurídicos nacionais dos Estados-membros; isto é, a aplicação das normas comunitárias não depende da sua inserção nos ordenamentos jurídicos internos dos Estados, tendo em vista o princípio da supremacia do Direito Comunitário.

Em verdade, a existência de órgãos supranacionais é de difícil implantação não somente levando em consideração o viés político e jurídico envolvido no processo de integração, mas também pela necessidade imperiosa de vasta experiência técnica e de pessoal qualificado para administrar e gerenciar tais atividades. No que se refere especificamente ao Mercosul, vê-se a impossibilidade de presente instituição de um Tribunal de Justiça nos moldes do da EU, haja vista seu caráter intergovernamental e o aparente desinteresse político para tanto. De acordo com Klor (2004, p. 158):

O caráter intergovernamental do Mercosul, cujo desenvolvimento e aprofundamento depende da vontade política dos governos dos Estados-Partes, obra como uma barreira para a criação de um supremo tribunal de justiça supranacional. Introduzir modificações nessa direção implica uma transformação substancial, que por uma parte, não contou com o aval suficiente no seio do Conselho do Mercado Comum, e que por outra, requer mudanças constitucionais no Brasil e no Uruguai.

De acordo com Baptista (2001), as inovações e avanços ocorridos no direito internacional durante as últimas duas décadas podem ser atribuídos aos tratados e acordos, nos âmbitos nacionais e internacionais. Políticas e acordos são fatores que estimulam a formação de um novo conjunto de regras e orientações para acomodarem os tratados recém-firmados. Isso ocorreu com o Direito Comunitário, bem como através da criação de órgãos judiciais ou de tribunais arbitrais que implementam, monitoram e administram as normas internacionais. De fato, os blocos regionais têm caminhado no sentido do aperfeiçoamento de seus MSCs para a resolução de litígios.

1.2.2Direito Comunitário

A denominação ‘direito comunitário’ está originalmente ligada à criação e desenvolvimento da União Européia. Praticamente não se vislumbra em outros esforços de integração regional avanços semelhantes no sentido da supranacionalidade e na formação de um Direito Comunitário. Distingue-se, portanto, o Direito Internacional Público (DIP) aplicado em boa parte dos blocos regionais para reger as relações entre Estados membros, aí se utilizando de procedimentos intergovernamentais, e o Direito Comunitário criado no âmbito da UE.

Em verdade, o Direito Comunitário deve ser considerado como ‘derivado’ do Direito Internacional Público, na medida em o primeiro pauta-se em tratados, acordos e convenções que, em verdade, são instrumentos originários do DIP. Em outras palavras, a própria existência do Direito Comunitário teria como condição anterior o preenchimento de requisitos formais previstos pelo DIP, haja vista que a criação da União Européia teve de seguir os processos de elaboração, aprovação e ratificação estabelecidos notadamente pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969). Conforme afirma Gomes (2006, p. 105), o

[...] Direito Comunitário, apesar de ser constituído de regras, procedimentos e princípios peculiares, seria um sistema jurídico em ‘estágio superior da evolução do Direito Internacional Público’, como assevera Fausto de Quadros, pois tem como fonte primária seus tratados constitutivos, que são instrumentos internacionais do Direito Internacional Público.

O Direito Comunitário se encontra em processo evolutivo e a supranacionalidade foi elemento imprescindível dessa evolução. De acordo com Pescatore (1972, p. 51), o elemento essencial da supranacionalidade repousa no poder real e autônomo colocado a serviço do alcance de objetivos comuns compartilhados pelos Estados. Da noção de ‘objetivo’ deve-se inferir a existência de valores e identidades comuns. Já no que se refere à intergovernabilidade, apesar da existência de interesses pela cooperação, não há que se falar em delegação de um ‘poder real e autônomo’, conforme explicitado por Pescatore. Na medida em que órgãos supranacionais são criados e elaboram normas para regular o comportamento e atuação de diversos setores dos Estados membros, tais normas compõem uma jurisdição européia que, última análise, se revela como Direito Comunitário.

O Direito Comunitário se constitui, portanto, no conjunto normativo emanado por órgãos de caráter supranacional a quem os Estados membros delegaram parte de seus poderes. Está intimamente ligado ao processo de integração em seu estágio mais avançado. Entretanto, deve-se salientar que os Estados membros conservam sua soberania, havendo a delegação de poderes para órgãos previamente determinados, os quais contarão com estrutura, procedimentos e processualísticas delimitadas e de caráter permanente. As diretivas, regulamentos e decisões emanadas dos órgãos supranacionais são aplicáveis não somente aos Estados membros, mas também aos cidadãos europeus; tais normas têm como objetivo criar uma ordem jurídica comunitária necessária para o alcance dos objetivos aos quais se propõe o bloco regional.

Deve-se ressaltar, entretanto, que o Direito Comunitário não prepondera em todas as relações existentes no âmbito da União Européia. A partir da noção de ‘pilares’ da União, noção esta amplamente utilizada para descrever o Tratado de Maastricht e a arquitetura da UE até o advento do Tratado de Lisboa, chega-se à conclusão de que há, de fato, somente a preponderância do Direito Comunitário em seu antigo primeiro pilar. O primeiro pilar incluía as disposições que eram da competência da Comunidade Européia, da Comunidade Européia de Energia Atômica (EURATOM) e a antiga Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA). Já o terceiro pilar se referia à cooperação judicial e em assuntos internos (CJAI) e nele se verificava, em grande medida, uma consistência híbrida composta tanto pelo Direito Internacional Público - por intermédio das relações intergovernamentais -, quanto pelo Direito Comunitário. Já quanto ao segundo pilar, qual seja o da política externa e de segurança comum (PESC), nele preponderava, diversamente do Direito Comunitário clássico, o Direito Internacional Público nas relações entre Estados membros (BLUMANN e DUBOUIS, 2004, p. 12-31). Apesar do fim dos ‘três pilares’ com o advento da entrada em vigor do Tratado de Lisboa em 2009, as competências afetas a cada um dos antigos três pilares permanecem em grande medida inalterados no que se refere à preponderância do Direito Comunitário ou do Direito Internacional Público. No novo modelo adotado a partir do Tratado de Lisboa houve uma simplificação da estrutura da União Européia por meio da abolição da estrutura em pilares e da concentração numa pessoa jurídica para a União Européia.

Finalmente, convém destacar que permanece certa controvérsia quanto aos limites do Direito Comunitário. Para alguns estudiosos da UE, como Fausto de Quadros (1991), o Direito Comunitário refere-se tão somente à ordem jurídica própria das Comunidades Européias, sendo composta apenas do direito gerado pelos tratados que instituíram as três Comunidades e por outros que posteriormente os completaram ou modificaram. De acordo com tal entendimento, as ordens jurídicas dos Estados membros não comporiam o ordenamento jurídico comunitário. De forma diversa, acadêmicos como José Gomes Sá Pereira (1997) defendem que o Direito Comunitário abrange também o direito interno dos Estados membros, na medida em que há uma constante penetração e articulação entre as normas de direito interno e de Direito Comunitário. Outrossim, autores como Blumann e Dubouis (2004) destacam os direitos internos dos Estados membros como uma das fontes dos princípios gerais do Direito Comunitário.

1.2.2.1 Da hierarquia das normas do Direito Comunitário

Quanto à hierarquia das normas do Direito Comunitário, convém previamente destacar que a UE prioriza em sua ordem jurídica valores fundamentais, qualificados como Direitos fundamentais e Princípios Gerais do Direito Comunitário (PGDC). Ademais, os ordenamentos jurídicos dos Estados membros da UE devem obrigatoriamente respeitar, em sentido amplo, os direitos humanos. Os tratados assinados e a jurisprudência emanada do Tribunal de Justiça da União Européia (TJUE) se encarregam de proteger tais direitos, inclusive se inspirando nas Constituições dos Estados membros e nas convenções internacionais de proteção aos direitos do homem por eles assinadas, sobretudo na Convenção Européia dos Direitos do Homem (CEDH) [01]. Os juízes da UE extraem, por vezes combinando-as, três fontes concebíveis dos princípios gerais do Direito Comunitário, quais sejam, a ordem jurídica internacional, os tratados constitutivos e os direitos dos Estados membros (BLUMANN e DUBOUIS, 2004, p. 360).

Isso se revelou, em verdade, determinante na evolução do bloco, na medida em que o Tratado de Roma, inicialmente aprovado em 1957, não continha uma ‘declaração de direitos’, apesar de afirmar em seu preâmbulo que os Estados membros estariam dispostos a preservar e a reforçar a paz e a liberdade. Havia uma grande ênfase do Tratado de Roma nas questões econômicas que, em verdade, acabariam impactando os direitos fundamentais e a liberdade, tais como a garantia de salário igual para homens e mulheres e as disposições relativas à livre circulação de trabalhadores. Coube, de fato, ao TJUE enfatizar e desenvolver a noção de que os direitos fundamentais seriam parte integrante da UE, notadamente no que se refere à propriedade, liberdade de exercício profissional, inviolabilidade de domicílio, liberdade de opinião, proteção à família e à vida privada, liberdade de religião e de crença e igualdade de tratamento. Entre os princípios gerais do direito comunitário, reconhecidos pelo Tribunal de Justiça através das décadas de 1950 a 1980, destacam-se o direito à proteção judicial, o princípio da igualdade de tratamento e de não-discriminação; o princípio da proporcionalidade; o princípio da segurança jurídica, a proibição da dupla sanção e o princípio de solidariedade entre os Estados membros. O Tribunal de Justiça lhes reconhece um valor superior com relação ao direito comunitário derivado e aos acordos externos, conforme veremos a seguir. Nesse sentido, o respeito aos princípios acima elencados é imprescindível quando da elaboração da legislação comunitária (BLUMANN e DUBOUIS, 2004, p. 360-66).

Já no final de 2000, por meio da Carta dos Direitos Fundamentais adotada em Nice, ocorreu uma evolução fundamental no sentido de se agrupar elementos que se encontravam dispersos na UE, seja no que se refere aos princípios gerais consagrados na CEDH, nas legislação nacionais e nas tradições constitucionais comuns dos países, nas convenções internacionais do Conselho da Europa e, inclusive, na Organização das Nações Unidas (ONU) e na Organização Internacional do Trabalho (OIT). Buscou-se reconhecer um conjunto de direitos civis, políticos, econômicos e sociais dos cidadãos da UE, incorporando-os ao Direito Comunitário. Finalmente, em dezembro de 2009, com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a Carta foi investida de efeito jurídico vinculativo, à semelhança dos Tratados. [02]

De fato, o Direito Comunitário agrupa um conjunto de normas que não possuem o mesmo valor jurídico havendo, portanto, uma hierarquia entre as mesmas. No que tange ao direito primário, topo da hierarquia das normas comunitárias, consideram-se como tal os tratados constitutivos das Comunidades e da União Europeia, notadamente os tratados de Paris, Roma, o Ato Único Europeu, Maastricht, Amsterdam e Nice e Lisboa, acrescidos dos atos assimilados (protocolos e convenções anexas aos tratados) e dos tratados de adesão (ARBUET-VIGNALI, 2004, p. 708-9). Conforme expõe Fontoura (1999, p. 68) :

[…] direito comunitário originário ou primário, seria composto pelas normas previstas nos tratados de integração, incluindo seus eventuais protocolos modificativos ou complementares. Trata-se, a toda evidência, de normas que enquanto inseridas em tratados geradores de obrigações recíprocas entre Estados soberanos, diriam respeito claramente ao direito internacional público tout court, em cujo âmbito podem receber o específico tratamento e valoração.

Os demais atos adotados para a aplicação dos referidos tratados são classificados de atos de direito derivado e subsidiários.

Tanto o direito derivado unilateral como o direito convencional fazem parte do direito derivado. Os atos unilaterais podem ser classificados de acordo com a existência de previsão expressa contida no art. 249 da Comunidade Européia (CE). Os atos ali previstos expressamente são os seguintes : regulamentos, diretivas, decisões, pareceres e recomendações. Já dentre os atos unilaterais que não constam do art. 249, também conhecidos como atos atípicos, destacam-se as comunicações, as recomendações, os Livros Brancos e os Livros Verdes. No que tange aos atos convencionais, eles são compostos pelos acordos internacionais assinados entre o bloco e organizações ou terceiros países, por acordos entre Estados membros e, inclusive, entre instituições da UE. Vejamos o que dispõe o art. 249 (ARBUET-VIGNALI, 2004, p. 708):

Para el cumplimiento de su misión, el Parlamento Europeo y el Consejo conjuntamente, el Consejo y la Comisión adoptarán reglamentos y directivas, tomarán decisiones y formularán recomendaciones o emitirán dictámenes, en las condiciones previstas en el presente Tratado.

O regulamento é a norma geral obrigatória e de aplicação imediata para todos os Estados membros desde sua entrada em vigor. De acordo com Arbuet-Vignali (2004, p. 708), os regulamentos são os mais altos fatores normativos de integração, na medida em que definem a unificação das leis comunitárias. A aplicação do regulamento não pode efetuada de modo incompleto, seletivo ou parcial.

A diretiva igualmente vincula os Estados membros mas, diferentemente dos regulamentos, apenas quanto aos resultados propostos. Há, portanto, o efeito direto, mas não há a aplicabilidade imediata, na medida em que cada Estado membro possue um razoável grau de flexibilidade para que escolha a forma e os meios que lhe pareçam mais convenientes para atingir o disposto na respectiva diretiva, notadamente por meio da internalização em seu respectivo ordenamento jurídico. Por meio das diretivas a Comissão Européia busca a harmonização das legislações nacionais, mas respeitam-se as diversidades existentes sobretudo no que tange à incorporação da norma aos seus sistemas jurídicos.

A decisão é obrigatória segundo o que determina o inciso IV do art. 249, vinculando todos seus destinários, sejam Estados membros ou particulares. Assim como o regulamento, a decisão não pode ser aplicada de forma incompleta, seletiva ou parcial e, diferentemente dele, a decisão tem um âmbito individual. Para entrar em vigor, a decisão deve ser notificada ao interessado ; ela não é sujeita a qualquer medida de incorporação ao ordenamento jurídico nacional e confere direitos e obrigações aos particulares.

A recomendação e o parecer não são vinculantes, conforme dispõe o inciso V do art. 249. Basicamente sugerem uma determinada conduta a fim de prevenir sanções, mas não de forma vinculada, ou seja, a ênfase é no resultado que se espera alcançar.

Finalmente, no que se referem às fontes subsidiárias, elas são compostas por elementos do direito que os tratados não prevêem, como a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o direito internacional e os princípios gerais de direito. São utilizadas para preencher eventuais lacunas que surjam tanto no direito primário quanto derivado. Stelzer (2004, p. 115) ressalta a importância da jurisprudência no âmbito da UE :

A produção jurisprudencial, cotidianamente, reforçava os termos do direito originário e derivado, em prol da integração. Através dos acórdãos, dúvidas eram definitivamente resolvidas, a ordem normativa comunitária era reposta e princípios jurídicos eram erigidos.

De fato, os princípios do Direito Comunitário se originam tanto das fontes formais acima dispostas ou da jurisprudência dos Tribunais. Dentre os princípios existentes, destacam-se o do primado do Direito Comunitário e do efeito direito e bloqueador.

1.2.2.2.Os Princípios do Direito Comunitário

Fontoura (1999) considera que a jurisprudência comunitária tem sido responsável pelo próprio sucesso da empreitada européia, inclusive qualificando-a de ‘metamorfose essencial do direito europeu’. De fato, ao analisarmos os princípios do Direito Comunitário verificamos que boa parte deles provêm dos acordãos proferidos pelo Tribunal de Justiça. Nesse sentido, o ilustre doutrinador afirma que (1999, p. 71):

Às características originárias, subsumidas da interpretaçao literal do Tratado de Roma e de seus complementos institucionais, têm-se somado aquelas que forjadas na jurisprudência luxemburguesa apresentam-se como sine quibus non à efetividade da integração contida no projeto europeu, a saber : a PRIMAZIA do direito comunitário sobre os ordenamentos jurídicos internos e o seu EFEITO DIRETO, sem os mecanismos de incorporação aos direitos estatais.

De fato, o Direito Comunitário obriga automaticamente os cidadãos europeus, sem que seja necessário qualquer procedimento de ratificação ou validação interna por parte dos Estados membros. A inexistência de referência nas Cartas Magnas dos Estados membros acerca da hierarquia das normas não impede que o efeito direto seja observado.

Conforme já exposto, o Direito Comunitário é composto por tratados e pelos atos jurídicos derivados emanados das instituições européias. De maneira mais ampla, o Direito Comunitário engloba os direitos fundamentais, os princípios gerais de Direito, a jurisprudência do TJUE, do Tribunal Geral e do Tribunal da Função Pública [03]. O Tribunal de Justiça assegura o respeito ao direito conforme a interpretação e aplicação dos tratados. Ele é a jurisdição suprema da UE. Acima do direito nacional dos Estados membros, inclusive de suas respectivas Cartas Magnas, o Direito Comunitário obriga os Estados membros por meio do efeito vinculante e, nesse sentido, garante uma proteção jurídica unificada a todos os cidadãos europeus. Vê-se, portanto, que as regras e normas de direito interno não podem contrariar as regras do Direito Comunitário. Em caso de conflito, esta última será aplicada e deverá ser respeitada. Trata-se do princípio do primado ou da primazia do Direito Comunitário, também conhecido como princípio da superioridade hierárquica da norma comunitária, a seguir explicitado :

Este princípio impõe às autoridades dos Estados‑Membros que não apliquem normas nacionais contrárias ao direito comunitário […] requer que as autoridades façam prevalecer o direito comunitário sobre o direito nacional, qualquer que seja a natureza da norma comunitária em apreço e a do direito nacional em questão (em especial, as constituições nacionais estão sujeitas ao princípio do primado). Segundo o princípio do primado, o direito comunitário tem um valor superior ao do direito dos Estados‑Membros. Se uma norma nacional for contrária a uma disposição comunitária, é a disposição comunitária que se aplica. [04]

Este princípio não aparece textualmente nos tratados. Tem ele sido consagrado desde o acórdão Flamínio Costa contra Ente Nationale per l’Energia Elettrica, de 15 de julho de 1964, o qual declarou que :

Diversamente dos tratados internacionais ordinários, o Tratado CEE institui uma ordem jurídica própria que é integrada no sistema jurídico dos Estados Membros a partir da entrada em vigor do Tratado e que se impõe aos seus órgãos jurisdicionais nacionais. [05]

Assim, o referido acórdão concretiza o entendimento de que a

"[…] integração no direito de cada país membro de disposições provenientes de fonte comunitária e, mais genericamente, os termos e o espírito do tratado têm por corolário na impossibilidade para os Estados-membros de fazer prevalecer, contra uma ordem jurídica aceite por eles numa base de reciprocidade, uma medida unilateral ulterior … A preeminência do direito comunitário é confirmada pelo artigo 189.º, nos termos do qual os regulamentos têm valor obrigatório e são diretamente aplicáveis em qualquer Estado-membro (grifo nosso).….Resulta do conjunto destes elementos que emanado de uma fonte autônoma, o direito resultante do tratado não poderia em razão da sua natureza específica original, ver-se judiciariamente confrontado com um texto de direito interno qualquer que este fosse, sem perder o seu caráter comunitário e sem que fosse posta em causa a base jurídica da própria Comunidade." [06]

Todo esse quadro corrobora o entendimento de que o órgão jurisdicional nacional é obrigado a observar a referida hierarquia normativa, qualquer que seja o obstáculo que porventura exista em sua própria legislação nacional. Essa obrigação se estende a todas às normas vinculantes emitidas pela UE, sejam elas originárias ou derivadas. As normas vinculantes emitidas pela UE são, portanto, hierarquicamente superiores às normas nacionais, inclusive as constitucionais.

Convém ainda destacar o acórdão Simmenthal de 09 de março de 1978. A seguir um excerto dele :

1. As disposições de direito comunitário que produzam efeito direto, isto é, que sejam diretamente aplicáveis na acepção que foi dada a este conceito pela jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, não podem ser afetadas nos seus efeitos por disposições nacionais que as contrariem, independentemente do fato de tais disposições serem anteriores ou posteriores às disposições de direito comunitário.

2. O fato de um Tribunal Constitucional ser competente para declarar a inconstitucionalidade das referidas normas de direito interno não deverá impedir o juiz nacional de aplicar as disposições de Direito Comunitário diretamente aplicáveis, mesmo que não tenha sido ainda declarada a inconstitucionalidade das disposições nacionais contrárias às referidas disposições comunitárias.

3. A proteção dos direitos subjetivos dos particulares que sejam conferidos por disposições de Direito Comunitário diretamente aplicáveis, deve ser assegurada com efeitos a partir da data de entrada em vigor daquelas disposições. Por conseguinte o juiz nacional, chamado a conhecer do litígio, deve assegurar o respeito do Direito Comunitário desde o momento da sua entrada em vigor.

Verifica-se, portanto, que o Tribunal declarou que as disposições do Tratado e dos atos das instituições diretamente aplicáveis têm efeito direto, desde o momento de sua entrada em vigor, no direito interno dos Estados membros. A Corte não se limitou, entretanto, a essa consideração, na medida em que afirmou que as normas comunitárias têm o condão de, em certa medida, impedir a elaboração posterior de novos atos legislativos nacionais – intitulado ‘efeito bloqueador’ -, caso se mostrem incompatíveis com as normas do Direito Comunitário. Conforme Cunha e Ruiz (1995, p. 348),

[...] a

s disposições comunitárias diretamente aplicáveis produzem um « efeito bloqueador » (grifo nosso), o qual se manifesta não só em relação ao direito nacional anterior que se mostre contrário a tais disposições, como ao direito nacional posterior – e é no último caso que se afirma bem visivelmente a primazia conferida ao direito comunitário.

Convém destacar que, no que se refere às normas de direito interno já existentes, a prevalência do Direito Comunitário não implica em sua automática ‘inconstitucionalidade’ ou ‘invalidade’, mas tão somente em sua ineficácia, a qual deve ser invocada de pronto pelo juiz nacional. Nesse sentido se posicionam Cunha e Ruiz (1995, p. 346):

Coloca-se, porém, o problema de saber se o conflito entre o direito interno e o direito comunitário se reconduz a um problema de inconstitucionalidade, passível da correspondente fiscalização, ou se, pelo contrário, deve ser caracterizado de outro modo.

[...] a conseqüência da desconformidade será, não a inconstitucionalidade ou invalidade, mas sim a ineficácia da disposição de direito interno.

O juiz nacional pode, portanto, automaticamente desconsiderar uma norma interna que contrarie o disposto no ordenamento comunitário, sem nem mesmo suscitar dúvidas junto ao Tribunal de Justiça, apesar da existência da prerrogativa do reenvio prejudicial. De fato, o acórdão Granital proferido pelo Tribunal Constitucional italiano em 1984 admitiu a possibilidade do juiz nacional afastar um lei interna contrária ao direito comunitário diretamente aplicável. (CUNHA e RUIZ, 1995, p. 347-8).

No que tange ao efeito direto enquanto princípio fundamental da ordem jurídica comunitária, convém sublinhar o caso van Gend en Loos de 5 de fevereiro de 1963. Houve a preocupação quanto à facilitação do acesso do particular no que tange aos direitos a serem exercidos como cidadão comunitário, diferentemente no que ocorre no tradicional Direito Internacional Público, pelo qual os indivíduos não podem invocar diretamente os benefícios que lhes são conferidos por certos tratados, inclusive como se verá abaixo no que se refere ao Mecanismo de Solução de Controvérsias do Mercosul. Este princípio se assenta na idéia de que o direito comunitário não só cria obrigações para os Estados membros, mas que também cria direitos para os indivíduos. Mais especificamente, são regras que, devido à sua natureza e características têm um efeito direto nas relações jurídicas entre Estados membros e e seus cidadãos, e mesmo nas relações entre particulares. O efeito direto ocorre majoritariamente nas relações entre cidadãos e Estados membros, em que se demanda o cumprimento de regulamentos e decisões provenientes da Comunidade; há, entretanto, a possibilidade de que o efeito direto seja aplicado nas relações entre particulares.

O acórdão van Gend en Loos foi proferido a partir da demanda de uma pessoa jurídica quanto à cobrança de tarifa de importação realizada pelo Estado holandês. As autoridades holandesas cobraram a tarifa e a empresa van Gend en Loos efetuou o pagamento e questionou a cobrança junto ao Tribunal holandês, apoiando-se no então art. 12 do Tratado de Roma, que determinava que « Os Estados-Membros devem abster-se de introduzir entre si novos direitos aduaneiros de importação e exportação ou qualquer encargo de efeito equivalente e de aumentar aqueles que já aplicam nas suas relações uns com os outros ». O referido Tribunal nacional efetuou consulta ao então Tribunal de Justiça da Comunidade Européia de acordo com o procedimento do reenvio prejudicial [07], previsto por sua vez no atual art. 267 do Tratado sobre o Funcionamento da União Européia (TFUE) [08]. O Tribunal de Justiça declarou em 05 de fevereiro de 1963 que o art. 12 foi capaz de criar direitos pessoais com relaçao à Van Gend en Loos, por meio de uma interpretação extensiva do Tratado de Roma. Segue trecho do acórdão :

A Comunidade constitui uma nova ordem jurídica de direito internacional em benefício da qual os Estados limitaram os seus direitos soberanos, ainda que em domínios limitados, e os sujeitos não são só os Estados membros, mas também os seus nacionais. Independentemente da legislação dos Estados membros, o direito comunitário, por conseguinte, não só impõe obrigações aos particulares, mas também se destina a conferir-lhes direitos que passam a fazer parte de seu ordenamento jurídico. Estes direitos não surgem apenas quando eles são expressamente concedidos pelo tratado, mas também em razão das obrigações que o Tratado impõe de forma bem definida sobre os indivíduos, bem como aos Estados-Membros e as instituições da comunidade.

O Tribunal entendeu que, como o objetivo do Tratado era a formação de um mercado comum, ele deveria ser visto como acima de uma mero contrato internacional típico. Nesse sentido, além da criação de obrigações mútuas entre os Estados membros, o Tratado conferiria aos indivíduos, aí considerados tanto as pessoas físicas quanto jurídicas, capacidade postulante diante do Tribunal de Justiça Europeu. O efeito direto seria, portanto, necessário para garantir proteção jurídica aos indivíduos ; ademais, os próprios indivíduos seriam atores capazes de supervisionar a efetiva executoriedade das normas criadas no âmbito da Comunidade junto aos seus próprios tribunais nacionais.

Isso provocou o posterior ‘alargamento’ do efeito direto a partir das normativas emanadas dos órgãos supranacionais. Caso afetem o particular, o efeito direto é sempre observado de pronto, observando-se sua aplicabilidade vertical ascendente (sentido particular - Estado), mesmo no caso das diretivas que, apesar de obrigatórias para os Estados membros, originalmente não possuiriam efeito direto, pois deixam a critério dos mesmos a escolha dos meios para sua execução. Portanto, as diretivas originalmente não têm como pressuposto o efeito direto, mas adquirem-no na relação particular - Estado membro, que tenha se mantido inerte quanto à adoção de medidas necessárias para a sua aplicação. Deve-se observar que, diferentemente, não se aplica o efeito direto descendente, ou seja, no sentido Estado membro – particular, na medida em que o particular não pode ser impelido a agir de determinada forma se nem mesmo seu Estado de origem regulamentou a aplicação da diretiva. O alargamento desse efeito direto parte da análise do acórdão van Duyn de 4 de dezembro de 1974 [09]. No caso em tela, se questionava por meio do reenvio prejudicial se a Diretiva 64/221/CEE possuiria efeito direto, ou seja, se seria conferido direito aos particulares de invocá-la perante os tribunais nacionais. Tal diretiva determinava que as derrogações ao direito de permanecer no território de um Estado membro, por um estrangeiro no exercício da livre circulação de trabalhadores, justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública, devem-se basear « no comportamento pessoal do indivíduo ». A conclusão do Tribunal de Justiça se verifica pelo trecho do acórdão a seguir :

1. O art. 48 (atual 39 do Tratado CE) do Tratado CEE tem efeito direto nas ordens jurídicas dos Estados-membros e confere aos particulares direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais devem salvaguardar.

2. O art. 3º, n.º 1, da Diretiva 64/221/CEE do Conselho, de 25 de Fevereiro de 1964, para coordenação das medidas especiais relativas a estrangeiros em matéria de deslocação e estada justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública, confere aos particulares direitos que estes podem invocar em juízo e que os órgãos jurisdicionais nacionais devem salvaguardar.

3. O art. 48 (atual 39 do Tratado CE) do Tratado CEE e o art. 3º da Diretiva 64/221 devem ser interpretados no sentido de que, ao impor restrições justificadas por razões de ordem pública, é legítimo que um Estado-membro tome em consideração, como relevando do comportamento pessoal do indivíduo em causa, o fato de este pertencer a um grupo ou organização cujas atividades são consideradas pelo Estado-membro como um perigo social, sem todavia serem proibidas e sem que sejam impostas quaisquer restrições aos nacionais desse Estado que desejem exercer uma atividade análoga ao serviço desses mesmos grupos ou organizações.

Reconhece-se, a partir de então, o efeito direto da diretiva no sentido vertical ascendente. Pode, portanto, o particular opor um direito reconhecido na diretiva ao Estado membro que não tomou providências quanto à sua aplicação. Como acima explicitado, não cabe o efeito direto no sentido inverso, ou seja, vertical descendente. Nesse sentido se manifestou Coelho (2007, p. 25) :

Até hoje essa é a posição do Tribunal comunitário que tem, através de uma jurisprudência constante, sustentado uma concepção restritiva do efeito direto da diretiva, não lhe reconhecendo efeito direto em sentido vertical descendente – o que compreendemos na medida em que o efeito direto da diretiva pressupõe um incumprimento do Estado, não sendo admissível que o Estado possa, ainda assim, aproveitar o próprio incumprimento para opor a norma constante na diretiva incumprida a um particular. A jurisprudência do Tribunal de Justiça impede deste modo que o Estado oponha o seu próprio incumprimento aos particulares.

Tendo apreciado o Direito Comunitário e seu desempenho na UE, passa-se, agora, à análise do Direito Internacional Público e de sua relação com o processo integracionista em andamento no Mercosul.

1.3.Direito da Integração no Mercosul

No âmbito dos processos de integração em que se desenvolvem áreas de livre comércio ou uniões aduaneiras predomina o Direito Internacional Público nas relações intergovernamentais. Isso se revela basicamente pelo fato de inexistirem, no âmbito dos referidos processos, instituições supranacionais que tenham autonomia de fato vis-à-vis seus Estados membros. Nesse sentido, convém destacar que estudiosos que se debruçam sobre o tema divergem quanto à utilização terminológica entre ‘direito comunitário’ e ‘direito da integração’. De fato, Dutra Júnior (2006, p. 117) constata que « Não há um consenso sobre existir ou não diferença entre direito da integração e direito comunitário ».

De acordo com Borges, não haveria distinção entre os termos ‘direito comunitário’ e ‘direito da integração’. Segundo ele (2005, p. 55) :

O direito comunitário, também denominado direito da integração, está contido no ordenamento jurídico-comunitário, que não se estrutura e desenvolve no território de determinado país, porém no espaço da integração, o âmbito territorial de validade das normas comunitárias, que é regionalizado (p. ex., direito europeu, MERCOSUL)

Partilhamos, entretanto, o entendimento de Menezes (2002) pela distinção entre os termos ‘direito comunitário’ e ‘direito da integração’. Segundo ele, o direito da integração se verifica nos processos em curso no âmbito das áreas de livre comércio e de uniões aduaneiras, onde há prevalência das relações intergovernamentais. Já com relação ao direito comunitário, ele é proveniente de níveis de integração mais avançados, onde há elementos de supranacionalidade, notadamente a aplicabilidade imediata, a primazia do direito comunitário e o efeito direto, conforme já expostos neste trabalho. Consequentemente, o que aqui se entende por direito da integração é o direito internacional público aplicado no âmbito integrativo de menor intensidade. Resek (1997, p. 55-6) afirma, ao analisar o que ocorre no Mercosul, que « […] não há ainda […] de estrito ponto de vista técnico […] um direito comunitário, mas há direito internacional público, regional, integracionista […] » (grifo nosso). Nesse mesmo sentido é o entendimento de Gomes (2006, p. 131), segundo o qual o direito da integração pode ser definido « como o ramo do Direito Internacional Público que trata dos mecanismos de formação dos blocos econômicos entre os países ».

A partir das considerações acima expostas e das observações de Kegel (2004, p. 72-3), podem-se destacar comparativamente os princípios básicos da intergovernabilidade / direito da integração (contidos no Mercosul) e da supranacionalidade / direito comunitário (contidos na União Européia), conforme quadro elaborado abaixo:

Procedimentos intergovernamentais / direito da integração

Procedimentos supranacionais / direito comunitário

Quanto à composição dos órgãos decisórios: a adoção de decisões da organização é efetuada por órgãos compostos por representantes dos governos, que são designados por estes e sujeitos às suas instruções.

Os integrantes dos órgãos decisórios não são representantes dos governos de seus Estados de Origem e nem estão subordinados às suas instruções. Ao contrário, atuam em nome e no interesse da Comunidade Européia, usufruindo de independência no exercício de suas funções.

Quanto ao sistema decisório: utiliza-se a regra de unanimidade (obtida por meio do consenso entre os Estados membros) quando as decisões possuem efeito vinculante, o que não impede que os Estados que tenham votado contra determinada decisão não sejam por ela vinculados.

No sistema decisório utilizado, admite-se que determinadas decisões (a maior parte), sejam tomadas pela maioria dos membros, sem necessidade de unanimidade ou consenso. Isto significa que mesmo os Estados que votaram contra alguma decisão sejam vinculados por ela.

Quanto à eficácia das decisões: é mediata, ou seja, as decisões devem ser incorporadas pelos próprios Estados membros para que possam produzir efeitos na sua ordem interna.

A eficácia das decisões dos órgãos comunitários é imediata. Ou seja, não necessitam ser internalizadas por qualquer ato interno dos Estados para que produzam efeitos em sua ordem jurídica interna. Neste sentido, o efeito imediato das normas comunitárias traduz a deliberação dos Estados membros de se submeterem a uma autoridade exterior.

Tabela elaborada a partir de KEGEL, Patrícia L. O Sistema de Solução de Controvérsias na União Européia. In: DE KLOR, Adriana Dreyzin et al. Solução de controvérsias: OMC, União Européia e Mercosul. Rio de Janeiro: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2004, p. 72-3.

Ao analisarmos o quadra acima, pode-se inferir que a primeira coluna se refere à grande maioria dos processos de integração em curso, dentro os quais se situa o Mercosul, enquanto que na segunda coluna se vislumbra o que ocorre, em grande medida, somente na experiência européia. Não há, portanto, no Mercosul o direito comunitário afeto à UE, mas tão somente o direito da integração, onde inexiste a submissão de seus Estados membros, dentre os quais o Brasil, aos princípios da aplicabilidade imediata e do efeito direto. Nesse sentido, convém destacar o posicionamento do relator Ministro Celso de Mello (STF) em julgamento de Agravo Regimental na Carta Rogatória no. 8279 :

O SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO NÃO CONSAGRA O PRINCÍPIO DO EFEITO DIRETO E NEM O POSTULADO DA APLICABILIDADE IMEDIATA DOS TRATADOS OU CONVENÇÕES INTERNACIONAIS. A Constituição brasileira não consagrou, em tema de convenções internacionais ou de tratados de integração, nem o princípio do efeito direto, nem o postulado da aplicabilidade imediata. Isso significa, de jure constituto, que, enquanto não se concluir o ciclo de sua transposição, para o direito interno, os tratados internacionais e os acordos de integração, além de não poderem ser invocados, desde logo, pelos particulares, no que se refere aos direitos e obrigações neles fundados (princípio do efeito direto), também não poderão ser aplicados, imediatamente, no âmbito doméstico do Estado brasileiro (postulado da aplicabilidade imediata). O princípio do efeito direto (aptidão de a norma internacional repercutir, desde logo, em matéria de direitos e obrigações, na esfera jurídica dos particulares) e o postulado da aplicabilidade imediata (que diz respeito à vigência automática da norma internacional na ordem jurídica interna) traduzem diretrizes que não se acham consagradas e nem positivadas no texto da Constituição da República, motivo pelo qual tais princípios não podem ser invocados para legitimar a incidência, no plano do ordenamento doméstico brasileiro, de qualquer convenção internacional, ainda que se cuide de tratado de integração, enquanto não se concluírem os diversos ciclos que compõem o seu processo de incorporação ao sistema de direito interno do Brasil.

No que se refere às fontes jurídicas do Mercosul, o art. 41 do Protocolo de Ouro Preto estabelece que elas são compostas da seguinte forma :

I-O Tratado de Assunção, seus protocolos e os instrumentos adicionais ou complementares;

II-Os acordos celebrados no âmbito do Tratado de Assunção e seus protocolos;

III-As Decisões do Conselho do Mercado Comum, as Resoluções do Grupo Mercado Comum e as Diretrizes da Comissão de Comércio do Mercosul, adotadas desde a entrada em vigor do Tratado de Assunção.

São, portanto, fontes primárias o próprio Tratado de Assunção, o Protocolo de Ouro Preto, de Olivos e demais atos internacionais, enquanto que as fontes secundárias são as normas produzidas pelos órgãos do Mercosul, quais sejam as decisões, resoluções e diretrizes. Vê-se, sobretudo, a partir da leitura dos arts. 38 a 42 do Protocolo de Ouro Preto, que a opção originária dos Estados membros do Mercosul foi de fato pelo intergovernamentalismo, pela reciprocidade e pela obediência ao príncipio do Pacta Sunt Servanda na condução do processo de integração. Pautando-se nos princípios gerais do Direito Internacional Público, o Protocolo de Ouro Preto estabeleceu as orientações relativas à recepção e aplicação das normas emanadas do Mercosul, consoante os artigos supracitados.

O art. 42 estabelece que as Decisões do Conselho do Mercado Comum (CMC), as Resoluções do Grupo Mercado Comum (GMC) e as Diretrizes da Comissão de Comércio do Mercosul (CCM) ‘terão caráter obrigatório’ – não há, entretanto, qualquer menção à recepção imediata de tais normas. Em verdade, o Protocolo se reporta aos mecanismos de recepção previstos por cada Estado para assegurar sua entrada em vigor.

De acordo com o art. 38 « Os Estados Partes comprometem-se a adotar todas as medidas necessárias para assegurar, em seus respectivos territórios, o cumprimento das normas emanadas dos órgãos do Mercosul previstos no artigo 2 deste Protocolo » ; já o art. 42 ainda afirma que as normas oriundas do CMC, GMC e CCM « deverão, quando necessário, ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante os procedimentos previstos pela legislação de cada país. »

A aplicabilidade de tais normas está, portanto, condicionada ao processo de internalização previsto nas Constituições nacionais. No caso brasileiro, o mecanismo de recepção obedece ao rito ‘tradicional’ adotado com relação aos demais tratados internacionais firmados, qual seja : a) aprovação, pelo Congresso Nacional, mediante decreto legislativo; b) ratificação por meio de depósito do respectivo instrumento pelo Chefe de Estado; c) promulgação pelo Presidente da República, mediante decreto, o que viabilizará sua publicação oficial e a executoriedade do ato de Direito Internacional Público. Somente a partir desse momento é que o tratado firmado de fato obriga e vincula no plano do direito positivo interno [10].

Percebe-se que o caráter ‘obrigatório’ a que se refere o artigo 42 do Protocolo é passível de questionamento, na medida em que a eficácia da norma produzida, distintamente do que ocorre no Direito Comunitário, está condicionada à sua incorporação pelo Estado membro de acordo com seu iter procedimental específico. O que vê com freqüência é o impacto de interesses políticos díspares e conflitantes entre Estados membros que se reflete no próprio andamento da internalização da norma. Este caráter político a que nos referimos encontra respaldo em Dallari (1997, p. 114), segundo o qual

[...] na estrutura atual do Mercosul, as deliberações emanadas de suas instâncias não se constituem, por si só, em normas jurídicas em sentido estrito, mas sim em determinações políticas que vinculam os Estados-partes à promoção de adequação nos respectivos ordenamentos jurídicos internos. (grifo nosso)

Não há como ignorar os conflitos políticos no âmbito da UE - ao contrário, isso se verifica com habitualidade desde a sua criação. Entretanto, a inexistência de elementos de supranacionalidade no Mercosul fragiliza suas próprias instituições no que tange à executoriedade das normas produzidas. Nesse sentido, convém abordar a seguir o sistema jurisdicional da UE e o Mecanismo de Solução de Controvérsias (MSC) do Mercosul para aprofundamento do debate.

Sobre o autor
Carlos Ricardo Caichiolo

Doutorando em Ciência Política na Université Catholique de Louvain la Neuve (Bélgica). Mestre em História das Relações Internacionais (Universidade de Brasília) e bacharel em Relações Internacionais (Universidade de Brasília) e em Direito (Centro Universitário de Brasília). Professor em programas de graduação e de pós-graduação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAICHIOLO, Carlos Ricardo. Mecanismos de solução de controvérsias no Mercosul e na União Européia.: Uma abordagem comparativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2997, 15 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19982. Acesso em: 22 nov. 2024.

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