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A segurança coletiva no século XXI: os caminhos a serem trilhados pela sociedade internacional

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Agenda 09/10/2011 às 15:30

1.3 Os Desafios a serem enfrentados pela R2P

Esta exposição não conteria credibilidade caso não revelasse os problemas a serem enfrentados pela doutrina em comento.

Em um primeiro e superficial exame, com as conclusões do relatório da CIISE, pode-se firmar o entendimento de que a "Responsabilidade de Proteger" passa a ser garantida tanto no que se refere à sua legalidade, uma vez que a ONU, via de seu Conselho de Segurança, detém a salvaguarda do uso da força e da manutenção da paz e segurança internacionais, quanto no concernente à sua legitimidade, dado que às Nações Unidas é atribuído o status de mais importante organização internacional com representatividade universal, tendo em sua Assembleia Geral, o órgão mais representativo de sua estrutura, contando cada Estado-membro com um voto.

No que concerne às responsabilidades de prevenir e reconstruir, não se esquecendo de fazer especial grifo às dificuldades de implementação que ambas carregam consigo, não há críticas procedimentais a serem efetuadas, a não ser uma cobrança por maior compromisso dos Estados em efetivá-las.

Entretanto, procedendo a um exame mais aprofundado dos critérios que dão ensejo a responsabilidade de reagir, tem-se, apesar de toda a boa vontade dos partidários da R2P, temor sobre a eficiência da nova doutrina em responder as questões a que se propôs replicar.

Mesmo com a elaboração de critérios para o uso da força, deve-se guardar uma preocupação acerca das distorções que podem ocorrer envolvendo os reais propósitos da doutrina que se desenha no início do século XXI. Noam Chomsky (2009, n.p), esboçando sua compreensão do tema em tela, afirma que:

[...] as discussões sobre a R2P ou sua prima, "intervenção humanitária", são regularmente perturbadas pelo chacoalhar de um esqueleto no armário: a história, até o presente. Por toda a história, alguns poucos princípios de assuntos internacionais se aplicam de modo geral. Um é a máxima de Tucídides de que os fortes fazem o que desejam enquanto os fracos sofrem como devem. Outro princípio é o de que virtualmente todo o uso da força em assuntos internacionais é acompanhado de retórica elevada sobre a responsabilidade solene de proteger as populações que estão sofrendo, assim como de justificativas factuais para isso. Compreensivelmente, os poderosos preferem esquecer a história e olhar para frente. Para os fracos, não é uma escolha sábia.

Nesta linha de raciocínio, no que se relaciona a intenção correta, o próprio relatório atestando o realismo político das relações internacionais, expõe que:

[...] los motivos humanitarios no siempre sean los únicos que impulsan al Estado o los Estados que participan en la intervención, incluso aunque esta cuente con la autorización del Consejo de Seguridad. El altruismo absoluto–la total ausencia de mezquinos intereses personales– puede ser un ideal pero no siempre se da en la realidad, ya que lo normal, en lãs relaciones internacionales como en las demás esferas, es que se combinen distintos motivos. Además, dado que toda acción militar conlleva gastos presupuestarios y un riesgo para el personal, al Estado que interviene tal vez le resulte políticamente imprescindible alegar que tiene cierto interés en la intervención, por muy altruista que sea su motivación primordial. (grifos nosso) (COMISIÓN INTERNACIONAL SOBRE INTERVENCIÓN Y SOBERANIA DE LOS ESTADOS, 2011, p. 40)

Observa-se pelo grifado acima que o elemento político sobressai ao jurídico.

Em plano análogo a CIISE ao conferir

o status de "autoridade competente" em sede de R2P ao Conselho de Segurança, ratifica, mesmo que involuntariamente, a condição acima, uma vez que essa escolha somente conservaria o tal esqueleto idealizado por Noam Chomsky no armário, caso o Conselho possuísse neutralidade, estando, pois, totalmente avesso à máxima de Tucídides.

Todavia, não é bem esta a realidade, e o Conselho sofre, fazendo uso da expressão de Marcelo Neves, de "hiperpolitização", refletindo os interesses egoísticos de seus cinco membros. Neste ponto, torna-se, pois, de extrema relevância neste momento, trazer à tona a complexa questão envolvendo a falta de legitimidade do Conselho de Segurança.

Destarte, muito embora o relatório tenha cravado que a autoridade competente para decidir sobre as questões relativas a intervenção militar é o Conselho de Segurança, conforme trecho abaixo:

[...] a

la Comisión no le cabe duda de que no hay un órgano mejor o más apropiado que el Consejo de Seguridad para tratar las cuestiones relativas a la intervención militar con fines de protección humana. El Consejo es quien debe tomar las decisiones difíciles en casos delicados en que hay que dejar de lado la soberanía de un Estado. Y es el también el Consejo el que ha de adoptar la decisión, con frecuencia aún más difícil, de movilizar efectivamente los recursos, incluidos los militares, que son necesarios para socorrer a lãs poblaciones en peligro siempre que no exista ninguna objeción seria por cuestiones de soberanía. (COMISIÓN INTERNACIONAL SOBRE INTERVENCIÓN Y SOBERANIA DE LOS ESTADOS, 2011, p. 54)

Ao versar sobre a temática em exame, o próprio documento da CIISE anuncia que em suas consultas regionais, em não raras vezes, o problema de legitimidade do Conselho de Segurança pela ausência de representatividade dos Estados da África, América Latina e Ásia no centro decisório das Nações Unidas fora levantado, dentre outras aflições, como se pode notar do fragmento abaixo:

Un tema recurrente en muchas de las consultas celebradas por la Comisión fue el de la legitimidad democrática de un Consejo de Seguridad formado por quince miembros, que difícilmente puede reflejar las realidades de la época moderna mientras no permita ser miembros permanentes a países de gran tamaño e influencia, en particular los de África, Asia y América Latina. También se dijo que el Consejo de Seguridad no era responsable ante los pueblos del mundo ni rendía cuentas al plenario de la Asamblea General ni estaba sujeto a la supervisión o el escrutinio jurídico. No cabe duda de que la reforma del Consejo de Seguridad, sobre todo para ampliar su composición y hacer que sea realmente más representativo, ayudaría a aumentar su credibilidad y autoridad. (COMISIÓN INTERNACIONAL SOBRE INTERVENCIÓN Y SOBERANIA DE LOS ESTADOS, 2011, p. 55)

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Assim, não há dúvidas de que a autoridade do Conselho, em face não apenas da falta de legitimidade, mas também por outras razões como a falta de controle jurídico de suas decisões, é colocada em xeque, comprometendo, neste sentido, o caminhar de uma doutrina que depende de suas decisões, como a R2P.

Em um momento mais oportuno este estudo atacará todas as objeções ao Conselho de Segurança, mais detidamente.

Por hora, voltando à análise da responsabilidade de proteger, destaca-se a necessidade de se guardar enorme cuidado com a motivação escondida por detrás do discurso de alguns de seus mais fervorosos defensores para não se deixar aplicar a máxima de que a posição ativa ou passiva em face da ingerência dependa da força política e bélica dos Estados, correlacionando, deste modo, a sua prática ao alvitre exclusivo dos particulares interesses das grandes potências. Por essa razão é que se tenciona codificar o instituto da ingerência, a fim de resguardar os interesses dos mais fracos, prevendo situações e atribuindo-lhes consequências também previsíveis. (SEITENFUS, 1996, p.33)

Interessante nesta etapa é trazer a lição de Michael Byers (2007, p. 134), que, ao analisar a R2P, alerta:

A maioria dos defensores da "responsabilidade de proteger" são movidos pelo desejo de prevenir o sofrimento humano. Entretanto, ao defender uma nova exceção à proibição do emprego da força contida na Carta da ONU, uma exceção em grande parte em interesse próprio, estão fazendo o jogo daqueles que poderiam reivindicar essa mesma exceção com finalidades menos bem-intencionadas.

Robustecendo suas inquietações, o mesmo Byers apresenta trechos de um discurso do então primeiro ministro britânico Tony Blair proferido em 2004, no qual o ex premier proferiu as seguintes palavras:

Uma comunidade tem como essência os direitos e responsabilidades comuns. Temos obrigações recíprocas. [...] E numa comunidade não aceitamos que outros tenham o direito de oprimir e brutalizar seu próprio povo. [...] Posso compreender a preocupação da comunidade internacional com o Iraque. A preocupação é de que os EUA e seus aliados, pela simples força de seu poderio militar, venham a fazer o que bem quiserem, de forma unilateral e passando pro cima de todo código ou doutrina baseada em normas. Mas nossa preocupação é que se a ONU – em consequência de discordâncias políticas em seus conselhos – ficar paralisada, uma ameaça que consideramos real não será posta em xeque. (BLAIR apud BYERS, 2007, p. 135)

E, ao fazer um exame do discurso de Blair, o autor conclui que:

Trata-se de uma visão do poder sem necessidade de prestação de contas, exercido por dirigentes supostamente benevolentes que têm em mente os melhores interesses de seus súditos. Ao mesmo tempo, ela evoca uma antiga abordagem do direito internacional, com base nas leis naturais – uma abordagem que não exigia o consentimento baseado em amplo consenso, sendo, em vez disto, imposta pelos povos ditos "civilizados". Ao lançar mão do conceito de comunidade, o primeiro ministro britânico estava na realidade invocando o direito internacional dos cruzados e dos conquistadores – que, em sua essência, significava a inexistência do direito. (BYERS, 2007, p. 136)

A deficiência anunciada acima acaba se confirmando pela falta de nitidez conceitual dos termos utilizados nos dias atuais em torno do discurso intervencionista em prol dos direitos humanos, conforme o já visto, fazendo com que a responsabilidade de proteger assuma, em virtude de sua feição altamente política, um alto grau de seletividade perante a comunidade internacional, que, em sua grande maioria não é formada por Estados com poder de veto no Conselho de Segurança da ONU.

Por este caminho define Noam Chomsky (2009, n.p) que:

A "responsabilidade de proteger" sempre foi seletiva. Logo, não se aplica às sanções contra o Iraque impostas pelos Estados Unidos e Reino Unido e administradas pelo Conselho de Segurança, condenadas como "genocidas" pelos distintos diplomatas encarregados, que renunciaram em protesto. Também não se pensa hoje em aplicar o R2P à população de Gaza, uma "população protegida" pela qual a ONU é responsável.[...]A R2P também não é invocada para responder à fome em massa nos países pobres.

Ao prenunciar um

pensamento semelhante ao defendido por Byers e Chomsky, Mario Bettati, levanta como questão fundamental em sede de ingerência a apuração dos reais motivos inseridos em sua prática. Para o autor, é preciso se perguntar "se os comboios de medicamentos são o álibi de uma vontade política enfraquecida ou o de um neocolonialismo disfarçado". (BETTATI, 1996, n.p)

A

professora Maria Regina Soares de Lima (2009, p. 281 e 282), evidenciando a dificultosa posição em que se encontra a doutrina responsabilidade de proteger, apresenta visões interessantes acerca da motivação que pode apoiar os seus opositores e defensores:

Entre os críticos a tal doutrina encontram-se os governos com histórico de violações de direitos humanos; "anti-imperialistas" que temem que a doutrina legitime a postura intervencionista do Ocidente; legalistas que apontam para a inexistência de uma norma de intervenção no direito internacional; além daqueles que a despeito de concordar com o princípio são céticos com relação a possibilidade de um uso eqüitativo da doutrina face à natureza assimétrica do sistema internacional, ou por temer as conseqüências não antecipadas de qualquer intervenção. Entre os defensores estão os "intervencionistas cosmopolitas" e os liberais favoráveis às restrições à soberania e defensores da intervenção internacional, bem como "falsos intervencionistas" que buscam seqüestrar a doutrina para os propósitos próprios.


Conclusões

Por tudo o que foi analisado até agora, e mesmo levando em consideração as boas intenções de seus idealizadores, é preciso cautela com a aceitação irrestrita da R2P pela comunidade internacional.

Nesta direção, Giseli Ricobom (2010, p. 335) acrescenta:

[...] o pressuposto do R2P é a relativização da soberania em nome da universalidade dos direitos humanos que permitiria a intervenção, inclusive armada, da ONU e mesmo de forma unilateral por aqueles países defensores dos valores da humanidade. O que o relatório estabelece implicitamente é que a responsabilidade dos países interventores é decorrente dos altos valores morais que essas sociedades liberais promovem. [...] A estratégia é ideológica exatamente por pressupor que a intervenção armada decorre do dever com a humanidade, cuja responsabilidade está vinculada a mera proteção e não por outros interesses que tais países possam eventualmente apresentar. Por essa razão, a proposta do R2P não consegue ultrapassar as limitações das guerras justas que ao final estavam por legitimar as guerras de caráter colonizatório e civilizatório.

No entanto, em meio a inúmeras críticas, não se pode negar que a existência de um documento introduzindo a responsabilidade de proteger é um dos mais importantes instrumentos que as Nações Unidas têm neste momento para auxiliar na resolução do dilema das intervenções humanitárias no mundo. A partir deste marco, a ONU, ao menos no campo teórico, se perfila de modo a se trilhar um caminho diferenciado em busca de uma reformulação dos conceitos e práticas concernentes à proteção e efetiva promoção dos direitos humanos via de ingerências autorizadas por seu Conselho de Segurança.

Nessa direção ensina Noam Chomsky (2009, n.p) que:

Para essa reforma progressiva, a R2P pode ser um instrumento valioso, tanto quanto tem sido a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Apesar dos Estados não aderirem à Declaração Universal, e alguns formalmente rejeitarem grande parte dela (incluindo o Estado mais poderoso do mundo), todavia ela serve como um ideal para o qual os ativistas podem apelar em esforços educativos e de organização, frequentemente de forma eficaz. A discussão da R2P pode ser semelhante. Com compromisso suficiente, infelizmente ainda não detectável entre os poderosos, ela poderia ser de fato significativa.

Posto isto, enquanto não há um avanço significativo no sentido de se criar mecanismos seguros para a prática da ingerência, que envolvam a vontade de todos, formando um consenso, não se deve pensar que se está diante de uma lacuna legal capaz de permitir a repetição de eventos como os ocorridos no Kosovo em 1999 ou no Iraque em 2003.

Qualquer tentativa de se invocar os direitos humanos como elemento justificador da utilização da força aproxima-se da tradição da guerra justa, configurando uma total inversão dos direitos humanos, uma vez que tal postura viola os mesmos direitos que diz proteger. (RICOBOM, 2010, p. 333)

Existe sim um instrumento normativo que atua desde a metade do século passado, a Carta das Nações Unidas, que claramente proíbe a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado. Esta é a regra do jogo, e, caso se pense numa alteração de paradigma, por todo o exposto nas linhas pregressas, tal processo somente terá êxito com intenso debate e com a reestruturação do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com vistas a adequá-lo à vigente condição do mundo, dotando-o, deste modo, da legitimidade e representatividade necessárias.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BETATTI, Mário. O Direito de Ingerência: mutação da ordem internacional. Lisboa: Piaget, 1996.

BYERS, Michael. A Lei da Guerra. Rio de Janeiro: Record, 2007.

CHOMSKY, Noam. Guerreando para promover a "paz". Article of The New York Times.

2009. n.p. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/blogs-colunas/colunas-do-new-york-times/noam-chomsky/2009/07/31/guerreando-para-promover-a-paz.jhtm. Tradução de George El Khouri Andolfato.Acesso em: 17 set. 2011.

COMISIÓN INTERNACIONAL SOBRE INTERVENCIÓN Y SOBERANIA DE LOS ESTADOS. La Responsabilidad de proteger. Disponível em:

http://iciss.ca/pdf/Spanish-report.pdf. Acesso em: 13 set. 2011.

LIMA, Maria Regina Soares. Notas sobre a Reforma da ONU e o Brasil. In: Seminário sobre a Reforma da ONU, 2009, Rio de Janeiro. Reforma da ONU: textos acadêmicos. Brasília: FUNAG, 2009.

ONU.

Implementação da Responsabilidade de Proteger Relatório do Secretário-Geral.
Disponível em: http://responsibilitytoprotect.org/SGRtoPEng%20(4).pdf. Acesso em 21 set. 2011.

RICOBOM, Giseli. Intervenção Humanitária: a guerra em nome dos direitos humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2010

SEITENFUS, Ricardo. Ingerência: direito ou dever? In: América Latina: cidadania, desenvolvimento e Estado. Org. Deisy de Freitas Lima Ventura. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.

Sobre o autor
Rodrigo Cogo

Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU)<br>Professor dos Cursos de Graduação em Direito e Pós Graduação em Direitos Humanos da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COGO, Rodrigo. A segurança coletiva no século XXI: os caminhos a serem trilhados pela sociedade internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3021, 9 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20167. Acesso em: 18 mai. 2024.

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