Não é raro, no entanto, encontrarmos decisões em direção oposta,
tomando por fundamento o postulado por Montesquieu a fim de se adotar uma
atitude de autocontenção. O exemplo vem do Superior Tribunal de Justiça, por
ocasião do julgamento do Recurso Especial n.º 20.798-1/RO, que tratava da
descriminalização do art. 58 (jogo do bicho), da Lei das Contravenções
Penais, pelo seu desuso e pela tolerância da sociedade, no qual o Rel. Min.
José Cândido de Carvalho Filho pontuou: "A descriminalização é tarefa
da lei e não de seu desuso afrontoso. A função do juiz, em qualquer
julgamento, é a de portar-se de acordo com o que disoõe a legislação
vigente. Segundo a concepção de MONTESQUIEU, o juiz não é senão a boca da
lei. Advirta-se para o fato de que ela continua sendo a fonte primacial do
direito. Obra do legislador, só por ele pode ser revogada por outra lei, nunca
por iniciativa do juiz, cuja função primordial é a de aplicá-la,
regularmente" (STJ, Resp 20.798/RO, 6ª Turma, Rel. Min. José Cândido de
Carvalho Filho, DJ 28.09.1992).
"A superação do positivismo jurídico é indispensável à
construção de uma hermenêutica material no direito que permita transpareçam
e se evidenciem is interesses em questão, demandando, inequivocamente,
opções, que supõem juízos valorativos sobre os dados de fato e de direito
das situações em que se manifestam. Nessa perspectiva o trabalho do jurista e
do juiz precisa ser criativo" (AZEVEDO, 1989, p. 73-74). E prossegue o
autor: "Se tiver se preparado para ser criativo, não precisará esperar
passivamente a modificação das leis para exercer na sua plenitude suas
funções (...)" (id. Ibid.).
Recentemente, observou-se um maior debate acerca da função do
Judiciário nos casos da denominada Lei Ficha Limpa e da união homoafetiva,
para ficarmos apenas nestes.
Para Streck, a contraposição entre democracia e
constitucionalismo/jurisdição constitucional (ou Direito) é um perigoso
reducionismo. Para o autor, "a afirmação da existência de uma ‘tensão’
irreconciliável entre constitucionalismo e democracia é um dos mitos centrais
do pensamento político moderno, que entendo deva ser desmi(s)tificado" (STRECK,
2009b, p. 19). Segundo ele, "se existir alguma contraposição, esta ocorre
necessariamente entre democracia constitucional e democracia majoritária,
questão que vem abordada em autores como Dworkin, para quem a democracia
constitucional pressupõe uma teoria de direitos fundamentais que tenham
exatamente a função de colocar-se como limites/freios às maiorias eventuais"
(Id., Ibid., grifos no original).
Conforme Barroso (2010, p. 32) judicialização "não se confunde
com a usurpação da esfera política por autoridades judiciárias, mas traduz o
fato de que muitas matérias controvertidas se inserem no âmbito de alcance da
Constituição e podem ser convertidas em postulações de direitos subjetivos,
em pretensões coletivas ou em processos objetivos".
Santos entende que o exercício ativista da jurisdição reforça as
"bases democráticas da formação da vontade social expressa pelo
Estado" (2007, p. 278). Prossegue o autor afirmando que a denominada
"jurisprudência dos valores" encontra amparo em nosso sistema
constitucional e que eventual colisão de princípio fundamentais resolver-se-ia
pela ponderação. Segundo Barroso (2009b, p. 332), "a denominada ponderação
de valores ou ponderação de interesses é a técnica pela qual se
procura estabelecer o peso relativo de cada um dos princípios contrapostos.
Como não existe um critério abstrato que imponha a supremacia de um sobre o
outro, deve-se, à vista do caso concreto, fazer concessões recíprocas, de
modo a produzir um resultado socialmente desejável, sacrificando o mínimo de
cada um dos princípios ou direitos fundamentais em oposição". A
ponderação, como bem salienta Streck (2009b), nada mais faz do que repristinar
a discricionariedade positivista nos "casos difíceis", dizendo que a
proporcionalidade deve ser compreendida como coerência e integridade e não
como juízo de equidade ou de ponderação. Nesse sentido, é inconcebível ma
jurisdição com certo grau de discricionariedade ser democrática.
É certo que tais decisionismos serão facilitados em virtude de uma
abordagem positivista do caso examinado. Veja-se que em Hart (O conceito de
Direito), assim como em Kelsen (Teoria Pura do Direito), o
preenchimento da textura aberta ou vaga da norma dar-se-ia discricionariamente.
Nas palavras do segundo positivista, por um "ato de vontade" (KELSEN,
1998, p. 394). Não muito diverso, o entendimento de Herbert Hart, nas palavras
de Moro (2004), possibilita que naqueles casos denominados difíceis (hard
cases), os quais resultariam propriamente da "textura aberta" da
linguagem humana (conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas gerais etc.),
o fato estaria na área de "penumbra" do conceito, dando azo à
discricionariedade. Segundo o autor, em posição semelhante está Kelsen,
quando equipara a norma jurídica geral a uma simples "moldura" dentro
da qual haveria de ser produzida a norma jurídica individual, possibilitando,
assim, a existência de várias possibilidades de aplicação. Cf. KELSEN, Hans.
Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 390-391.
Ver, do autor: STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido
conforme minha consciência? 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2010.
Essa mudança de paradigmas dá início, segundo Moraes (2003), à
crise do sistema representativo. Segundo o autor, "diferentemente do Estado
Liberal, em que o Poder Legislativo, enquanto detentor da vontade geral do povo,
predominava entre os demais poderes, a partir do Estado Social, o Poder
Executivo vem assumindo, cada vez mais, o papel de grande empreendedor das
políticas governamentais, relegando a segundo plano o Parlamento e,
consequentemente, os partidos políticos, e fazendo surgir, com mais força e
vitalidade, por absoluta necessidade prática, outros atores da competição
política. Assim, a idéia básica do Estado Liberal, em que a crença da
soberania popular e da representação política permaneciam intocáveis, como
instrumentos infalíveis da participação da sociedade no poder, foi afastada
pela chegada do Estado Social, demonstrando, claramente, que, diante das grandes
transformações socioeconômicas, os representantes do povo muito pouco
decidem, e os que decidem carecem de grande representatividade política" (Id.,
Ibid., p. 47).
Para Bonavides (2004, p. 368), o Estado Social, "em razão de
abalos ideológicos e pressões não menos graves de interesses contraditórios
ou hostis, conducentes a enfraquecer a eficácia e a juridicidade dos direitos
sociais na esfera objetiva das concretizações, tem permanecido na maior parte
de seus postulados constitucionais uma simples utopia".
Oportunas as palavras de Mello (2006), para quem a Constituição
Brasileira de 1988 representa perfeitamente o ideário do Estado Social, que,
todavia, entre nós, jamais passou do papel para a realidade. Trazendo alguns
exemplos, o autor cita ainda alguns artigos: arts. 1º, III e IV, 3º, 3º, I,
III e IV, 7º, II e IV, 170, caput, e incisos III, VII e VIII, 184, 186,
IV, 191, 193 e 194. Por tudo isso é que Bonavides sustenta que a CF/88 é
"basicamente em muitas de suas dimensões essenciais uma Constituição do
Estado social" (2004, p. 371). Para o constitucionalista, "os
problemas constitucionais referentes a relações de poderes e exercício de
direitos subjetivos têm que ser examinados e resolvidos à luz dos conceitos
derivados daquela modalidade de ordenamento. Uma coisa é a Constituição do
Estado liberal, outra a Constituição do Estado social. A primeira é uma
Constituição antigoverno e anti-Estado; a segunda uma Constituição de
valores refratários ao individualismo no Direito e ao absolutismo no
Poder". (Id., Ibid.)
Na edição de 2004 de seu Curso de Direito Constitucional, alertava o
Professor Paulo Bonavides: "poderosas forças coligadas numa conspiração
política contra o regime constitucional de 1988 intentam apoderar-se do
aparelho estatal para introduzir retrocessos na lei maior e revogar importantes
avanços sociais, fazendo assim um antagonismo fatal entre o Estado e a
Sociedade. Não resta dúvida que em determinados círculos das elites
vinculadas a lideranças reacionárias está sendo programada a destruição do
Estado social brasileiro. Se isso acontecer será a perda de mais de cinquenta
anos de esforços constitucionais para mitigar o quadro de injustiça provocado
por uma desigualdade social que assombra o mundo e humilha a consciência desta
Nação. Mas não acontecerá, se o Estado social for a própria Sociedade
brasileira concentrada num pensamento de união e apoio a valores igualitários
e humanistas que legitimam a presente Constituição do Brasil" (BONAVIDES,
2004, p. 371). Ao olhar atento de Nalini (2010, p. 978), "(...) [a] ideia
de constituição é apontada como entrave ao funcionamento do mercado, como
freio de competitividade dos agentes econômicos e como obstáculo à expansão
da economia. Para essa parcela do pensamento pátrio, a Constituição não
passa de um conceito meramente procedimental. Sua insuficiência e
vulnerabilidade seria comprovável mediante constatação do número de emendas
a que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi
submetida" (p. 978).
Constata-se tal tentativa na criação, por exemplo, das súmulas
vinculantes, repercussão geral, uniformização de jurisprudência.
Saliente-se, por oportuno, que norma não coincide com texto.
Segundo Eros Grau, segundo o qual "a norma encontra-se, em estado de
potência, involucrada no texto. Mas ela se encontra assim nele involucrada
apenas parcialmente, porque os fatos também a determinam (..) a norma é
produzida, pelo intérprete, não apenas a partir de elementos textuais que se
desprendem do texto (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do
caso ao qual será aplicada, isto é, a partir de elementos da realidade (mundo
do ser). Interpreta-se também o caso, necessariamente, além dos textos
e da realidade – no momento histórico no qual se opera a interpretação
– em cujo texto serão eles aplicados" (2009, p. 32). Ainda segundo Eros
Grau: "A interpretação do direito é atividade voltada ao discernimento
de enunciados semânticos veiculados por preceitos (disposições,
textos). O intérprete desvencilha a norma do seu invólucro (o texto);
neste sentido, o intérprete produz a norma" (GRAU, 1996, p. 102).
Conforme Didier Jr. (2010, p. 38), no Brasil já "inúmeras
codificações legislativas (civil law) e, ao mesmo tempo, constrói-se
um sistema de valorização dos precedentes judiciais extremamente complexo
(súmula vinculante, súmula impeditiva, julgamento modelo para causas
repetitivas etc.[...]), de óbvia inspiração no common law. Cf., ainda,
THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Breves
considerações sobre a politização do Judiciário e sobre o panorama
de aplicação no direito brasileiro – Análise da convergência entre o civil
law e o common law e dos problemas da padronização decisória.
Revista de Processo. São Paulo, ano 35, n. 189, nov. 2010, p. 9-52.
Streck salienta, por sua vez, que "[é] possível constatar, sem muita
dificuldade, que dia a dia encaminhamo-nos para um ‘hibridismo-sistêmico’,
com a importação de mecanismos do sistema da common law (Súmulas
vinculante, mecanismos que de filtragem recursal, como os previstos nas Lei
8.038 e 9.756) e do Direito tedesco (...)" (2002, p. 23).
Abordando a diversidade de litigiosidades no Brasil, Theodoro Júnior,
Nunes e Bahia alertam para o fato que as reformas processuais têm se
concentrado na tentativa de uniformização da jurisprudência. Nesse sentido, o
objetivo é "estabelecer ‘standards interpretativos’ a partir do
julgamento de alguns casos: um Tribunal de ‘maior hierarquia’, diante da
multiplicidade de casos, os julgaria abstraindo-se de suas especificidades e
tomando-lhes apenas o ‘tema’ a ‘tese’ subjacente. Definida a tese, todos
os demais casos serão julgados com base no que foi pré-determinado; para isso,
as especificidades destes novos casos também serão desconsideradas para que se
concentre apenas na ‘tese’ que lhes torna idênticos aos anteriores" (THEODORO
JÚNIOR, NUNES E BAHIA, 2010, p. 24-25). Tomando por base o art. 285-A, do CPC,
a proposta não escapa à crítica de Streck (2009b, p. 203): "Afinal, o
que são ‘casos idênticos’? Se são ‘casos’, não podem ser somente ‘de
direito’, pois não? Pois a figura do ‘caso idêntico’ só ocorreria se as
partes fossem as mesmas, o pedido e a causa de pedir fossem os mesmos. Ou seja,
se estivéssemos diante do mesmo caso já submetido à apreciação do
Judiciário, e não somente daquele juízo. Então estaríamos diante de
litispendência ou de coisa julgada!"
Para Streck (2009b, p. 7), o "pós-positivismo deve ser entendido
com o sentido de superação e não (mera) continuidade ou complementariedade.
Pós-positivismo será compreendido, nesse contexto, no interior do paradigma do
Estado Democrático de Direito instituído pelo constitucionalismo
compromissório e transformador social surgido no segundo pós-guerra, que é
aquilo que vem sendo denominado de neoconstitucionalismo".
"O grande dilema contemporâneo será, assim, o de construir as
condições para evitar que a justiça constitucional (ou o poder dos juízes)
se sobreponha ao próprio direito. Parece evidente lembrar que o direito não
é –e não pode ser – aquilo que os tribunais dizem que é. E também
parece evidente que o constitucionalismo não é incompatível com a
democracia" (STRECK, 2009, p. 339-340).
Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João
Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 390-391.
O enfrentamento do texto perante o caso concreto, que resulta na
produção da norma, implica na constante (re)criação do Direito. Conforme
Cunha (2005, p. 325), "considerando concomitantemente o caráter social e
normativo do Direito, pode-se afirmar que o contexto de aplicação da norma
jurídica é constituído por uma dupla realidade: 1) a realidade social, pois,
se de um lado o direito é condicionador da realidade, por outro lado ele é
condicionado por ela numa inesgotável tensão dialética; 2) a realidade
fática do caso concreto, pois os agentes de uma situação juridicamente
relevante sempre trazem particularidades que fixam uma singularidade que deve
ser considerada pelo intérprete". Daí ser inviável hermeneuticamente
admitir a existência de casos idênticos.
Nas palavras do autor, existe sempre um sentido que nos é antecipado
(2009b, p. 163).
Professor do Curso de Direito da Universidade José do Rosário Vellano (UNIFENAS). Mestre em Gestão Pública e Sociedade pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL/MG). Bacharel em Direito pela UNIFENAS. Advogado.
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
LOPES, Nairo José Borges. Uma breve (re)visão da jurisdição no marco do Estado Democrático de Direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3007, 25 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20061. Acesso em: 23 dez. 2024.