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A responsabilização da mídia: Direito e deontologia

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Agenda 02/11/2011 às 14:22

A Auto-Regulamentação como meio de controle da qualidade da imprensa

O Direito é "uma ordem da sociedade" [09], é o conjunto de normas jurídicas impostas pelo Estado para regular as relações sociais. Já a moral, que nos faz distinguir o bem do mal no contexto em que vivemos, pode ser entendida como um conjunto de regras de conduta. Adolfo Sánchez Vásquez, ao comparar a moral ao direito em seu "Ética", diz que:

De todas as formas de comportamento humano, o jurídico ou legal (direito) é o que mais intimamente se relaciona com a moral, porque os dois estão sujeitos a normas que regulam as relações dos homens [10].

Entretanto, diferenciando a moral do direito, Vásquez acrescenta que:

Algumas formas de comportamento humano (criminalidade, malandragem, roubo etc.) caem na esfera do direito enquanto violam normas jurídicas e na moral enquanto infringem normas morais [11].

Disso, compreende-se que podem existir comportamentos humanos pautados pela moral, mas que infringem o direito e comportamentos humanos em consonância com o direito, mas que afrontam a moral.

É a partir dessa dissonância que deve ser pensada a deontologia das mídias. Ou seja, como o direito não pode avançar sobre as liberdades de imprensa, expressão e informação, e havendo a necessidade de se assegurar a qualidade do conteúdo dos meios de comunicação sem cercear direitos fundamentais, é absolutamente preciso a utilização da deontologia, seja por meio de códigos ou outras formas de controle. Exemplificando isso, Bertrand cita, em A Deontologia das Mídias, que:

Atos autorizados pela lei podem ser contrários à deontologia, como um jornalista aceitar das mãos de um industrial um convite para férias de luxo. E ao contrário, é possível que a deontologia tolere atos ilegais, como usurpar uma identidade ou furtar um documento para provar um escândalo que prejudica gravemente o interesse geral [12].

É exatamente por constituir a liberdade de imprensa um poder e um dever, e portanto implicar nos direitos de informar e de ser informado, que deve a deontologia auxiliar o direito como um mecanismo de auto-controle. Onde o Direito não pode chegar, deve a deontologia marcar presença. Ela vem, portanto, para preencher o espaço em que o Poder Público não deve atuar – e as causas dessa abstenção pelo Estado são muitas, como impedir a instalação de limites, por motivos arbitrários dos mais variados, e censura.

Entretanto, antes de avançar, necessário se faz a definição conceitual de deontologia. Segundo a Stanford Encyclopedia of Philosophy:

In contemporary moral philosophy, deontology is one of those kinds of normative theories regarding which choices are morally required, forbidden, or permitted. In other words, deontology falls within the domain of moral theories that guide and assess our choices of what we ought to do (deontic theories), in contrast to (aretaic [virtue] theories) that — fundamentally, at least — guide and assess what kind of person (in terms of character traits) we are and should be [13].

Portanto, a deontologia, como teoria moral aplicada aos meios de comunicação, deve guiar as escolhas do jornalista, auxiliá-lo naquilo que ele deve ou não fazer. Sua missão, portanto, é servir de norte para as questões que possam ir para além do Direito, garantindo assim a não intervenção estatal – impedindo que o mesmo atente contra direitos fundamentais – e a garantia de rigor e isenção dos órgãos de comunicação social.

Nesse diapasão, para Charaudeau, a criação de códigos deontológicos é uma questão de responsabilidade que, para qualquer grupo socioprofissional, supõe três condições:

(1) que o grupo queira definir uma conduta moral no exercício de sua prática, levando em conta aquilo que, numa sociedade, é considerado bem e mal; (2) que, para isso, estabeleça um conjunto de regras (explícitas ou implícitas) que garantam essa conduta, as quais devem ser respeitadas por todos os membros do corpo social sem exceção e constituam obrigações, um dever; (3) que exista um mecanismo de monitoração, fazendo com que essas regras ajam mais de maneira negativa do que positiva, ou seja, que aqueles que não as respeitem estejam excluídos fisicamente ou moralmente do grupo, num mecanismo de sanção [14].

Em conformidade com as condições propostas por Charaudeau, encontramos alguns bons exemplos de códigos deontológicos espalhados pelo globo que utilizam sabiamente preceitos éticos para pautar a conduta de seus profissionais da comunicação. Os jornalistas portugueses, por exemplo, regem-se por um Código Deontológico aprovado numa consulta que abrangeu todos os jornalistas profissionais daquele país, resumindo, em dez artigos, a base ética que deve reger a conduta desses profissionais. Embora preveja algumas situações práticas, o código deontológico português, assim como a grande maioria, peca pela simplicidade.

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O código deontológico do Conselho Alemão de Imprensa, entretanto, pode ser considerado como um dos mais completos de toda a Europa, servindo de exemplo para os demais países. Isso é possível graças a uma regular, porém discutida e eticamente bem fundamentada, atualização do código. Embora sejam apenas dezesseis artigos, ele é composto por diversos subitens, que preveem desde situações práticas a posturas éticas a serem seguidas pelos jornalistas. Chega a prever, por exemplo, em seu artigo quinze, que em reportagens sobre questões médicas devem ser tomadas certas medidas para evitar suscitar receios infundados ou falsas esperanças no leitor. Embora seja uma realidade muito distante para a maioria dos países, o código alemão aponta um caminho a ser trilhado pelos demais, mostrando que a auto-regulamentação é um processo, não uma simples tarefa que pode ser concluída de imediato.


A auto-regulamentação pela imprensa brasileira: o Código de Ética dos Jornalistas

É através do jornalismo que a massa busca informações para poder tomar decisões que, muitas vezes, geram graves consequências para a nação. É disso que advém a grande responsabilidade dos meios de comunicação, fazendo com que o conhecimento acerca dos aspectos éticos e jurídicos de se publicar um fato noticioso torne-se imperioso para os jornalistas. Além do mais, os jornalistas devem estar preparados para resolver dilemas morais cada vez mais frequentes em seus cotidianos profissionais. Por isso, o Congresso Nacional dos Jornalistas Profissionais aprovou, em 1987, o Código de Ética do Jornalista, que fixa as normas a que deverá subordinar-se a atuação do profissional nas suas relações com a comunidade, com as fontes de informação, com as empresas de comunicação e entre jornalistas. Com a colaboração de sindicatos, professores e jornalistas, seu texto foi atualizado no Congresso Extraordinário dos Jornalistas, realizado de 3 a 5 de agosto de 2007 na cidade de Vitória (ES).

Em seu capítulo primeiro, que trata do direito à informação, o Código expõe como base o "direito fundamental do cidadão à informação, que abrange direito de informar, de ser informado e de ter acesso à informação", assim como dispõe em seu artigo 2° que, por ser o acesso à informação um direito fundamental, "os jornalistas não podem admitir que ele seja impedido por nenhum tipo de interesse", prevendo nos incisos subsequentes que:

I - a divulgação da informação precisa e correta é dever dos meios de comunicação e deve ser cumprida independentemente da linha política de seus proprietários e/ou diretores ou da natureza econômica de suas empresas;

II - a produção e a divulgação da informação devem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por finalidade o interesse público;

III - a liberdade de imprensa, direito e pressuposto do exercício do jornalismo, implica compromisso com a responsabilidade social inerente à profissão;

IV - a prestação de informações pelas organizações públicas e privadas, incluindo as não-governamentais, deve ser considerada uma obrigação social;

V - a obstrução direta ou indireta à livre divulgação da informação, a aplicação de censura e a indução à autocensura são delitos contra a sociedade, devendo ser denunciadas à comissão de ética competente, garantido o sigilo do denunciante.

Entretanto, é o artigo 11° que traz de forma mais evidente os reflexos dos fundamentos deontológicos aplicados no código, ao impedir que o jornalista divulgue informações "visando o interesse pessoal ou buscando vantagem econômica" bem como as de "caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes" – aqui, faz-se necessário um breve comentário, pois é de conhecimento geral a utilização, por parte da imprensa, de meios e discursos sensacionalistas que buscam, evidentemente, apenas a majoração dos lucros da empresa, o que, em muitos casos gera, inclusive, a possibilidade de buscar no judiciário a devida reparação. O artigo 11° traz ainda, em seu inciso III, a proibição da publicação de informações obtidas de maneira inadequada, com ressalva dos casos em que exista incontestável interesse público.

A apuração das infrações ao código é analisada em duas instâncias: a primeira faz-se no âmbito do próprio sindicato ao qual o jornalista é filiado e, em segunda e última instância, pela Comissão Nacional de Ética – todos órgãos independentes, eleitos por voto direto, secreto e universal dos jornalistas. Quanto à aplicação de punições, o Código de Ética dos Jornalistas prevê desde observações e advertências até a exclusão do quadro social do sindicato e à publicação da decisão da comissão de ética em veículo de ampla circulação.

Dentro do contexto brasileiro, poderiam ser citados ainda o Código da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), que dita as regras que devem ser seguidas pelas empresas do setor; os Princípios Éticos da Associação Nacional dos Editores de Revista (ANER), documento que orienta as publicações seriadas no Brasil; e o Código de Ética da Radiodifusão Brasileira, documento da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (ABERT). Os códigos dão existência concreta aos ideais e, juntos, esses documentos formam uma excelente ferramenta para a manutenção da qualidade dos serviços prestados pelos órgãos de comunicação social, embora, como se verá adiante, ainda sejam necessárias outras medidas para que efetivamente possa se garantir a qualidade da informação passada ao público.


Garantindo a qualidade dos meios de comunicação

Não é a toa que o nome de Claude-Jean Bertrand foi citado diversas vezes ao longo deste trabalho. Bertrand foi o grande pensador e articulista por trás dos Media Accountability Systems (MAS), que são meios de assegurar a responsabilidade social da mídia através de mecanismos não-governamentais. Segundo levantamento feito pelo próprio estudioso, o número de possíveis meios que possibilitariam o melhoramento e a manutenção da qualidade da mídia noticiosa giraria em torno de sessenta. Embora a adoção de todos esses meios seja desnecessário para o efetivo controle da ética nos meios de comunicação social, a utilização de alguns deles em conjunto é absolutamente imprescindível, pois se tratam de meios democráticos e não-coercitivos, que ajudam na proteção e na convivência pacífica das liberdades de expressão, informação e imprensa, bem como de outros direitos fundamentais.

Entretanto, a ética dos meios de comunicação é também resultado da ética individual de cada jornalista. Ou seja, de nada adiantam belos códigos deontológicos se o profissional de jornalismo já é incapacitado desde sua formação. Embora o STF tenha decidido, em julgamento que representa verdadeiro retrocesso para o nosso país, pela não obrigatoriedade do diploma universitário para o exercício da profissão de jornalista, as faculdades de comunicação social continuam com um grande dever em suas mãos: o de formar profissionais capacitados para enfrentar dilemas morais. Evidentemente, as academias podem e devem efetuar outros papéis, que também são de suma importância, como o de reinventar paradigmas e estabelecer parâmetros para uma mídia de qualidade.

Mas, devemos ir além e apontar outros caminhos que, em conjunto com as academias e com os códigos de ética e de conduta profissional, formem ampla defesa aos direitos fundamentais envolvidos na questão ora em debate. Dentre as diversas possibilidades, deve-se destacar também o ombudsman, jornalista experiente e respeitado que atua como crítico do próprio veículo ao qual é ligado. Sua principal função é analisar, avaliar o trabalho de seus colegas e publicar críticas, além de conferir as opiniões e as reclamações do público. Esse importante papel de autocrítica, embora pouco utilizado no Brasil, mostra uma de suas qualidades reforçando a imagem de credibilidade da empresa junto ao seu público, o que deveria ser buscado com mais veemência pelos meios de comunicação.

Entretanto, são os conselhos de imprensa que parecem ser os meios mais conhecidos e utilizados na luta pela qualidade da mídia, funcionando como intermediários entre o público e os profissionais da comunicação. Desde que compostos por empresários do ramo, jornalistas e público, os conselhos tendem a obter a melhor, mais rápida e completa visão dos produtos e serviços oferecidos pelos meios de comunicação. Mas, para que isso vire realidade, deve existir uma forte colaboração entre esses três atores. Caso contrário, um conselho jamais obrigaria alguém a fazer algo.

Todavia, deve ficar registrado que

Talvez não haja profissão tão importante à democracia de uma nação e, ao mesmo tempo, tão ambivalente e difícil, como a do profissional da comunicação. Ele é um trabalhador bem diferente dos outros, porque dele depende, nos dias atuais, em grande parte, a democracia de uma nação. Isso porque, numa sociedade democrática, o papel da mídia deve ser o de promover o exercício da discussão crítica dos problemas que atingem a nação; em outras palavras, exercitar a discussão verdadeiramente política de tudo o que se refere ao andamento não só do país, como do mundo. E nesse aspecto é necessária uma vigilância contínua que garanta uma verdadeira democracia. […] E nessa tarefa a população não deve ser apenas informada, mas deve, também, poder dizer sua palavra, expressar sua opinião, manifestar seu pensamento. Quem coordena essa tarefa é o profissional da comunicação. É ele quem vai lidar com essa questão candente e decisiva. Mas como lidar com ela de maneira correta, democrática? [15]

Sendo assim, é com extrema cautela que devemos trabalhar liberdades tão queridas pela humanidade. Os Estados, em resposta à grande influência dos meios de comunicação social na atual conjuntura sócio-política, e observando a atual convergência tecnológica, tem sido requisitados a criar diversas leis abordando o tema ora discutido. Mas, legislar sobre comunicação social é correr o risco de cercear os direitos a ela inerentes, fato que deve ser combatido firmemente por toda a sociedade. É nesse contexto de proteção aos direitos fundamentais e à democracia que a responsabilidade social dos meios de comunicação deve ser pensada, a fim de promover a efetiva elevação e manutenção da qualidade dos produtos e serviços por eles prestados. Assim, tanto os códigos de ética como as academias ou conselhos de imprensa aparecem como meios eficazes para, em conjunto com um Estado zeloso e guardião dos direitos fundamentais, garantirem a convivência pacífica de liberdades, almejando sempre a efetivação dos direitos humanos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito: introdução e teoria geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

BITELLI, Marcos Alberto Sant'Anna. O direito da comunicação e da comunicação social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

BERTRAND, Claude-Jean. A deontologia das mídias. Bauru: EDUSC, 1999.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 12. ed. Brasília: editora da UnB, 1999.

BUCCI, Eugênio. A imprensa e o dever de liberdade: a independência editorial e suas fronteiras com a indústria do entretenimento, as fontes, os governos, os corporativismos, o poder econômico e as ONGs. São Paulo: Contexto, 2009.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2009.

GUARESCHI, Pedrinho A.; BIZ, Osvaldo. Mídia e Democracia. Porto Alegre: Evangraf, 2005.

KELLNER, Douglas. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC, 2001.

MARQUES, Fábio Cardoso. Uma reflexão sobre a espetacularização da imprensa. In: Coelho, Cláudio Novaes Pinto; Castro, Valdir José de (Orgs.). Comunicação e Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Paulus, 2006, pg. 33-59.

MICHELMAN, Frank I., Relações entre democracia e liberdade de expressão: discussão de alguns argumentos, in Direitos Fundamentais, Informática e Comunicação: algumas aproximações, (Ingo W. Sarlet, org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.


Notas

  1. Kellner, 2001, p. 9
  2. Bertrand, 2009, p. 65
  3. Bucci, 2009, p. 103.
  4. Michelman, 2007, p. 49.
  5. Bertrand, 1999, p. 67
  6. Bobbio, 1999, p. 1040
  7. Marques, 2006, p. 42
  8. Bitelli, 2004, p. 247
  9. Ascensão, 2001, p. 4
  10. Vásquez, 2006, p. 97
  11. Ibidem, 2006, p. 99
  12. BERTRAND, 1999, p. 49
  13. ALEXANDER, L. MOORE, M., 2008, Disponível em: http://plato.stanford.edu/entries/ethics-deontological/.
  14. Charaudeau, 2009, p. 262.
  15. Guareschi e Biz, 2005, p. 81.
Sobre o autor
Leandro Dani

Advogado, Especializando em Direito Tributário e Formação de Professores para a Educação Superior Jurídica - UNIDERP/ANHANGUERA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANI, Leandro. A responsabilização da mídia: Direito e deontologia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3045, 2 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20343. Acesso em: 18 nov. 2024.

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