RESUMO
Pretende-se apresentar um modelo de ensino de filosofia para o curso de graduação em Direito que parta de temas filosóficos e não da descrição histórica das doutrinas dos filósofos. Para tanto, apresenta-se a princípio uma série de comparações entre o modelo histórico tradicional no Brasil com o modelo temático anglo-saxão. Além disso, o modelo proposto deve ser enriquecido com as metodologias advindas do Problem Based Learning, ou seja, Aprendizagem Baseada em Problemas. Tendo tais diretrizes como base, elabora-se a estrutura de um curso de introdução à filosofia tendo como eixo problemas filosóficos que sejam ligados a área jurídica, tais como ética e filosofia política. A lógica teria um papel de conteúdo transversal, dada a sua importância para o operador do Direito. Não se objetiva o abandono da tradição filosófica, mas sim a inserção dela dentro de um contexto pedagógico dinâmico que relacione a filosofia com a situação existencial do discente. Por fim, tenta-se compreender historicamente o perfil do aluno médio dos cursos de IES, pois sem tal compreensão, a proposta perde seu escopo.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino de filosofia. Direito. PBL.
1. Introdução
O artigo aqui apresentado centra-se na justificação e apresentação de um novo modelo de ensino de Filosofia para os cursos de Direito no Brasil. As relações entre Direito e Filosofia perpassam toda a história dessa última de modo indelével: desde a oposição entre Sócrates e Cálicles, descrita na última parte do Górgias de Platão, até o debate entre John Rawls e Robert Nozick após a publicação de Theory of Justice em 1971, é notório que os filósofos sempre trataram de problemas relacionados com o conceito e a aplicação da justiça na sociedade o que, inevitavelmente, leva a uma reflexão de cunho filosófica sobre o Direito. Temas como lei positiva, lei natural, pessoa, livre-arbítrio, direitos humanos, eutanásia, aborto, justiça, dentre uma miríade de outros, são abordados pelos filósofos e o são, também, por estudiosos da área jurídica. Não surpreende a existência da Filosofia do Direito [01], área essa integrada por nomes da magnitude dos supracitados Rawls e Nozick e por pensadores proeminentes como, por exemplo, Ronald Dworkin e H. L. A. Hart. As questões tratadas pela Filosofia do Direito são assim resumidas por Simon Blackburn (1997, p. 152):
Alguns dos tópicos [da Filosofia do Direito] são: a definição de direito ou, se uma definição estrita se mostrar improdutiva, descrições ou modelos do direito que lancem luz sobre os casos marginais, como o direito internacional, o direito primitivo e a lei imoral ou injusta. Alguns conceitos que devem ser analisados são, por exemplo, os de direito e dever jurídicos, de ato jurídico e do lugar de conceitos como o de intenção e de responsabilidade, e a natureza dos raciocínios e decisões jurídicos.
Fica evidente que os temas e conceitos tratados pela Filosofia do Direito podem ser considerados um topos no qual se imbricam, de fato, questões filosóficas e jurídicas. O problema relativo à intenção de um agente está tanto presente em decisões penais cotidianas como em tratados de metafísica ou de filosofia da ação.
Mais do que ser um tema recorrente na história da Filosofia, o tratamento filosófico de problemas fundamentais do Direito é imprescindível na formação dos próprios juristas. Sem querer advogar alguma posição fixa no que tange a questão epistemológica do que é o Direito, no mínimo, e sem alardear nenhum tipo de posição polêmica, as Ciências Jurídicas podem ser consideradas um discurso mezzo técnico mezzo científico no qual a produção, interpretação e reprodução adequadas de conceitos fazem parte do cotidiano do profissional da área. Ou seja, o operador do Direito manipula, cria e reproduz conceitos e conjuntos articulados de conceitos – inferências e/ou argumentos – que o obriga a uma consciência da natureza desse corpus conceitual por ele trabalhado. Sem tal consciência, o operador do Direito abandona o papel de agente ativo nos processos jurídicos, sociais e políticos que geram a dinâmica da sua disciplina, tornando-se um mero títere de interesses e fenômenos que em muito ultrapassam sua compreensão. Surge, desta circunstancia, um mero reprodutor de saberes, incapaz de legitimar publicamente sua ação, pois sua formação carece de instrumentos intelectuais que fundamentem suas escolhas e decisões.
Em função de um pragmatismo cego, opta-se pelo fetiche do "como" ou, em outras palavras, opta-se pelo acúmulo irrefletido de conhecimentos triviais, procedimentos automatizados e rígidos. A conseqüência é a incapacidade de avaliar problemas, de racionalmente fundamentar escolhas e de não compreender as conseqüências dessas mesmas escolhas. Tem-se um indivíduo destituído da capacidade de racionalmente deliberar - em terminologia aristotélica, abre-se mão da virtude da sabedoria prática, a phronesis. O fetiche do "como" é estéril, pois fecha os olhos para o "porquê", para as razões que devem, dialogicamente, pautar o tratamento dos problemas cotidianos. Uma formação intelectual rígida, baseada no mero acúmulo de conteúdos é incapaz de se adaptar as demandas de problemas que escapam aos esquemas e classificações pré-estabelecidos. Situações que exigem alta capacidade de abstração e de mudança de perspectiva para serem resolvidas, por exemplo, estão fora da possibilidade de tratamento por parte deste operador do Direito, limitado em sua ação por um baixo grau de resiliência e adaptação às situações fora dos parâmetros pré-estabelecidos no cotidiano.
O ensino da Filosofia torna-se, então, a oportunidade de instrumentalizar adequadamente esse estudante de graduação. Deve-se, portanto, e essa é a tese central aqui, abandonar a concepção de ensino da Filosofia apenas como transmissão de doutrinas de filósofos do passado. Ela se torna o momento no qual o estudante poderá adquirir conceitos e técnicas da lógica, da lógica informal e de entender como elas são aplicadas na abordagem a diferentes áreas da Filosofia. Áreas essas que devem possuir proximidade com o Direito e problemas que possuam conexões com questões levantadas pelas pessoas em seu cotidiano e mesmo na carreira jurídica. Por isso o privilégio a ser dado por áreas como Ética, Filosofia Política, Lógica e, obviamente, a Filosofia do Direito.
Em suma, o objetivo da presente dissertação, conforme afirmado no início do presente texto, é defender e apresentar um modelo de curso de Filosofia para o Direito a partir de problemas e não de doutrinas fechadas. Pretende-se justificar convincentemente tal modelo e apresentar o que seria a estrutura básica de tal disciplina. O capítulo 2 pretende apresentar os modelos padrão relativos ao ensino de Filosofia: histórico e temático. Como um contraponto a esses dois modelos, apresenta-se abreviadamente a experiência da faculdade de medicina do GDF e sua experiência de ensino fundamentado em problemas. Logo após, o capítulo 3 propõe um modelo híbrido entre o temático e o problematizante, sem ignorar as contribuições da história da filosofia. O cerne da dissertação se encontra neste capítulo, pois é nele que se tentar justificar e estruturar um curso de Filosofia que atenda a especificidades do Direito sem se reduzir a uma disciplina de Filosofia do Direito.
2. Modelos de ensino de filosofia
2.1 O modelo tradicional de ensino da filosofia no Brasil
A Universidade de Oxford, Inglaterra, tem como ano de criação 1096 – são mais de 900 anos de ensino e pesquisa em nível superior. A fundação da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) é mais recente: 1551. Mesmo ano da criação daUniversidad Nacional Mayor de San Marcos (UNMSM) sediada em Lima no Perú. A mais jovem universidade americana que integra a Ivy League, a Cornell University, foi criada em 1865. Tais datas demonstram o caráter retardatário da criação de instituições de ensino superior brasilieras dedicadas ao ensino e a pesquisa. A primeira universidade brasileira surgiu na década de 1920 [02] no Rio de Janeiro, num processo articulado pelo governo federal que unificou as Escolas Politécnica, de Medicina e de Direito já existentes. A Universidade de São Paulo, que se encontra entre a 150 melhores do mundo, data de 1934.
É evidente que o ensino de filosofia, e de outras áreas humanísticas, no Brasil foi afetado de modo negativo com esse cenário de atraso. É o que se patenteia na reflexão de Anísio Teixeira (1989, p. 72):
[...] o brasileiro, depois da Independência, não dispondo de outras escolas senão as profissionais superiores de Medicina, Direito e Engenharia, criadas pelos dois primeiros soberanos, perdeu qualquer oportunidade de estudos superiores de humanidades, letras ou ciências como disciplinas acadêmicas
Apenas com fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (FFCL-USP) e com a vinda de um contingente de professores e pesquisadores franceses, tais como Michel Foucault, Claude Léfort, Gilles Gaston Granger e Gérard Lebrun – é que a filosofia universitária brasileira, de fato, teve seu início. A cultura humanística nacional, que desde o século XIX era predominantemente francófila, agora poderia se orgulhar de, no chiste da lavra de Foucault, possuir um "departamento francês de ultramar"(ARANTES, 1994).
As conseqüências deste fato se fazem sentir até hoje na comunidade de filósofos brasileiros. O ensino da filosofia, num país sem tradição intelectual como o Brasil, deveria se restringir ao estudo dos clássicos da história da filosofia e não na tentativa, vista como vã, de produção de conhecimento filosófico (LEOPOLDO E SILVA, 1994; MICELI, 2001). Por mais que a existência de agencias de fomento (CNPq, CAPES, FAPESP) tenha contribuído para uma mudança de paradigma e a filosofia brasileira já tenha saído, em parte, da mera reprodução e estudo da filosofia dos "grandes pensadores da história" os currículos dos cursos de graduação ainda são estruturados em torna da história da filosofia. Claro que o saber filosófico não pode prescindir da sua história como em outros ramos, notadamente da área das ciências exatas, naturais e nas engenharias. Contudo, o aprender e ensinar Filosofia não podem ser focados apenas na História da Filosofia. Que se leia a passagem a seguir, na qual Desidério Murcho afirma que
Em primeiro lugar, a historicidade da filosofia não é a idéia de que os problemas da filosofia surgem nas obras dos filósofos do passado. Os problemas da filosofia surgem naturalmente quando qualquer pessoa se põe a pensar em alguns aspectos da realidade: O que é o tempo, realmente? Será imoral maltratar os animais? Sabemos realmente alguma coisa, ou poderá ser tudo uma ilusão, como num sonho? Além de surgirem naturalmente, os problemas da filosofia não existem apenas nas obras dos filósofos do passado — pelo simples motivo de que também há filosofia no presente. (MURCHO, 2005)
Nada menos filosófico do que centralizar um curso, conforme nossa tradição intelectual, apenas na recepção dos textos do passado. A filosofia é uma prática, um modo de tratar certos problemas fundamentais relativos a valores, a natureza e a existência. Essa prática realiza-se pensando e debatendo e analisando tais problemas e os argumentos neles envolvidos. A brilhante e simples analogia a seguir ilustra perfeitamente o ponto em tela:
Dado que a filosofia não é o mesmo do que a história da filosofia, nem o mesmo do que a história das idéias, ensinar filosofia não pode ser como ensinar história da pintura; tem de ser, ao invés, algo mais parecido ao ensino da pintura em si. E, como é óbvio, no ensino da pintura em si estudam-se também os grandes mestres do passado. Mas o objectivo final é saber pintar quadros, e não apenas saber apreciar a obra dos grandes pintores do passado. O mesmo acontece no ensino da filosofia: o objectivo não é apenas compreender os grandes filósofos do passado e do presente, se bem que isso também seja feito; o objectivo é saber fazer filosofia (MURCHO, 2005).
Júlio Cabrera, professor titular da Universidade de Brasília, resume perfeitamente a situação de quem pretende filosofar no Brasil:
Para mim o fato primordial da reflexão sobre filosofia no e desde o Brasil é a existência efetiva de estudantes de graduação que aparecem ano após ano nas minhas aulas querendo pensar suas próprias questões, muito ligadas com seu mundo em torno e usando seus próprios estilos reflexivos, em contato com autores mas sem vontade de simplesmente repeti-los ou comentá-los, mas, em todo caso, dialogar com eles a partir de interesses próprios que surgem da observação do mundo e não de um acervo interminável de leituras, referências e citações. Mas esta demanda é apenas a metade do fato primordial. A outra metade é a interpretação cética e irônica (eu diria, niilista) da comunidade filosófica universitária sobre essa demanda dos estudantes. A resposta se tornou automática: esses alunos são imaturos e intuitivos, crentes de terem pensamentos próprios apenas por falta de informação, e que, se deixados à vontade, apenas repetirão o que já foi dito (o trauma da descoberta da pólvora); os professores devem orientá-los no sentido de uma formação reflexiva porém erudita e guiada pelos grandes pensadores, em geral dos países hegemônicos (Alemanha, França, Inglaterra, EEUU, Itália e adjacências, países escandinavos, Bélgica, Canadá, etc). Mais tarde, quando eles crescerem, vão rir de seu ímpeto juvenil e agradecer seus professores por tê-los encaminhado adequadamente: transformar-se-ão em sérios e competentes profissionais da filosofia, como Deus manda (CABRERA, s/d).
O problema não é o ensino da história da filosofia – não é possível filosofar de fato sem se remeter a ela – mas sim reduzir o contato de um enorme contingente de estudantes a filosofia apenas a ela. No meio filosófico acadêmico nacional o efeito é uma fenômeno curioso (e trágico) explicitado por Paulo Ghiraldelli: "quando alguém que já fez mestrado e doutorado em filosofia é chamado de filósofo, sempre há quem reclame [...] pois quer censurar o uso da palavra "filósofo" a quem ainda não é um Nietzsche ou um Aristóteles" (GHIRALDELLI, 2010, grifo do autor).
A tradição socrática, talvez o mais caro paradigma do que é de fato filosofar, baseada no diálogo e no tratamento sincero e racional dos problemas é paralisado pelo estudo da história da filosofia como um fim em si mesmo. A relevância histórica de um pensador não significa, automaticamente, a sua relevância filosófica. Um autor clássico, Platão, por exemplo, é um clássico não pela sua importância história, mas pela capacidade de nos interpelar, de colocar dúvidas e problemas que ainda são nossos.
A conseqüência em se ignorar tal constatação afeta não somente a filosofia acadêmica, mas também o ensino da filosofia no ensino médio e a relação entre a filosofia e outras disciplinas – como o Direito. Ao se seguir o modelo tradicional do ensino da Filosofia tem-se a apresentação cronológica de idéias e doutrinas de pensadores notáveis o que, ironicamente, acaba sendo um retrocesso não só do ponto de vista filosófico, mas do ponto de vista historiográfico. Uma das marcas da História no século XX foi a abordagem social, cultural e econômico do processo histórico, em detrimento das grandes narrativas centradas em heróis e seus feitos [03]. Para o estudante o caráter dinâmico e instrumental da filosofia é reduzido a uma mera narrativa de idéias e personagens, quase sempre indevidamente contextualizadas, sem nenhum aspecto diferenciado e inquietante. Nega-se a esse estudante a possibilidade e gestar suas autonomia intelectual, pois ele é mero repositório de teorias e, pior, abre-se o espaço para a doutrinação ideológica pura e simples.
2.2 O modelo anglo-saxão de ensino da filosofia
Pegue-se o índice de um clássico da filosofia do século XX, The problems of Philosophy de Bertrand Russell, publicado em 1912. Alguns dos títulos dos capítulos são: Aparência e Realidade; A Existência da Matéria; Verdade e Falsidade; e O Valor da Filosofia. O texto de Russell, que como é de se esperar de um escritor soberbamente dotado como ele, é um paradigma de um como se escrever um texto introdutório a Filosofia no qual se parte de problemas e temas, sem se esquecer de estabelecer um diálogo com os filósofos do passado. No capítulo intitulado Aparência e Realidade os argumentos imaterialistas de Berkeley são apresentados e discutidos – não por eles mesmos, mas pela contribuição do bispo inglês do século XVIII ao problema tratado e que nomeia o capítulo.
Mas o principal é encontrar a oficina do filósofo aberta: problemas são enfrentados, suposições, teorias e argumentos são levantados, fundamentados ou, quando não passam pelo crivo de evidencias e argumentos mais fortes, abandonados. Muitas questões são deixadas em aberto, outras apresentam resultados que mais sugerem outros problemas do que estancam a possibilidade de pensar mais. A prosa límpida de Lord Russell convida a uma conversa, ou a um pensar dialogado, com ele – o autor – com a tradição e conosco, leitores.
Essa perspectiva que parte dos problemas e incita a filosofar, e não a apenas acumular informações sobre a história da filosofia pode ser encontrada no próprio modo como são estruturadas as disciplinas, cursos [04] e manuais encontrados nas universidades inglesas e estadunidenses.
Peter Strawson, no Prefácio de seu Analysis and metaphysics, de 1992, afirma que seu livro é uma "introdução à filosofia" que pretende "mostrar como alguns dos principais problemas surgidos nos campos interligados da metafísica, da epistemologia e da filosofia da linguagem podem e devem ser resolvidos" (STRAWSON, 2002, p. 09, grifo nosso). Em Philosophy, manual introdutório organizado por David Papineau, afirma-se claramente que "além de apresentar teorias, este livro busca dotar o leitor de ferramentas intelectuais [...] Se alcançar seu objetivo, esta obra não somente mostrará ao leitor o que outros filósofos disseram como o habilitará a pensar filosoficamente por si próprio" (PAPINEAU, 2009, p. 6). É a mesma proposta que se encontra em outros manuais da tradição anglo-saxã, como Think, de Simon Blackburn (2001), Problems from Philosophy, de James Rachels (2009): um manual introdutório de filosofia deve se pautar por uma abordagem temática e problematizada da filosofia, de modo a possibilitar ao estudante que pense a medida que adentra no texto. E nenhum deles, assim como o Russell, ignora a história da filosofia e suas contribuições. [05]
Faça o mesmo com um texto relativamente recente e usado sobejamente nas universidades brasileiras: Iniciação a história da filosofia de Danilo Marcondes (2008), que já está em sua 12ª. edição. Tem-se uma apresentação em ordem cronológica das teorias e conceitos dos filósofos desde os pré-socráticos até a filosofia contemporânea. A moldura dessa narrativa é feita pela contextualização histórica, que mecanicamente relaciona política e economia da época, o zeitgeist, com as correntes de pensamento apresentadas. É um livro de história intelectual da filosofia que apresenta os filósofos, mas não instiga a prática do filosofar.
Dentre as publicações brasileiras, o livro de Marcondes tem o mérito de ser um livro que, apesar do exposto, pode ser utilizado sem maiores problemas num curso de nível superior de introdução á Filosofia. Outros, mesmo que optando por uma abordagem temática, pecam pela superficialidade e mesmo por erros grotescos [06]. De resto, o público em língua portuguesa ou se contenta com traduções ou vai ter um acesso a filosofia como um tipo de museus conceitual, no qual desfilam grandes pensadores com suas idéias estranhas e sem conexão com a realidade.
Em função de tal cenário desolador é que vale destacar uma exceção: Uma introdução contemporânea à filosofia de Claudio Costa (2002). Após um capítulo sobre a natureza e as áreas do discurso filosófico, o autor, trata de temas como: espaço, tempo, universais, conhecimento conceitual, ceticismo, a concepção tradicional da verdade, realismo, memória, indução, consciência, intencionalidade, problema mente-corpo, ação moral e livre-arbítrio. Além de se pautar em temas e não na história da filosofia, a autor traz para o debate o estado da arte da pesquisa em filosofia em cada um dos problemas levantados. Ao tratar do problema dos universais ele expõem as teses platônicas e aristotélicas relativas ao tema. Contudo, a discussão é expandida e enriquecida com as contribuições de nomes como Gilbert Ryle, Quine, D.C. Williams e Michel J. Loux, além de sua própria visão acerca do problema dos universais. Nas palavras do próprio Claudio Costa (2002, p. 01)
A visão filosófica contemporânea resulta de uma por vezes fascinante combinação de cultura cientifica e humanística. Infelizmente, a filosofia nela contida parece existir em um planeta distante, do qual os seres humanos comuns mal sabem a existência. Essa impressão contrasta, porém, com a experiência que tenho tido ensinando a matérias aos meus alunos, que se tem mostrado capazes de assimilá-la quase sem treinamento prévio.
Ao apresentar seu livro Que quer dizer tudo isto?, Thomas Nagel acaba por fundamentar legitimamente a abordagem temática e problematizante à filosofia nos seguintes termos:
As nossas capacidades analíticas estão muitas vezes já altamente desenvolvidas antes de termos aprendido muita coisa acerca do mundo, e por volta dos catorze anos muitas pessoas começam a pensar por si próprias em problemas filosóficos — sobre o que realmente existe, se nós podemos saber alguma coisa, se alguma coisa é realmente correcta ou errada, se a vida faz sentido, se a morte é o fim. Escreve-se acerca destes problemas desde há milhares de anos, mas a matéria-prima filosófica vem directamente do mundo e da nossa relação com ele, e não de escritos do passado. É por isso que continuam a surgir uma e outra vez na cabeça de pessoas que não leram nada acerca deles. [...] Não discutirei os grandes escritos filosóficos do passado nem o contexto cultural desses escritos. O núcleo da filosofia reside em certas questões que o espírito reflexivo humano acha naturalmente enigmáticas, e a melhor maneira de começar o estudo da filosofia é pensar directamente sobre elas. Uma vez feito isso, encontramo-nos numa posição melhor para apreciar o trabalho de outras pessoas que tentaram solucionar os mesmos problemas (NAGEL, 1997, p. 7 - 9).
Nagel frisa algo que é ignorado pela abordagem tradicional: o defrontar-se com questões filosóficas é parte do desenvolvimento cognitivo da maioria das pessoas, mesmo que seja um momento passageiro. Não é necessário ler o Fédon para se perguntar acerca da imortalidade da alma, ou compreender uma linha sequer de Alvin Plantinga para ter se questionado em algum momento acerca da existência de Deus. Isso pelo fato de que, nas palavras de Nagel, "mas a matéria-prima filosófica vem diretamente do mundo e da nossa relação com ele, e não de escritos do passado". A tradição é um locutor privilegiado e não a fonte exclusiva da filosofia, pode-se dizer. Contudo, não basta que os problemas e temas tenham prioridade em detrimento da apresentação cronológica. O modo como tais temas são apresentados pode impossibilitar a tentativa de pensar os problemas, bastando que o docente se limite a apresentar o tema e elencar uma série de "-ismos" que responderiam ao problema em questão. Assim como no modelo tradicional o efeito seria o mesmo: uma aula de filosofia natimorta, desvinculada da própria bagagem vivência do estudante. Em função disto, é necessário associar a essa mudança no conteúdo uma mudança no modo como o conteúdo é apresentado.