3 A CONVENÇÃO 158 DA OIT
Não há como se falar na proteção da relação de emprego contra despedidas desmotivadas sem fazer referência à Convenção nº 158 da Organização Internacional do Trabalho. Esta Organização, em 1982, regulamentou o término da relação de trabalho por iniciativa do empregador, levando a discussão quanto à limitação do poder potestativo da empresa no ato de encerrar o pacto laboral a todos os Estados Membros da Organização.
Neste diploma, restou determinado, em seu artigo 4º, que "não se dará término à relação de trabalho de um trabalhador a menos que exista para isso uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço". Assim, em nível internacional, reconheceu-se a impossibilidade de dispensa imotivada do trabalhador, nos moldes do defendido nas linhas acima.
O Brasil, em 1996, ratificou esta Convenção e aprovou o Decreto Legislativo nº 1.855, em abril de 1996, a partir de quando esta Convenção começou a ter vigência no território brasileiro. No entanto, não houve entendimento pacificado quanto aos efeitos do referido diploma internacional, uma vez que a Constituição Federal, em relação à reserva de lei prevista no inciso I do artigo 7º da Carta, determinara a natureza de lei complementar. O decreto legislativo, portanto, seria insuficiente para satisfazer a exigência constitucional.
Após a edição do mencionado Decreto, muito se discutiu a respeito da "inovação" legislativa trazida pela Convenção. Infelizmente, as discussões se cingiram mais ao âmbito ideológico que estritamente técnico-jurídico, o que culminou com a edição do Decreto Executivo nº 2.100, de dezembro de 1996, tornando pública a denúncia, pelo Brasil, da Convenção 158. Verifica-se, então, que esta vigorou no país apenas por oito meses.
Ocorre que essa denúncia é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.625, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG e pela Central Única dos Trabalhadores – CUT. O mérito da ADI se refere à inconstitucionalidade do decreto do Presidente da República de denúncia, uma vez que a tese defendida é a de que, por se tratar de um decreto normativo, incide na hipótese o artigo 49, inciso I, da Constituição.
Defende-se que, como é necessária a edição de Decreto Legislativo, de competência do Congresso Nacional, para a validação e eficácia do diploma internacional em solo brasileiro, para eventual denúncia do mesmo diploma, seria necessária também sua apreciação pelo Congresso Nacional, sendo insuficiente, portanto, decreto do Presidente da República.
Explica Marthius Sávio Lobato:
Temos assim que, ao contrário dos tratados-contratos, que são aprovados ou mesmo denunciados por competência exclusiva do Presidente da República, os tratados-normativos, as Convenções da OIT, devem, para sua aprovação, ser primeiramente submetidos ao Congresso Nacional. Sendo um ato jurídico complexo, a sua ratificação, já que depende de ser primeiro aprovado pelo Congresso Nacional, a sua denúncia, no mesmo sentido deve, obrigatoriamente, ser submetida e aprovada pelo Congresso Nacional. (LOBATO, 2006, pág. 141)
Até o momento, este é o entendimento que tem se sagrado vencedor no Supremo Tribunal Federal. No ano de 2003, o ministro Maurício Correia (relator), acompanhado pelo ministro Carlos Britto, votou pela procedência em parte do pedido, determinando que a denúncia insculpida no Decreto 2.100, de 1996, condicionar-se-ia a referendo pelo Congresso Nacional. Em 2004, o ministro Nelson Jobim votou pela improcedência do pedido. Em 2009, o ministro Joaquim Barbosa votou pela total procedência do pedido, sendo que desde esse mesmo ano, os autos estão com vistas à ministra Ellen Gracie.
Não obstante a importante discussão travada nos autos da Ação Direta de Constitucionalidade em comento, cujo desfecho certamente trará relevantes contribuições quanto ao regramento de ratificação e denúncia de diplomas internacionais, urge destacar que, conforme acima explanado, ainda que não vigente no país a Convenção nº 158, é de se dar plena eficácia à proteção da relação de emprego contra a despedida arbitrária e sem justa causa, proibindo-se, desta feita, a denúncia vazia do contrato de trabalho.
Isso porque, mesmo sem a lei complementar mencionada no dispositivo constitucional citado e ainda que se considere inaplicável a Convenção nº 158, ainda assim o ordenamento jurídico brasileiro dispõe de outros princípios (claramente dotados de normatividade e, por conseguinte, de coercitividade) que fundamentam a impossibilidade de se admitir amplo conteúdo ao direito potestativo do empregador quanto ao término do pacto laboral.
É indubitável que a reincorporação da Convenção nº 158 ao direito brasileiro fortalecerá o direito à proteção contra dispensas imotivadas. No entanto, reitera-se, o fato de a eficácia da mencionada Convenção estar sub judice não chancela a possibilidade de o empregador, sem qualquer justificativa, pôr fim ao contrato de emprego.
Portanto, independentemente da Convenção ou da lei complementar, o inciso I do artigo 7º constitucional tem eficácia jurídica e deve ser respeitado, não se aceitando, desde a promulgação da Carta, a dispensa imotivada de empregados.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do estudo aqui delineado, verifica-se que, conquanto a força normativa da Constituição seja a mola propulsora e principal fundamento para profundas análises doutrinárias e jurisprudenciais, ainda assim se percebem inconsistências em relação ao que efetivamente estabelece a Constituição e a sua vivência, sua concretização na vida cotidiana de milhares de brasileiros trabalhadores.
Exemplo dessa contradição é, de um lado, a valorização do trabalho humano prevista pela Carta e, de outro, a esterilidade conferida ao inciso I do artigo 7º da CF. Talvez pior do que se perceber que a doutrina e jurisprudência dominantes encaram este dispositivo constitucional como estéril e inapto para produção de efeitos é concluir que ambas lhe dão interpretação absolutamente reversa: embora a previsão constitucional seja no sentido de coibir a despedida arbitrária ou sem justa causa (com expressa previsão do direito fundamental à proteção da relação de emprego), doutrina e jurisprudência têm interpretado a inexistência de lei complementar como fator que autoriza, sem receio, a denúncia vazia do contrato de trabalho.
Ora, é uma verdadeira violação constitucional afirmar que o inciso I do artigo 7º da Constituição da República, por ainda inexistir a lei complementar mencionada, alberga a dispensa sem justa causa ou arbitrária.
É o momento de olhar a Constituição e encarar o desafio por ela proposto de compreender e fazer valer os direitos nela previstos. É chegada a hora, portanto, de como se referem Menelick de Carvalho Netto e Guilherme Scotti, de, quanto aos direitos fundamentais, "tomá-los como algo permanentemente aberto, ver a própria Constituição formal como um processo permanente, e portanto mutável, de afirmação da cidadania." (CARVALHO NETTO e SCOTTI, 2011, pág. 43).
A proibição de dispensa arbitrária ou sem justa causa não implica a renovação ou reinserção da estabilidade empregatícia geral no sistema brasileiro. A proteção da relação de emprego contra a denúncia vazia do pacto laboral não significa engessamento das relações estabelecidas entre empregado e empregador. Significa sim dar concretude aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da não discriminação e da valorização do trabalho humano, especialmente sob o enfoque do princípio da continuidade da relação de emprego. É possibilitar que numa relação tão desigual e desequilibrada, como o é a relação de emprego, o direito potestativo do empregador em pôr fim ao pacto, quando não configuradas as justas causas celetistas, seja transparente e exale a boa-fé, que deve reger as condutas dos dois lados contratantes, empregado e empregador. Integra o conteúdo normativo da função social da empresa, portanto, a proibição de dispensas desmotivadas.
A fim de se não negar vigência ao dispositivo constitucional e, assim, conforme vontade exposta na Carta, repelir a denúncia vazia do contrato de trabalho, uma saída seria utilizar-se, por analogia, o regramento legal dirigido ao membro da CIPA aos demais trabalhadores. Dessa forma, enquanto não editada a lei complementar mencionado no inciso I do artigo 7º, a qual poderá prever fatores legitimadores da ruptura do pacto laboral sem subsunção às hipóteses celetistas de justa causa, o trabalhador brasileiro somente poderá ser demitido caso exista motivo disciplinar, técnico, econômico ou financeiro. [02]
Defender a proteção do trabalhador contra a denúncia vazia de seu contrato de emprego não significa afetar a livre iniciativa do empregador, no sentido de melhor gerir seu empreendimento, ou reduzir seu poder empregatício, especialmente no que tange ao seu poder diretivo. É sim dar novo significado a esse poder, rechaçando qualquer vinculação a um abuso de direito, e reaproximando a realidade do fim de uma relação empregatícia aos pilares do Estado Democrático de Direito.
Por fim, fica a lição de Maurício Godinho Delgado:
À medida que Democracia consiste na atribuição de poder a também quem é destituído de riqueza – ao contrário das sociedades estritamente excludentes de antes do século XIX, na História -, o trabalho assume o caráter de ser o mais relevante meio garantidor de um mínimo de poder social à grande massa da população, que é destituída de riqueza e de outros meios lícitos de seu alcance. Percebeu, desse modo, com sabedoria a Constituição a falácia de instituir a Democracia sem um corresponde sistema econômico-social valorizador do trabalho humano. (DELGADO
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOCORNY, Leonardo Raupp. A valorização do trabalho humano no Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003.
CARVALHO NETTO, Menelick de e SCOTTI, Guilherme. Os Direitos Fundamentais e a (In)Certeza do Direito. Belo Horizonte; Editora Forum, 2011.
DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Responsabilidade Civil no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 3ª edição, 2008.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Editora LTr, 7ª edição, 2008.
________________________. Direitos Fundamentais na Relação de Trabalho. In: Revista do Ministério Público do Trabalho, Brasília. Ano XVI, nº 31, março de 2006
LOBATO, Marthius Sávio Cavalcante. O valor constitucional para a efetividade dos direitos sociais nas relações de trabalho. São Paulo: Editora LTr, 2006.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocência Mártires; e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 2ª edição, 2008.
MENEZES, Mauro de Azevedo. Palestra proferida no I Congresso de Direito Constitucional e do Trabalho realizado pela Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, em 10 de setembro de2009.
OLIVEIRA, Christiana D’Arc Damasceno. (O) Direito do Trabalho Contemporâneo – Efetividade dos Direitos Fundamentais e Dignidade da Pessoa Humana no Mundo do Trabalho. São Paulo: Editora LTr, 2010.
Notas
-
Artigo 7º São direitos dos
trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua
condição social: I – relação de emprego protegida contra despedida
arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá
indenização compensatória, dentre outros direitos.
- Artigo 165 da CLT: "Os titulares da representação dos empregados nas CIPAs não poderão sofrer despedida arbitrária, entendendo-se como tal a que não se fundar em motivo disciplinar, técnico, econômico ou financeiro"