SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 HISTÓRICO E EVOLUÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS; 2.1 A FAMÍLIA NO LIBERALISMO: CONSTITUIÇÕES DE 1824 E 1891; 2.2 A FAMÍLIA NO CONSTITUCIONALISMO SOCIAL: CONSTITUIÇÕES DE 1934, 1937 E 1946; 2.3 A FAMÍLIA NO REGIME MILITAR: CONSTITUIÇÃO DE 1967 E EMENDA CONSTITUCIONAL DE 1969; 2.4 A FAMÍLIA APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988; 3 O PLURALISMO FAMILIAR: AS NOVAS ENTIDADES FAMILIARES DO ARTIGO 226 DA CONSTITUIÇÃO DE 1988; 4 CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo promover um estudo acerca do pluralismo familiar, consagrado no artigo 226 da Constituição Federal de 1988, o qual vislumbra a possibilidade de novos arranjos familiares.
Para tanto, abordaremos o instituto da família, de forma a compreender sua evolução e transformação no decorrer do tempo, observando sua inserção no contexto das constituições brasileiras, bem como a concepção contemporânea de família.
A sociedade vive em constantes mudanças, advindas da atualização de valores, que nada mais são que reflexos de cada momento histórico, político, econômico e social. Assim, analisaremos as Constituições brasileiras, desde a de 1824, até a de 1988.
O pluralismo de entidades familiares presente na Constituição de 1988, em seu artigo 226, foi uma grande inovação no campo do direito de família, porém, ainda se encontra cercado de perplexidades, quanto a dois pontos: trata-se de enumeração ou exemplificação?
A resposta deste questionamento é de extrema relevância jurídica, pois é através dela, com base na constitucionalização do direito de família, que podemos verificar a inclusão de modelos familiares implícitos à proteção constitucional.
2 HISTÓRICO E EVOLUÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS
2.1 A FAMÍLIA NO LIBERALISMO: CONSTITUIÇÕES DE 1824 E 1891
A única menção que a Constituição de 1824 fazia à família dizia respeito exclusivamente à Família Imperial e, só o fez porque importava na organização da forma de governo, que era monárquico hereditário. No liberalismo da época não se admitia a intervenção do Estado nestes aspectos do indivíduo (NAHAS, 2008, p. 65).
A explicação do motivo pelo qual a Constituição de 1824 tratou da família imperial é que a sua regulamentação não ocorreu enquanto estrutura familiar, mas sim, como forma de transmissão hereditária do Poder Imperial. A referida Constituição fixava as regras de sucessão do poder que era feita através da dinastia, tutelava a família imperial enquanto dinastia: poder hereditário e vitalício (OLIVEIRA, 2002, p. 32).
Assim, pelo seu caráter não intervencionista, a Constituição de 1824 não destinou regras sobre a família brasileira, sua forma de constituição, enfim, sobre sua proteção, caracterizando o pensamento individualista predominante da época, enquadrando-se perfeitamente no modelo do liberalismo clássico (OLIVEIRA, 2002, p. 32).
A Constituição de 1891 foi a primeira do Brasil República.
Segundo Bonavides (2003, p. 364): "Com o advento da República, o Brasil ingressou na segunda época constitucional de sua história. Mudou-se o eixo dos valores e princípios de organização formal do poder".
Entre os detentores do poder que implantaram o regime republicano, havia sérias divergências na forma de conduzir a administração e os destinos do país e duas correntes de pensamentos se manifestavam. Uma das correntes, capitaneada por Ruy Barbosa, defendia uma república democrática representativa, e, outra aspirava a um regime ditatorial-sociocrático, afinada com o pensamento positivista de Augusto Comte, mas, proclamada a República, não existiam dúvidas de que o posicionamento de Ruy Barbosa, com suas ideias sobre o casamento civil, acabaria por prevalecer na futura reforma constitucional (OLIVEIRA, 2002, p. 33-34).
A nova Constituição se esforça para extinguir todos os vínculos de ligação com o império, tomando medidas como a destituição dos títulos de nobreza e a separação expressa do Estado com a Igreja, e, é neste aspecto que aparece a única menção sobre instituto familiar: o casamento. Em seu artigo 72, §4º, previa que "A República somente reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita", sem fazer menção à celebração religiosa (NAHAS, 2008, p.66).
O artigo 72 foi inserido na Constituição em razão da separação do Estado e a Igreja e retirou da Igreja Católica o direito ao controle do ato jurídico válido do casamento, pois no direito constitucional imperial, o casamento válido era aquele celebrado perante o credo religioso (OLIVEIRA, 2002, p. 35).
Nessa Constituição continua a prevalência da família patriarcal e o direito à cidadania ainda continua sendo concedido exclusivamente à pessoa do sexo masculino (OLIVEIRA, 2002, p. 36).
Foi sob a regência da Constituição de 1891 que foi elaborado o Código Civil de 1916, Lei 3.701, de 01.01.1916, regulamentando as questões familiares da época. Em consonância com a ideologia liberal, à Constituição incumbia regulamentar a atuação do Estado e as suas limitações perante os direitos individuais dos cidadãos. À legislação ordinária incumbia a regulamentação dos demais direitos e deveres (NAHAS, 2008, p. 67).
O Código de 1916 regulava a família constituída exclusivamente pelo matrimônio. Trazia uma estreita e discriminatória visão da família, limitando-a ao grupo originário do casamento e impedia a sua dissolução. Fazia distinções entre seus membros e trazia qualificações discriminatórias às pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessas relações. As referências feitas aos vínculos extramatrimoniais e aos filhos ilegítimos eram punitivas e serviam para excluir direitos (DIAS, 2007, p. 30).
O artigo 233, do código Civil de 1916, dispunha que "o marido é o chefe da sociedade conjugal", atribuindo-lhe formal e solenemente a função de cabeça do casal, com poderes para comandar e representar a família. Além do mais, nessa época, a mulher era considerada como relativamente incapaz, submissa, portanto, ao poder marital (COMEL, 2003, p. 26).
A família deste período também pode ser identificada por outros elementos. Tendo por base uma sociedade eminentemente agrária, o casamento era visto como um negócio, uma forma de transmissão de propriedade e de procriação, dessa forma, os casamentos eram combinados entre os patriarcas de cada família, e, na maioria das vezes, sem a participação dos noivos na escolha afetiva (COMEL, 2003, p. 70).
Basicamente, a escolha do cônjuge se dava por motivos patrimoniais. O pai da noiva oferecia um dote ao noivo, no momento de se acertar o casamento. O dote existiu desde os tempos de colônia e foi mantido pelo Código Civil de 1916, que fazia previsão expressa ao regime dotal (NAHAS, 2008, p. 67).
O dogma do casamento indissolúvel foi mantido, bem como o da filiação legítima, originária do casamento. Isto porque a população, em sua maioria, manteve os costumes decorrentes dos ensinamentos católicos e a família socialmente aceita era aquela originada pelo casamento (NAHAS, 2008, p.71).
Assim, percebe-se que mesmo havendo um rompimento formal com o catolicismo, foram mantidos os mesmos princípios e fundamentos do Direito Canônico em relação ao casamento no Direito Civil legislado. Não havia mais o reconhecimento de efeitos pelo Estado ao matrimônio religioso, mas toda solenidade de impedimentos, habilitação e celebração foi mantida. Não houve alteração na essência (NAHAS, 2008, p. 71).
A segunda Constituição não dedicou capítulos à proteção da família ao campo social, mantendo o caráter não intervencionista e sua essência de conteúdo liberal, da mesma forma que a Constituição de 1824 (OLIVEIRA, 2002, p. 39).
2.2 A FAMÍLIA NO CONSTITUCIONALISMO SOCIAL: CONSTITUIÇÕES DE 1934, 1937 E 1946
Desde as primeiras décadas do século XX, o mundo passava por diversos conflitos, como a Revolução Mexicana, que deu origem à Constituição do México; a Primeira Guerra Mundial; na Rússia, caiu o despótico e autocrático governo czarista, assumindo um governo socialista comunista, sob o comando de Lênin; o crash da Bolsa de Nova York, que trouxe o desemprego e a recessão;na Itália se consolidava o regime fascista, de Mussolini e na Alemanha, o regime nazista de Hitler (OLIVEIRA, 2002, p. 39-40).
Todas essas situações no panorama mundial eram a prova de que o modelo político do liberalismo clássico antevia seu fim, a tal ponto que já se clamava por uma nova ordem política, econômica e social, que pudesse proteger os mais fracos dos seus algozes (OLIVEIRA, 2002, p. 40).
Assim, em 03 de outubro de 1930, irrompeu no Brasil a Revolução de 1930, sob a liderança inicial dos governadores de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul e da Paraíba, que depuseram o Presidente da República, Washington Luís Pereira de Souza, entregando o governo do país a uma junta provisória, constituída por oficiais da Marinha e do Exército Nacional. Em 3 de novembro daquele ano, o governador do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, considerado o chefe da revolução vitoriosa, assumiu o governo em caráter definitivo (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008. p. 166).
O texto final da Constituição de 1934 acabou representando a transição do liberalismo clássico para o intervencionismo do Estado, aparecendo pela primeira vez normas relativas a alguns direitos sociais, como por exemplo, salário mínimo, jornada de trabalho de 8 horas diárias, direito de férias, assistência médica, dentre outros (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008. p. 43).
Na Constituição de 1934 se insere uma nova corrente de princípios, até então ignorados pelo direito constitucional brasileiro. Esses princípios consagravam um pensamento diferente em matéria de direitos fundamentais e faziam ressaltar o aspecto social, descurado pelas Constituições anteriores (BONAVIDES, 2003, p. 366).
"Os direitos que devem ser protegidos pelo Estado não são mais somente os direitos individuais e os direitos políticos, mas também os direitos sociais, entre eles o direito à proteção à Família" (NAHAS, 2008, p. 72).
Foi na Constituição de 1934 que surgiram as primeiras menções de proteção à família, até então inéditas nas Constituições anteriores. Foi dedicado um Título à Família, Educação e Cultura, no qual um capítulo inteiro se dedicava à Família. No entanto, essa proteção limitava-se à união matrimonial indissolúvel, reconciliando o texto constitucional com a religião, ao prever o reconhecimento do casamento religioso (NAHAS, 2008, p. 73-74).
Ficou mantido o modelo familiar adotado pelo Código Civil de 1916, com a elevação da proteção jurídica ao patamar constitucional. A família protegida era a constituída pelo casamento e os filhos oriundos deste (NAHAS, 2008, p. 74).
Na constituição de 1934 o legislador não se preocupou em criar um conceito de família, apenas especificou qual seria a forma de constituição (casamento).
Foi nessa Constituição que as mulheres conquistaram alguns direitos, como a concessão de direitos políticos. A independência feminina refletiu diretamente na estrutura familiar, mas a sua posição na entidade familiar permaneceu, por muito tempo, ainda ligada ao patriarcado. A evolução jurídica neste aspecto foi lenta, não acompanhando o ritmo das transformações sociais (NAHAS, 2008, p. 74-75).
A Constituição de 1934 ficou vigente por pouco tempo, pois, logo em seguida a um golpe de Estado de Getúlio Vargas, foi instituído o Estado Novo e outorgada a Constituição de 1937 (NAHAS, 2008, p. 75).
A Constituição de 1937 resultou do golpe de Estado promovido pelo então Presidente da República, Getúlio Vargas, quando impôs um novo texto constitucional ao povo brasileiro, colocando-se na condição de chefe supremo do Estado, sem qualquer respaldo de representação popular e, pela primeira vez, uma Constituição entrava em vigência, sem passar pelo crivo popular constituinte (OLIVEIRA, 2002, p. 39).
Essa Constituição ficou conhecida como "Constituição Polaca", devido a Getúlio Vargas, que embalado na posição universal de descrença pela democracia, inspirou-se na Carta ditatorial da Polônia, de 1935 (BULOS, 2008, p. 76).
Em relação ao direito de proteção à família, na Constituição de 1937 houve pequenas alterações, como a retirada da possibilidade de efeitos civis aos casamentos religiosos (NAHAS, 2008, p. 76).
O tema família foi tratado nos artigos 124 a 127, permanecendo à disposição de que a família seria constituída pelo casamento indissolúvel e estaria sob a proteção do Estado. O casamento continuava sendo o único instrumento expressamente reconhecido, sendo claramente excluídas outras possibilidades de famílias (RENON, 2009, p. 92-93).
A Constituição de 1946 foi gestada imediatamente ao período pós-guerra, com a queda dos regimes totalitários. Era um momento de resgate da democracia, que estava abalada pelos regimes anteriores, através da garantia dos direitos individuais e a manutenção dos direitos sociais (NAHAS, 2008, p. 76).
O pensamento democrático caminhava no sentido de repulsa aos regimes políticos que não se fundassem em um sistema de garantias constitucionais, que visassem assegurar a liberdade de pensamento, da palavra e da imprensa escrita e falada (OLIVEIRA, 2002, p. 55).
A Constituição de 1946 dedicou um capítulo inteiro à família, porém, não houve mudanças significativas em relação às Constituições anteriores. Continuou atrelada ao casamento civil com vínculo indissolúvel, e retornou a possibilidade, já prevista na Constituição de 1934 e suprimida na de 1937, de registro civil do casamento religioso (NAHAS, 2008, p. 77).
A independência feminina aos poucos foi consagrando o seu lugar no Direito de Família. Foi sob a regência da Constituição de 1946 que foi editada a Lei 4.121, de 27.08.1962, chamada de "Estatuto da Mulher Casada". A referida lei ainda trazia características patriarcais - como a direção da sociedade conjugal exercida pelo homem – mas amenizou a situação da mulher casada, conferindo parcial independência em seus atos (NAHAS, 2008, p. 78).
Em virtude da Segunda Guerra Mundial, aconteceram muitas transformações sociais em todo o mundo e, por certo, a família não ficou imune a essa nova realidade, especialmente em relação à adoção do divórcio e à evolução do conceito de família, que não se restringia mais àquela constituída pelo casamento civil (RENON, 2009, p. 94).
Tendo o casamento como única forma de instituição familiar reconhecida, uma problemática dessa época eram as famílias de fato.
Os relacionamentos informais foram se tornando cada vez menos rejeitados socialmente e a problemática foi levada ao Poder Judiciário que não se furtou a examinar a questão, mesmo sem regulação específica. Então, a fim de não se prejudicar as pessoas que conviviam em um relacionamento similar ao casamento, equipararam-se essas famílias de fato a uma sociedade de fato, já que havia impedimento constitucional para o reconhecimento como família. Após inúmeras decisões a respeito, foi editada a Súmula 380, do Supremo Tribunal Federal, publicada em 11.05.1964, com o seguinte teor: "Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum" (NAHAS, 2008, p. 78-79).
Do teor do texto da Constituição de 1946, em relação à família, extraímos que ele trata da proteção à família então reconhecida como legítima, ou seja, aquela formada pelo casamento celebrado de acordo com a exigência de norma constitucional (OLIVEIRA, 2002, p.62).
2.3 A FAMÍLIA NO REGIME MILITAR: CONSTITUIÇÃO DE 1967 E EMENDA CONSTITUCIONAL DE 1969
O país encontrava-se em plena vigência do regime militar implantado a partir de 31 de março de 1964, e seu comando tinha por meta a estabilização e a continuidade do movimento que deu origem a esse regime. Então, vislumbrando as intenções do poder militar dominante, o governo, entendendo que a Constituição vigente não servia mais como norma superior da ordenação jurídica do país, designou uma comissão especial para a elaboração do Anteprojeto, visando reformular e substituir a Constituição em vigência (OLIVEIRA, 2002, p. 62-63).
Essa Constituição, em relação à família, manteve a tradição de dedicar um artigo a sua proteção. O art. 167, na redação da Constituição de 1967 alterou-se para 175, na Emenda Constitucional 1 de 1969 (NAHAS, 2008, p. 80-81).
O texto Constitucional absteve-se de apreciar outras manifestações familiares não derivadas do casamento. Na verdade, a preservação da família atrelada ao matrimônio indissolúvel foi reforçada na Constituição de 1967 (NAHAS, 2008, p.81).
Porém, a questão da indissolubilidade do casamento já não atendia mais aos anseios sociais e com a Emenda Constitucional 9, de 29.06.1977, foi possível a dissolução do vínculo conjugal, através do divórcio (NAHAS, 2008, p. 82).
A alteração ocorrida com a Emenda Constitucional 9 foi objeto de regulamentação, através da Lei ordinária federal 6.515, de 26 de dezembro de 1977, chamada de "lei do divórcio" (OLIVEIRA, 2002, p. 71).
"A instituição do divórcio (EC 9/1977 e L 6.515/1977) acabou com a indissolubilidade do casamento, eliminando a ideia da família como instituição sacralizada" (DIAS, 2007, p. 30).
A Emenda Constitucional 9 foi um grande passo no Direito brasileiro relacionado à família, mas mesmo ante esse avanço no campo legislativo, ainda havia um clamor da sociedade brasileira pelo reconhecimento de outras formas de instituição familiar, não vinculadas ao matrimônio, civil ou religioso (NAHAS, 2008, p.83).
2.4 A FAMÍLIA APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988
No final dos anos 70 começaram os clamores da sociedade pela redemocratização do país. Os principais anseios eram a realização das eleições diretas para Presidente e uma nova Constituição, a ser elaborada através da convocação da Assembleia Constituinte (NAHAS, 2008, p. 84).
Em 1985 houve eleições presidenciais, mas o voto ainda não foi direto, e sim, através de um Colégio Eleitoral. A Assembleia Constituinte foi convocada em 01.02.1987, sob o comando do então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Moreira Alves (NAHAS, 2008, p. 84).
Durante a elaboração da Constituição Federal, a Assembleia constituinte recebeu a contribuição da população brasileira, tentando ao máximo aproximar-se da realidade da sociedade (NAHAS, 2008, p. 84).
As principais discussões eram sobre a imposição pela legislação de dogmas discriminatórios e excludentes, como a desigualdade entre homem e mulher no comando da sociedade conjugal, a distinção entre os filhos, a ausência de reconhecimento como família das uniões livres, o planejamento familiar e até mesmo a revisão dos prazos do divórcio, sendo a questão das famílias de fato, um dos aspectos mais debatidos (NAHAS, 2008, p. 85).
O debate sobre o artigo que concede amparo à Família levou a considerações sobre a necessidade de abertura constitucional deste conceito, deixando o caminho para que a própria Constituição pudesse se atualizar para acompanhar as mudanças sociais e os valores aceitos (NAHAS, 2008, p. 86).
Ainda, para que a mudança do perfil da família brasileira se tornasse completa, seria necessário também, que não houvesse mais o critério discriminatório entre os filhos – que diferenciava os legítimos dos ilegítimos (NAHAS, 2008, p. 87).
Finalizados os debates, o texto constitucional sofreu uma evolução considerável no que diz respeito ao direito de família. A Assembleia Constituinte manteve uma postura aberta, gerando debates e buscando ao máximo a correspondência da Constituição com a realidade da sociedade, tornando a Constituição promulgada em uma efetiva Constituição normativa, relacionada com a realidade social circundante e normatizadora das condutas sociais reguladas (NAHAS, 2008, p. 88).
Em 05 de outubro de 1988 foi promulgada a nova Constituição Federal do Brasil.
A participação popular durante a Constituinte e o processo de democratização, vivido pela sociedade brasileira, conferiram à Constituição de 1988 uma quantidade de direitos e garantias aos cidadãos a ponto de torná-la conhecida como "Constituição Cidadã" (NAHAS, 2008, p. 88).
Além de diversas mudanças no campo social, inclui-se também, a proteção à família. Há um capítulo destinado à família, à criança, ao adolescente e ao idoso, o Capítulo VII, do Título VIII, da ordem Social. Seguindo a tendência da democratização, igualdade, dignidade, pluralismo, abertura e ausência de discriminação, o art. 226 mudou o perfil da família constitucionalmente protegida (NAHAS, 2008, p. 89).
Dispõe o art. 226, da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988):
Art. 226 - A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º
O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
§ 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
O constituinte não apresentou um conceito de família, mas, expressamente aumentou a abrangência da sua proteção, ao excluir do caput a menção ao matrimônio. Este não deixou de ser previsto, mas foi colocado em parágrafos, ao lado de outras entidades familiares. Certamente essa ausência de conceituação da família foi uma opção do constituinte, pois nas Constituições anteriores, em razão da inflexibilidade, seria necessária a alteração do texto para acompanhar as mudanças comportamentais em relação à família (NAHAS, 2008, p. 90).
A norma que regula a proteção à família na Constituição de 1988 é, sem dúvida, aberta, ao garantir, no caput do art. 226, a proteção à família como base da sociedade, sem delimitar à qual família, tampouco definir o que é família, deixando ao intérprete a tarefa de conceituá-la. Assim, possibilitou a proteção de novas formas de conjugalidade, não advindas do casamento civil ou religioso (NAHAS, 2008, p. 90-91).
Segundo Fontanella (2006, p. 53), "Antes da Constituição Federal de 1988, a família era caracterizada tão somente por aquelas uniões que seguiam as regras estabelecidas no Código Civil, que instituíam o casamento".
O modelo de família anterior à Constituição de 1988 era aquele onde o pai exercia poder soberano sobre a mulher e os filhos, como expõe Manrique (2009, p. 477- 478):
[...] los Códigos Civiles de fines del Siglo XIX de toda a América organizaron la família sobre la base de que el comentarista brasileño Clovis Bevilaqua identifica como um núcleo donde el hombre ejercía el poder absoluto del control y el mando de la casa, debiendo La mujer y los hijos prestarle obediencia y un inconmensurable respeto.
A Constituição de 1988 foi a que mais interveio nas relações familiares e a que mais libertou, consumando a redução ou mesmo a eliminação, ao menos no plano jurídico, do elemento despótico (ou se preferirmos, elemento opressivo) existente nas famílias, no Brasil (LÔBO, 2008, p. 04).
Além das mudanças previstas no art. 226, outras importantes mudanças trazidas pela Constituição Federal, relativas a proteção à família, estão no art. 227 (BRASIL, 1988):
. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. [...].Art. 227
A imposição pelo artigo supramencionado, de assegurar a prioridade da criança e do adolescente, como dever da família, do Estado e da sociedade, trouxe uma mudança de enfoque da posição dos filhos em relação aos pais: deixam de ser objeto de direito para se tornarem sujeitos de direitos. Assim, altera-se inclusive o objetivo do poder familiar, pois os pais possuem mais deveres do que direitos sobre a pessoa dos filhos (NAHAS, 2008, p. 94).
As mudanças trazidas no texto constitucional sobre a família abalou toda a ordem jurídica infraconstitucional. Estava em vigor à época o Código Civil de 1916, editado durante a Constituição liberal de 1891, com bases patrimonialista e patriarcal, possuindo uma visão diretamente ligada ao casamento solene como única forma de instituição (NAHAS, 2008, p. 94).
A Constituição de 1988 rompeu com esses dogmas conservadores, instituindo uma nova ordem em relação à família. Esse rompimento tirou a eficácia das normas que contrariassem os preceitos constitucionais, tornando o Código Civil, já obsoleto em relação ao direito de família, ineficaz em muitos dispositivos (NAHAS, 2008, p. 95).
Em 10.01.2002 foi publicada a Lei 10.406, instituindo o novo Código Civil, que mesmo sendo posterior à Constituição, não correspondeu às expectativas dos operadores do direito. Fruto de um projeto iniciado em 1975, sob a égide de outros princípios constitucionais, não conseguiu compreender a grandeza da proteção constitucional à família (NAHAS, 2008, p. 96).
No entanto, independente dos reflexos diretos da mudança constitucional na legislação ordinária, percebemos a alteração da concepção de família, ante a abertura constitucional. A Constituição influencia diretamente toda a ordem civil, não se limitando às regulamentações legislativas infraconstitucionais (NAHAS, 2008, p. 98).
Desta forma, conhecer o que é família na ordem jurídica brasileira vai muito além de estudar as concepções da legislação ordinária. [...] para se ter uma noção do que é Família é necessário contextualizar na sociedade e no tempo, por ser uma realidade dinâmica (NAHAS, 2008, p. 98).
Assim, cumpre-nos destacar a importância de um estudo acerca da mudança no conceito de família advindo da Constituição de 1988, aliado a uma interpretação concretista, em conformidade com a realidade. O desafio se encontra em identificar e compreender quais os tipos de entidades familiares podem ser objeto de amparo legal, ante a abertura constitucional do artigo 226.