"Ontem, os Códigos; hoje, as Constituições. A revanche de Grécia contra Roma."
Eros Roberto Grau [01]
"A crença na Constituição e no constitucionalismo não deixa de ser uma espécie de fé: exige que se acredite em coisas que não são direta e imediatamente apreendidas pelos sentidos. Como nas religiões semíticas - judaísmo, cristianismo e islamismo - tem seu marco zero, seus profetas e acena com o paraíso: vida civilizada, justiça e talvez até felicidade."
Luís Roberto Barroso [02]
"Se a nova Constituição consagra um projeto tão generoso de transformação social e de emancipação, por que não lutar pela sua efetivação?"
Daniel Sarmento [03]
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Houve um período em que a Constituição não passava de um simplório documento público, desprovido de qualquer eficácia jurídica imediata. Nela repousavam a estruturação formal do Estado e uma série de promessas de cunho eminentemente político. Na ocasião, o epicentro do ordenamento jurídico se situava na legislação infraconstitucional, mais precisamente no âmbito do Código Civil, irradiado pelos valores liberais que deram azo à sua formação.
Sucede que, atualmente, essa visão algo que restritiva da Constituição tem sofrido profunda alteração. De fato, mais que simples invocação de um sonho futuro, a carta constitucional se oferece hoje como instrumento de alteração já do próprio presente. De um mero documento político, recebeu o honroso posto de genuína norma jurídica [04], buscando-se, com isso, afastar os males de uma interpretação meramente formal, dogmática e acriativa, que sempre permeou os estudos constitucionais.
E há mais: saindo dos círculos da formalidade legislativa e da complexidade intelectual, a verdade é que agora a Constituição está em todos os recantos. Dos jardins às praças, dos fóruns às escolas, das sentenças aos estatutos das mais variadas associações, o fato é que todos falam da Constituição. Diz-se, pois, com inteira pertinência, que ela, atualmente, permeia, fecunda, alimenta, influencia... Na exata dicção de SARMENTO, tornou-se ubíqua [05].
O sistema se realinha: os holofotes saem do plano infraconstitucional e passam ao plano constitucional. E não seria ousadia dizer que ela - a Constituição - agora se afirma, de fato, como o genuíno astro-rei do universo jurídico... O cenário, alvissareiro, demonstra que novos horizontes se descortinam, atribuindo ao texto constitucional uma dimensão substantiva, uma vocação normativa e um potencial emancipatório [06].
Mas o que teria suscitado o surgimento desse fenômeno? Quais as suas premissas? Quais as suas características? Quais os seus principais efeitos? Como o neoconstitucionalismo não é um auto-referencial, não nasceu por si só, senão que adveio como fruto de toda uma gama de mudanças em antigas concepções filosóficas, sociais e políticas - cujo fluxo de idéias, ao que parece, conflui para a eleição da Constituição como o meio mais eficaz de tratar suas demandas -, há então que se debruçar com maior desvelo sobre algumas de suas nuanças, traçando-se, ao final, uma necessária interface com o constitucionalismo pátrio. Vejamos.
2. UM NOVO PERFIL ESTATAL: O ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO
A locução neoconstitucionalismo tem sido utilizada para denotar o atual estado doconstitucionalismo contemporâneo, profundamente acolhedor de valores substanciais e opções políticas (gerais e específicas) relevantes. A partir do momento em que esses valores e essas opções políticas assumem a feição de normas jurídicas, tornou-se imprescindível a formulação de uma específica dogmática capaz de conferir eficácia a tais elementos normativos, sendo esse um dos grandes desafios do assim denominado neoconstitucionalismo [07].
Com tal nomenclatura, geralmente se procura destacar a mudança de paradigmas ocorrida com a transição do Estado Legislativo de Direito para o Estado Constitucional de Direito, o que significa "a passagem da Lei e do Princípio da Legalidade para a periferia do sistema jurídico e o trânsito da Constituição e do Princípio da Constitucionalidade para o centro de todo o sistema" [08]. A Constituição passa a ser um privilegiado instrumento para a busca daquelas dignificantes aspirações emanadas da soberania popular e democraticamente alojadas no próprio texto constitucional, entendido no seu todo dirigente-valorativo-principiológico [09].
De fato, o Estado Legislativo de Direito - conforme afirma FERRAJOLI - designa qualquer ordenamento constitucional em que os poderes públicos são conferidos por lei e exercidos de acordo com os procedimentos também legalmente estabelecidos, enquanto o chamado Estado Constitucional de Direito designa aqueles ordenamentos em que a vinculação dos poderes públicos abrange não apenas aspectos formais, mas também materiais [10]. Frise-se, de pronto, que a Carta Constitucional brasileira se amolda perfeitamente a esse novo modelo, porquanto agasalha a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1º, inciso I) e traça sérias políticas públicas destinadas a fazer alcançar o bem-estar social (artigo 3º).
Noutro quadrante, agora trabalhando com os conceitos de Estado Liberal, Social e Democrático de Direito, aduz com precisão MONTEZ:
"Importante ressaltar que enquanto no Estado Liberal se sobressaía a figura do Poder Legislativo, no Estado Social é o Poder Executivo que ganha importante relevo, tendo em vista a necessidade de uma intervenção estatal. Por fim, após a segunda grande guerra mundial, sobreveio a instituição de uma terceira forma de Estado de Direito - Estado Democrático de Direito, que no Brasil se materializou, ao menos formalmente, na Constituição de 1988. Mas afinal, o que é o Estado Democrático de Direito? O Estado Democrático de Direito é concebido com base em dois fundamentos: respeito aos direitos fundamentais/sociais e democracia. O Estado Democrático de Direito é, portanto, um plus em relação ao Estado Social, na medida em que o Direito é visto como instrumento necessário à implantação das promessas de modernidade não cumpridas pelo Estado Social. Desta forma, há um inevitável deslocamento do centro de tensão/decisão dos Poderes Legislativo e Executivo para o Poder Judiciário (Jurisdição Constitucional)" [11].
Destarte, amparados em abalizada doutrina, temos, pois, que são hoje objetivos últimos do chamado Estado Constitucional de Direito: i) institucionalizar um Estado democrático de direito, fundado na soberania popular e na limitação do poder; ii) assegurar o respeito aos direitos fundamentais, inclusive e especialmente os das minorias políticas; iii) contribuir para o desenvolvimento econômico e para a justiça social; e iv) prover mecanismos que garantam a boa administração, com racionalidade e transparência nos processos de tomada de decisão, de modo a propiciar governos eficientes e probos [12].
Daí a importância do atual Estado Democrático de Direitoou, como registramos, Estado Constitucional de Direito [13]. Eis a razão do prefixo neo, pois. É algo de novo que surge. Uma espécie de recomeço - com novas e profundas reformulações intelectivas. A linha de raciocínio é simples de entender: uma nova sociedade (pós-moderna) exige um novo perfil estatal (Estado Constitucional de Direito), que, de sua parte, demanda uma nova teoria constitucional (neoconstitucionalismo), que, para vingar, requer, claro, como suporte, uma nova teoria do direito (pós-positivista)... [14]
Tudo novo, não porque se quer esquecer o passado, mas porque se aprendeu com ele. Depois do holocausto, é como que um fio de esperança, enxergando no Direito, com essa novel faceta, um importante instrumental capaz de conduzir a humanidade a uma realidade diferente, que assegure respeito aos direitos fundamentais - em especial à dignidade da pessoa humana - e absorva os valiosos vetores de solidariedade recentemente forjados no bojo das mais variadas cartas constitucionais.
3. UMA NOVA TEORIA DO DIREITO: O PÓS-POSITIVISMO
A experiência tem demonstrado que, em momentos de crise, o homem se posta a assumir basicamente duas atitudes: sujeitar-se ao problema ou enfrentar o problema. De fato, no agitar violento das ondas, ou passivamente nos entregamos à sua força ou corajosamente erguemos a cabeça em busca de ar.
O direito está em crise. Como diz BARROSO, o direito positivista vive uma grave crise existencial, na medida em que não consegue entregar com eficiência os dois produtos que fizeram sua reputação ao longo dos séculos, mencionando o renomado autor que "a injustiça passeia pelas ruas com passos firmes e a insegurança é a característica da nossa era" [15]. O pós-positivismo, nesse compasso, representa exatamente o anseio por um novo fôlego, a busca de uma nova perspectiva; a ousadia de erguer a cabeça e olhar por sobre as ondas... [16]
A ascensão do jusnaturalismo está associada à necessidade de ruptura com o Estado absolutista, enquanto que sua decadência está vinculada ao movimento de codificação do direito, ocorrida lá pelos idos do século XVIII. Por outro lado, a ascensão do juspositivismo está jungida à crença exacerbada no poder do conhecimento científico (frio e calculista), ao passo que sua decadência está ligada à derrota do nazi-fascismo, no século XX. É exatamente nesse colapso de pensamentos, nessa crise de paradigmas, que o pós-positivismo, em um valioso ímpeto de superação científica, exsurgiu [17]. Realmente, em já clássica construção textual, acentua, com propriedade, BARROSO:
"O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica e a teoria dos direitos fundamentais. (...) O Direito, a partir da segunda metade do século XX, já não cabia mais no positivismo jurídico. A aproximação quase absoluta entre Direito e norma e sua rígida separação da ética não correspondiam ao estágio do processo civilizatório e às ambições dos que patrocinavam a causa da humanidade. Por outro lado, o discurso científico impregnara o Direito. Seus operadores não desejavam o retorno puro e simples ao jusnaturalismo, aos fundamentos vagos, abstratos ou metafísicos de uma razão subjetiva. Nesse contexto, o pós-positivismo não surge com o ímpeto da desconstrução, mas como uma superação do conhecimento convencional. Ele inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as idéias de justiça e legitimidade. O constitucionalismo moderno promove, assim, uma volta aos valores, uma reaproximação entre ética e Direito" [18].
Como se pode perceber, a teoria normativa dos princípios é assunto estreitamente ligado ao pós-positivismo [19], que, a seu turno, tem já produzido sólidos efeitos na realidade jurídica brasileira. Efetivamente, nosso atual panorama jurídico sinaliza pela alteração da tradicional hierarquia das fontes do direito, tal qual formulada pela Lei de Introdução ao Código Civil. De fato, ao invés de fontes subsidiárias do direito, cuja aplicação só se justificava na ausência de lei ou de costume relacionados ao caso, bem como na impossibilidade da analogia (CC, artigo 4º [20]), os princípios recentemente assumiram o posto de fontes de alta dignidade normativa [21].
Com efeito, os princípios, como consignado, já tinham juridicidade, porque inseridos, ainda que em caráter secundário, no ordenamento jurídico, mesmo que como mera fonte subsidiária de direito. Atualmente, aos princípios foi agregado o predicado da normatividade, ou seja, foi-lhe atribuída a capacidade de vincular, de conformar condutas. Mas, é claro que essa tal capacidade normativa poderia muito bem ser exercida no âmbito da seara infraconstitucional. Todavia, assim não ocorreu. Ao mesmo tempo em que receberam essa forte carga de normatividade, os princípios também foram alcandorados ao ápice, ao topo do ordenamento jurídico, alojando-se na intimidade da tessitura constitucional. Assim, além de juridicidade e normatividade, agora os princípios também passaram a deter supremacia no reino jurídico, na medida em que jungidos nada mais nada menos que à própria Carta Magna [22]. Como se pode ver, a ascensão dos princípios ao andar constitucional representou uma espetacular promoção, um fenômeno deveras insólito. De fato, foram guindados de um sombrio quarto de fonte supletiva ao belo palácio de vetor axiológico do sistema jurídico. Qual José do Egito, os princípios também foram incrivelmente alçados do poço ao trono [23].
Portanto, ao alcançarem o relevante status de normas jurídicas e repousarem no privilegiado patamar constitucional, os princípios enfim se libertaram daquela velha idéia de que detinham apenas valia ética, passando a ostentar mesmo plena vinculatividade jurídica [24]. Em razão disso, a teoria do direito precisou estabelecer a hoje tão divulgada distinção dogmática entre regras e princípios, enquanto espécies do gênero norma. Por via de conseqüência, a Constituição atual, prenhe de valores, passou a ser vista como um sistema aberto de princípios e regras, no qual as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central [25].
A distinção entre regras e princípios é ponto nuclear do pós-positivismo, produto da inegável influência exercida por Ronald Dworkin e Robert Alexy na atual quadra do pensamento jurídico, cujas idéias passaram a ser amplamente divulgadas no Brasil a partir de Paulo Bonavides, Eros Grau e Luís Roberto Barroso. Tal disseminação ocasionou um verdadeiro fervilhar científico no direito constitucional pátrio, movimento esse ainda em voga e que tem redundado em uma fértil produção intelectual acerca da matéria.
A respeito de tal distinção, BARCELLOS faz didática compilação dos sete critérios mais comumente propostos pela doutrina para esse fim, o que por certo nos oferece uma boa noção geral dessa tão importante questão da teoria do direito contemporânea, in verbis:
"(a) O conteúdo. Os princípios estão mais próximos da idéia de valor e de direito. Eles formam uma exigência da justiça, da eqüidade ou da moralidade, ao passo que as regras têm um conteúdo diversificado e não necessariamente moral. (...) (b) Origem e validade. A validade dos princípios decorre de seu próprio conteúdo, ao passo que as regras derivam de outras regras ou dos princípios. (...) (c) Compromisso histórico. Os princípios são para muitos (ainda que não todos), em maior ou menor medida, universais, absolutos, objetivos e permanentes, ao passo que as regras caracterizam-se de forma bastante evidente pela contingência e relatividade de seus conteúdos, dependendo do tempo e lugar. (d) Função no ordenamento. Os princípios têm uma função explicadora e justificadora em relação às regras. (...) (e) Estrutura lingüística. Os princípios são mais abstratos que as regras, em geral não descrevem as condições necessárias para sua aplicação e, por isso mesmo, aplicam-se a um número indeterminado de situações. Em relação às regras, diferentemente, é possível identificar, com maior ou menor trabalho, suas hipóteses de aplicação. (f) Esforço interpretativo exigido. Os princípios exigem uma atividade argumentativa muito mais intensa, não apenas para precisar seu sentido, como também para inferir a solução que ele propõe para o caso, ao passo que as regras demandam apenas uma aplicabilidade, na expressão de Jossef Esser, ‘burocrática e técnica’. (g) Aplicação. As regras têm estrutura biunívoca, aplicando-se de acordo com o modelo do "tudo ou nada", popularizado por Ronald Dworkin. Isto é, dado seu substrato fático típico, as regras só admitem duas espécies de situação: ou são válidas e se aplicam ou não se aplicam por inválidas. Uma regra vale ou não vale juridicamente. Não são admitidas gradações. Como registra Robert Alexy, ao contrário das regras, os princípios determinam que algo seja realizado na maior medida possível, admitindo uma aplicação mais ou menos ampla de acordo com as possibilidades físicas e jurídicas existentes. Estes limites jurídicos, que podem restringir a otimização de um princípio, são (i) regras que o excepcionam em algum ponto e (ii) outros princípios opostos que procuram igualmente maximizar-se, daí a necessidade eventual de ponderá-los. Desenvolvendo esse critério de distinção, Alexy denomina as regras de comando de definição e os princípios de comandos de otimização" [26].
Essa estruturação do sistema jurídico em regras e princípios é sábia, constituindo-se uma excelente construção teórica. Cuida-se de uma verdadeira formulação salomônica, porquanto, sem desprezar a lei, permite uma benfazeja oxigenação axiológica do sistema, viabilizada pela imanente plasticidade dos princípios. Fica superada, assim, a tradicional dicotomia jusnaturalismo x juspositivismo [27].
Ressaltamos, porém, para que se repila qualquer euforia prejudicial, que o sistema jurídico ideal há de ser aquele erigido levando em conta uma distribuição equilibrada entre regras e princípios, "nos quais as regras desempenham o papel referente à segurança jurídica - previsibilidade e objetividade das condutas - e os princípios, com sua flexibilidade, dão margem à realização da justiça do caso concreto" [28]. Como se vê, o enlace jurídico entre regras e princípios é um bom exemplo de casamento perfeito.
A visão pós-positivista também acarreta mudanças na área da interpretação constitucional. Nesse particular, leciona BARROSO:
"A interpretação jurídica tradicional desenvolveu-se sobre duas grandes premissas: (i) quanto ao papel da norma, cabe a ela oferecer, no seu relato abstrato, a solução para os problemas jurídicos; (ii) quanto ao papel do juiz, cabe a ele identificar, no ordenamento jurídico, a norma aplicável ao problema a ser resolvido, revelando a solução nela contida. Vale dizer: a resposta para os problemas está integralmente no sistema jurídico e o intérprete desempenha uma função técnica de conhecimento, de formulação de juízos de fato. No modelo convencional, as normas são percebidas como regras, enunciados descritivos de condutas a serem seguidas, aplicáveis mediante subsunção. Com o avanço do direito constitucional, as premissas ideológicas sobre as quais se erigiu o sistema de interpretação tradicional deixaram de ser integralmente satisfatórias. Assim: (i) quanto ao papel da norma, verificou-se que a solução dos problemas jurídicos nem sempre se encontra no relato abstrato do texto normativo. Muitas vezes só é possível produzir a resposta constitucionalmente adequada à luz do problema, dos fatos relevantes, analisados topicamente; (ii) quanto ao papel do juiz, já não lhe caberá apenas uma função de conhecimento, voltado para revelar a solução contida no enunciado normativo. O intérprete torna-se co-participante do processo de criação do direito, completando o trabalho do legislador, ao fazer valorações de sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre soluções possíveis" [29].
Essa hermenêutica diferenciada vai suscitar, portanto, toda uma gama de novas discussões na arena da interpretação constitucional: [30] concreção [31], colisão de princípios constitucionais [32], ponderação [33], argumentação [34] etc.
SOUZA NETO nos brinda com um interessante cotejo científico entre os paradigmas positivista e pós-positivista, lavrando-o da seguinte forma, verbis:
"... o paradigma liberal-positivista contém em si uma 1) teoria da norma constitucional, segundo a qual a) lei e constituição se identificam, b) a norma constitucional possui uma textura fechada, e c) a constituição é um sistema coerente e completo; 2) uma teoria da decisão, segundo a qual a) a aplicação da norma constitucional se identifica com a aplicação da norma infraconstitucional, b) não há que se falar em ato de decisão, mas simplesmente de cognição, já que o ato jurisdicional se esgota na aplicação de uma vontade pré-constituída, c) o magistrado é capaz de, monologicamente, fazer uma leitura racional do texto normativo, sem a interferência de seus valores e interesses pessoais; 3) uma teoria da democracia segundo a qual a) a vontade estatal deve ser formulada pelo órgão que foi legitimado para tanto através do voto popular, o parlamento, e b) o magistrado deve se ater ao disposto no texto legal, senão estará usurpando a vontade popular. Do mesmo modo, o paradigma pós-positivista já sinaliza para a consolidação de certas características gerais que se encontram na obra da maioria dos autores. Assim é que o paradigma pós-positivista, 1) no campo da teoria da norma constitucional, enfatiza, de forma mais ou menos homogênea, a) a presença dos princípios no ordenamento constitucional, e não só das regras jurídicas, b) a estrutura aberta e fragmentada da constituição; 2) no campo da teoria da decisão, investe na a) reinserção da razão prática na metodologia jurídica, rejeitando a perspectiva positivista de que somente a observação pode ser racional, b) propõe uma racionalidade dialógica, centrada não no sujeito, mas no processo argumentativo, que c) vincula a correção das decisões judiciais ao teste do debate público; 3) no âmbito da teoria democrática propugna a) pelo caráter procedimental do processo democrático e b) pela possibilidade de limitação do princípio majoritário em nome da preservação da própria democracia" [35].
Como se percebe, a peleja "positivismo" versus "pós-positivismo" é renhida, já perdura por vários rounds, sendo cheia de meandros teóricos e ainda assentada em um terreno extremamente bombardeado por críticas [36]. De todo modo, ousamos também estabelecer - reconhecidamente inspirados em SOUZA NETO - alguns dos traços que servem para sintetizar o profundo contraste teórico entre os paradigmas positivista e pós-positivista.
Com efeito, no positivismo: i) o intérprete há de ter uma postura neutra, apenas extraindo o sentido já embutido no enunciado legal; ii) o sistema jurídico é visto como fechado/completo, marcando-se pela unidisciplinariedade; iii) dá-se a supremacia da lei (foco no texto legal -prevalência da lex), destacando-se a normatividade das regras; iv) trabalha-se no âmbito do ser/dever ser; v) a interpretação se dá in abstracto, ocorrendo a inconstitucionalidade da norma, esta encarada como objeto da interpretação (o preceito normativo é o ponto de chegada - o fato concreto não é valorizado); vi) reina na hermenêutica o método subsuntivo/silogístico (ciência), com predomínio do valor segurança; vii) há rigidez na separação funcional do poder; viii) o papel do juiz é passivo, na função de mero reprodutor da lei (o juiz descreve a realidade).
Já no pós-positivismo: i) o intérprete há de ter uma postura construtiva, atribuindo sentido ao enunciado legal; ii) o sistema jurídico é visto como aberto/complexo, marcando-se pela interdisciplinariedade; iii) dá-se a supremacia da Constituição (foco no contexto fático-jurídico -prevalência do jus), destacando-se a normatividade dos princípios; iv) trabalha-se no âmbito do poder ser [37]; v) a interpretação se dá in concreto, ocorrendo a possibilidade de inconstitucionalidade dos efeitos da norma, esta encarada como resultado da interpretação (o preceito normativo é o ponto de partida - o fato concreto é valorizado) [38]; vi) reina na hermenêutica o método ponderativo (prudência), com predomínio do valor justiça; vii) há flexibilidade na separação funcional do poder; viii) o papel do juiz é ativo, na função de verdadeiro produtor do direito (o juiz transforma a realidade) [39].