3 A dignidade da pessoa humana na Constituição de 1988
3.1 Lineamentos Históricos
A Constituição de 1934 pode ser considerada como a primeira a fazer alusão à dignidade da pessoa humana, pois, à semelhança da Constituição de Weimar, disciplina a ordem econômica de modo a possibilitar "a todos existência digna" [77] (art. 115). A Carta de 1937 restou silente quanto ao tema, em harmonia com sua feição autoritária [78]. A idéia de uma ordem econômica organizada como meio para proporcionar a existência digna foi recuperada pela Constituição de 1946 (art. 145) [79], como que promovendo um retorno ao status de antes do Estado Novo.
A Constituição de 1967 (art.157) [80] e a Emenda Constitucional 1/69 (art. 160) [81] mantiveram a orientação de disciplinar a ordem econômica com o objetivo de promover a dignidade, in verbis: "valorização do trabalho como condição da dignidade humana". Não se pode deixar de notar que, apesar de outorgadas durante a ditadura, implementaram um avanço no texto ao se referir a "dignidade humana". Não obstante, o foco ainda se mantém no trabalho e na organização econômica: a pessoa humana ainda não foi trazida ao centro do ordenamento. Ademais, do ponto de vista principiológico, se constata uma diferença notável: é que, ao relacionar o trabalho como condição da dignidade, esta ganha uma feição relativa, ao contrário da posição decorrente de Kant, hoje predominante, que lhe considera como inerente ao ser humano, de natureza inalienável. De efeito, se a dignidade humana pode cessar ante a ausência de trabalho, não poderia ceder também em outras circunstâncias, quiçá em frente a outros valores como a Segurança Nacional? Sem dúvida, a dignidade da pessoa humana em uma acepção tal como a da Lei Fundamental de Bonn somente veio a ingressar no Direito pátrio em 1988.
A Constituição de 1988 foi construída a partir do consenso de reinstituir o regime democrático de governo, calcado no Estado de Direito e nos direitos fundamentais. [82] A esta unidade de fins, contudo, se contrapõe uma imensa diversidade de meios [83], em que o modo a se alcançar seus objetivos humanitários encontra-se disposto de forma definida. De fato, encontra-se na Constituição, referências ecléticas, e por vezes contraditórias, a elementos de liberalismo político e econômico, intervencionismo do Estado, social-democracia e até socialismo [84]. Esta natureza eclética provém já da convocação da Assembléia Nacional Constituinte, que foi a primeira na História do país a não partir de um projeto prévio [85], passando pela amplo espectro das forças políticas conjugadas [86], em um prolongado e extenuante trabalho de mais de um ano e meio, com a sucessiva aprovação de textos, sistematizações e revisões, a que se agregaram milhares de emendas [87]. A complexidade desse processo e de seu resultado tem levado a uma ampla gama de visões, desde as que consideram a Lei Maior uma "colcha de retalhos" até as que a tem um bem dosado equilíbrio de forças. [88]
Esse debate em nada afeta a unidade axiológica da Constituição, visto que, nesta parte, partiu do consenso quanto aos seus fins. Disso resulta não haver dúvidas quanto à inserção da Magna Carta de 1988 na linha do constitucionalismo de valores [89], dentro da tradição alemã que se iniciou em nosso direito constitucional a partir de 1934. [90] E essa unidade de valores encontra seu centro na dignidade da pessoa humana [91], seu coração donde fluem todas disposições de carga axiológica mais elevada, como os princípios, os valores supremos, os direitos fundamentais. Neste passo, a Constituição de 1988 encontra sua fonte, e mesmo seu paralelo histórico, nas Constituições da Alemanha e, mais recentemente, de Portugal e Espanha, em que a dignidade da pessoa humana sobreveio como resposta ao Autoritarismo. [92] Ademais, se insere na tradição Ocidental de que a reunião em sociedade visa a algum bem e este bem é a realização das pessoas humanas, a "vida boa". [93]
3.2 O art. 1º, III
Cabe, por primeiro, explicitar o sentido semântico das palavras que compõem a locução expressa no inciso III do artigo que abre a Constituição brasileira. Dignidade provém do latim "dignitate" [94] e possui, dentre outras, a acepção de "respeitabilidade" [95], ao passo que "digno" tem a acepção de "merecedor" [96]. É interessante notar desde já um sentido social ou comunicativo na palavra, vez que "respeitabilidade" e "merecedor" pressupõem outras pessoas para respeitar o sujeito e conceder aquilo que ele merece. Já "pessoa", possui a mesma origem latina ("persona"), [97] sendo, inicialmente, a palavra utilizada para descrever a máscara no teatro de Roma antiga [98], passando, posteriormente, a designar o próprio indivíduo, homem ou mulher. [99] Por fim, "humano" não oferece maiores dificuldades de conceituação: é o que pertence ou se refere ao homem, à espécie humana. [100]
Visto o sentido semântico, há de se perquirir o sentido jurídico da "pessoa humana", de sua "dignidade" e, por fim, da expressão como um todo tal como consta ao inciso III. De primeiro, importa notar que a Constituição se insere na tradição democrática Ocidental, ao adotar uma perspectiva finalística da pessoa humana: ela tem o objetivo de auto-realizar-se, de ter uma "vida boa", de desenvolver sua pluralidade de dimensões harmonicamente. A Constituição está se referindo expressamente a um ser concreto, existente, real. [101] Não se trata de abstrações, como "natureza humana", ou "homem", como uma generalidade: é o ser humano individualmente considerado, que está no topo axiológico da Constituição, vedando qualquer possibilidade de sacrifício da dignidade da pessoa em prol de um suposto maior benefício coletivo. [102] Não há lugar para interpretações coletivistas: em cada pessoa, individualmente considerada, estão presentes todas as faculdades da humanidade, [103]como valor absoluto e insuscetível de qualquer forma de aviltamento.
Isso significa que a Constituição respeita ao máximo a pessoa humana, elevando-a ao seu mais alto valor, e protegendo esta "misteriosa complexidade" que a compõe, uma natureza ao mesmo tempo totalmente individual e totalmente social. [104] Essa constatação leva a concluir que mesmo uma pessoa isolada possui uma dimensão social, sem embargo de uma mais óbvia dimensão individual. [105] Neste passo, a pessoa humana, para sua auto-realização, precisará não somente satisfazer a si própria, como ver as demais pessoas, em seu derredor, satisfeitas. Portanto, a dimensão social, além estar presente na coletividade, pela própria soma de indivíduos e na necessidade de harmonizar suas condutas, está presente também no indivíduo isoladamente considerado. Daí que a Constituição não vê o homem nem como "partícula isolada", nem como integrante da "massa moderna", mas "como pessoa: de valor próprio indisponível, destinado ao livre desenvolvimento, mas também simultaneamente membro de comunidades, de matrimônio e família [...], igrejas [...], grupos sociais e políticos [...] sociedades políticas [...]" e "não em último lugar, também do Estado" [106].
Nesta perspectiva de auto-realização, resta afirmado o valor absoluto da pessoa humana: trata-se de respeitar a pessoa em razão daquilo que ela é, tão-somente pelo fato de ser pessoa [107]. É impossível não deixar de notar uma aproximação do sentido kantiano, de valor em si na pessoa humana; ao mesmo tempo, os conceitos de "respeitabilidade" e "merecedor", atrelados à significação da palavra "dignidade", trazem a idéia de circunstâncias exteriores necessárias à sua realização como pessoa [108] e, com isto, aproxima-se da Teoria da Prestação, no sentido de que é de se assegurar as condições ("liberdade, saúde, segurança, educação, etc" [109]) para que pessoa humana seja humana em sua totalidade. Essa feição exterior – em complemento ao valor da pessoa humana, que é atributo – traz duas conseqüências: primeira, de dependência, ou co-dependência, na medida em que a exterioridade significa que o indivíduo, por si, não a alcança, ou seja, há de ser granjeada por todos; segunda, na medida em que tem um sentido coletivo, adquire um sentido cultural, que lhe torna passível de relativização no tempo e no espaço.
Quanto ao primeiro aspecto, a dignidade da pessoa humana, por ter sua concretização ligada ao desempenho das demais pessoas, ao mesmo tempo em que gera uma relação de co-dependência, gera também uma limitação, no sentido de estar limitada ao que as demais pessoas podem dar, limitação essa de natureza primordialmente econômica. A dignidade da pessoa humana, ao fazer com que a cada um seja devido, por todos, determinado tratamento (digno) – e, tendo todos direito ao mesmo tratamento, ou ao menos que conduza ao mesmo resultado em dignidade – vincula a situação individual à situação da coletividade. [110] Assim, embora seja o indivíduo dotado de um valor infinito, isso não lhe permitirá exigir uma prestação infinita da sociedade (ou do Estado); a dignidade, na mesma medida em que, para concretizar-se, transborda a esfera individual, não poderá ser considerada isoladamente. A dignidade, como poder de exigir uma prestação, haverá de ser determinada pela razão prática, à luz do bem comum, o que será adiante abordado. Decorre daí que sociedades mais ricas concretizarão a dignidade da pessoa humana de forma diferente das menos favorecidas, e por conseguinte, o indivíduo em uma e outra terá uma prestação diversa para o que (aparte o aspecto cultural) é a mesma dignidade humana [111].
Quanto ao segundo aspecto, dizer que a dignidade da pessoa humana possui uma dimensão cultural significa dizer que ela tem um conteúdo variável, cuja determinação dependerá do meio social sob exame. Não se quer dizer com isso, porém, que o conceito padece de uma indeterminação absoluta, pois "determinados componentes fundamentais da personalidade humana devem ser levados em consideração em todas as culturas", de forma que, há "também o conteúdo de um conceito de dignidade humana insuscetível de uma redução culturalmente específica." [112] Deste modo, o exame do aspecto cultural revela uma dupla dimensão do conceito da dignidade da pessoa humana: um núcleo comum à toda humanidade, agregado a um contorno flexível, que respeita o pluralismo, que respeita o fato de que há mais de uma forma de "viabilizar aos homens se tornarem, serem e permanecerem, pessoas." [113]
Nestes termos, o próprio conceito de dignidade da pessoa humana é passível de certa relativização (conforme os elementos culturais) e também as conseqüências práticas da constitucionalização do conceito serão passíveis de certa multiplicidade (conforme os elementos econômicos). Essa riqueza de significados decorre justamente da confluência desses dois pólos: "dignidade" e "pessoa humana", que, em sua aparente singeleza, sintetiza todo conhecimento sobre o homem e das relações humanas. O inciso III poderia, à semelhança da forma dos incisos I e II, preceituar tão somente "pessoa humana", ou mesmo, "valor da pessoa humana". Ao eleger "a dignidade da pessoa humana" em detrimento das duas possibilidades sobreditas, o Constituinte afirmou o valor absoluto da pessoa humana, mas dentro de um enfoque coletivo. O valor da pessoa humana é absoluto, porém sua determinação e concretização, hão de ser contextualizadas no âmbito da sociedade. De toda sorte, essa dimensão coletiva da significação da "dignidade da pessoa humana" explica porque a dignidade é passível de violação: o direito à dignidade é inalienável por decorrer do valor infinito da pessoa humana, porém a dignidade, sendo, por definição uma relação com as demais pessoas, pode ser violada. [114]
A função do Estado, daí, estará intimamente ligada à garantia destes meios externos, ou em contribuir para a auto-realização. [115] Quanto a esse aspecto, é oportuno notar o art. 3º, que proclama o Bem Comum como finalidade da República, especialmente no inciso IV. O bem comum, que pode ser considerado o bem de todos, naquilo que todos tem de comum [116], é também uma alusão à pessoa humana, no sentido de que o Estado e a sociedade (o contrato social) visa a contribuir para uma vida melhor para todos e cada um. Fazendo uma leitura conjunta dos dois artigos, resta claro que a Constituição de 1988 acolheu a doutrina de que a pessoa humana é o princípio e o fim do Estado. O Estado serve a pessoa e a pessoa serve ao Estado naquilo que for necessário para o Estado servi-la [117]. E essa auto-realização já indica a subsidiariedade da função estatal: é a pessoa que se realiza, sendo função do Estado contribuir para que isto aconteça. [118]
Traçados estes lineamentos iniciais acerca do significado da dignidade da pessoa humana, convém situar a dignidade a pessoa humana no contexto constitucional para determinar seu alcance jurídico – é comum se referir como princípio. Aqui merece textual transcrição as palavras de JOSÉ AFONSO DA SILVA [119]
Mas a verdade é que a Constituição lhe dá mais do que isso, quando a põe como fundamento da República Federativa do Brasil constituída em Estado Democrática de Direito. Se é fundamento é porque se constitui num valor supremo, num valor fundante da República, da Federação, do País, da Democracia e do Direito.
De efeito, a posição da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, não pode ser relegada a mera condição de princípio geral do direito, princípio constitucional ou mesmo princípio fundamental, embora, ao mesmo tempo, seja tudo isso; é mais próximo do texto constitucional dizer que ela está um nível acima disso, que fundamenta a própria existência do direito. [120]
3.3 Aplicabilidade
Considerada a dignidade da pessoa humana em tão destacada posição, surge a questão, muito debatida, se ela possui uma dimensão absoluta, ou se é suscetível de ponderação, ou concordância prática, ou hierarquização, conforme as diversas correntes doutrinárias. [121] Ora, essa discussão somente é válida quando se tem dois valores da mesma estatura, na medida em que se um é superior, a resposta sobre qual deve prevalecer já está dada. Seguindo esta linha de JOSÉ AFONSO DA SILVA, de que a dignidade da pessoa humana possui o status de fundamento da República, tem-se que a relativização somente seria possível face aos demais fundamentos declinados nos incisos do art. 1º.
Nestes termos, a dignidade da pessoa humana somente poderia ceder ante a soberania, a cidadania, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. À soberania podem ser atribuídos dois significados complementares: o de prevalência da ordem interna no interior de uma nação, face às ordens externas, e o de prevalência da vontade popular, ou seja, a soberania popular. [122] Cidadania é a parcela que cada pessoa humana possui da soberania, no último sentido que foi visto. Já os "valores sociais do trabalho e da livre iniciativa" estão ligados à proteção da pessoa humana, em suas dimensões de igualdade e liberdade, respectivamente, no que tange à organização da Ordem Econômica [123]. Assim, é possível fazer a leitura dos fundamentos da República, com base nessa interpretação dos incisos I a IV, como dividido em dois núcleos: vontade popular e dignidade da pessoa humana. O pluralismo político, neste contexto, surge como a ponte entre ambos, o meio de adequação, que irá conformar a vontade popular à dignidade da pessoa humana. Exsurge daí a notável semelhança do art. 1° da Constituição brasileira, com o art. 1° da Constituição portuguesa, que proclama ser Portugal uma República "baseada no princípio da dignidade humana e na vontade popular". E essa semelhança indica que a Constituição abraçou o conceito de Estado Democrático de Direito, apoiado no Constitucionalismo de valores surgido na Europa do segundo pós-guerra. Também o Brasil adota a Política e o Direito como fundamentos da República, representados pela soberania popular e a dignidade da pessoa humana. Nessa linha, percebe-se o alto grau de abstração do inciso III, cujo papel é fazer um contraponto ao poder absoluto do Povo e do Estado, trazendo uma humanização ao regime, como parte da tradição que é fruto do choque causado pela Segunda Guerra Mundial.
Porém, a Constituição dá um passo a mais, ao estabelecer o pluralismo político entre os fundamentos da República, o que integra a natureza de toda a construção jurídico-política da nação. O pluralismo advém da própria pluralidade de dimensões do ser humano, o que ensejará uma riqueza de percepções e de potencialidades distintas para cada pessoa, e sempre há de ser levado em conta, sob pena de comprometer o Estado Democrática de Direito [124]. A essa pluralidade de percepções, soma-se uma pluralidade de bens (físicos, morais, intelectuais) [125], o que faz com que ninguém possa "pretender o monopólio do conhecimento do bem da pessoa sobre o bem da comunidade" [126], de forma que visões antagônicas sobre um mesmo tema poderão ter, cada uma, razões igualmente ponderosas, [127] e não será possível saber, com certeza, qual a melhor decisão a tomar, [128] daí o pluralismo político.
Como lidar com as os conflitos decorrentes do pluralismo é uma questão central para qualquer Democracia [129] e aqui a Constituição fez sua opção de forma clara: as diversas formas de agir politicamente devem ser respeitadas (art. 1°, V). Se a pessoa humana é plural, se há diversas formas de agir politicamente, se nenhuma dessas formas pode ser considerada a priori superior, não se pode concluir, com isso, que a Constituição conduza ao imobilismo, ou a cizânia, mas sim que ela própria fornece os termos de cooperação entre pessoas livres e iguais em busca de um bem comum, para os indivíduos e a sociedade, como um todo [130]. E esse processo de tomada de decisões, nesses moldes, deve ser baseado na razão prática. [131]
O pluralismo político prescrito no art. 1°, V, é uma opção pela razão prática, que opera por um silogismo em que a premissa maior é o fim perseguido (este sim contemplado na Constituição) e a premissa menor é a situação concreta, sendo a inferência a decisão e a ação [132]. Essa mediação entre os fins e a realidade concreta somente se pode dar por um processo deliberativo, de discussão política em que as múltiplas visões (cada um tem a sua perspectiva dos fins e valores) convergirão para a ação escolhida democraticamente. Tal como posto na Constituição, o pluralismo político assegura uma múltipla possibilidade de concretização dos valores (através da política), fazendo frente contra a visão única, o caminho único, a verdade única. É um remédio contra todas as formas de tiranias, que arroguem para si a pertença da verdade, em especial a tirania ideológica, mas também a tirania da própria Constituição! Pois, se múltiplo é o caminho, a ninguém cabe limitar o progresso da sociedade sob uma única vereda, nem a Constituição poderá forcejar a sociedade de arrasto por uma trilha previa e detalhadamente delineada em uma imposição de cima para baixo.
Resulta daí a impossibilidade da aplicação direta dos valores da Constituição: somente quando ‘densificadas’, as normas generalíssimas podem ser aplicadas ao caso concreto. [133] Se um juiz densifica ele próprio um valor constitucional, imporá sua visão, sua norma, a partir de algo que é abstrato e, por isso, indefinido, suscetível a um grande número de visões e perspectivas. No momento em que a deliberação é suprimida, caracteriza-se o autoritarismo, em que a norma tem sua incidência creditada a uma vontade superior. Daí para o totalitarismo é um passo, pois, se já se sabe qual é a verdade e qual é o caminho, independente da participação política, pode parecer legítimo querer impô-los a todos aspectos da vida social. Ora, é preciso garantir a harmonia entre os três níveis jurídicos do ordenamento, o Direito Judiciário, Ordinário e Constitucional [134], em que o Direito Ordinário desempenha o papel essencial de densificar os valore constitucionais, de fazer a mediação – sem a qual os valores e contaminam por interesses ou ideologias [135] – para permitir uma aplicação democrática pelo Direito Judiciário. [136]
Nesta harmonia, sobrepõem-se os princípios da precedência ontológica e da preferência subsidiária, sendo destacado o papel do juiz por sua proximidade com a riqueza de acontecimentos da vida e da infinita contigência da realidade, que jamais poderá ser condensada na máxima abstração de uma norma constitucional. A riqueza da realidade, em contato direto com o juiz, ajuda a moldar o Direito Judiciário, que, por sua vez, influencia o Direito Ordinário, até ser depurado como valor e chegar ao Direito Constitucional, onde retorna, pelo caminho inverso, à realidade, em um diálogo circular hermenêutico [137]. Não só a Constituição influencia a legislação, mas também o inverso, podendo-se creditar a definição dos conceitos constitucionais, inclusive a dignidade da pessoa humana, "de baixo para cima" [138].
Daí exurge toda a importância do pluralismo político, verdadeira consagração da razão prática, pois, se a Constituição estatui os valores que devem guiar o ordenamento, as formas e os meios de concretizar esses valores haverão de ser decididos na Política [139] em um processo deliberativo, o mais amplo e plural possível [140]. Com isso, a dignidade da pessoa humana (e todos os valores que dela decorrem) terá sua aplicabilidade precisada pela atuação da vontade popular, onde o pluralismo político representa a múltipla perspectiva política de concretizá-la, através de um processo deliberativo (razão prática). Este processo funcionará como a mediação necessária para adequar os fins da constituição à realidade, ou seja, o ajuste entre a vontade popular e a dignidade da pessoa humana, que, se feito de forma desequilibrada, dará ensejo ao controle de constitucionalidade.
Do exposto, não se pode cogitar de relativizar os valores supremos do ordenamento com a dignidade da pessoa humana, pois dela decorrem os dois valores supremos da Constituição de 1988 [141], que são a Liberdade (o poder ser e agir conforme o ser [142]) e a (Igualdade o ser em isonomia com as outras pessoas). Em verdade, pode-se mesmo dizer que todos os valores decorrem da dignidade da pessoa humana: a liberdade que é limitada pela igualdade, pelo critério de justiça em uma relação que se perpetua no tempo, gerando segurança em uma dinâmica de equilíbrio entre ordem e progresso. [143] Portanto, a dignidade da pessoa humana não admite ponderação com os valore, pois não estão em relação de igualdade.
Os direitos fundamentais não só encontram sua unidade axiológica na dignidade da pessoa humana [144] como também constituem seu natural desenvolvimento, [145] isto é, concretizações do de seu significado. Esta proximidade da dignidade da pessoa humana confere aos direitos fundamentais uma alta carga de valor – a ponto de a ausência de sua proteção descaracterizar a própria existência de um estado de direito, [146] – e de abstração, por conseguinte, o que faz com que, a despeito da dicção do art. 5º, § 1º, nem todas as normas definidoras de direitos fundamentais tenham aplicação imediata [147]. Ao mesmo tempo, tão alta é a relevância da dignidade da pessoa humana e tão infrutuoso ficaria o direito, se frustrada sua proteção, que é possível, extraordinariamente, considerar ela própria um direito fundamental como observa JORGE MIRANDA, transcrevendo projeto de revisão da Constituição suíça [148]:
A proteção da dignidade humana seria, de algum modo, o último recurso do direito quando a garantia de todos os outros direitos fundamentais se revelasse excepcionalmente ineficaz. Neste sentido, ela é, ao mesmo tempo, o mais primário e o mais subsidiário de todos os direitos.
O todo exposto até aqui demonstra que a dignidade da pessoa humana ocupa a posição mais elevada no escalonamento do ordenamento jurídico, e com isso, afeta o direito como um todo e em cada um dos seus níveis. Desempenha uma função de status negativus, no sentido de limitação ao poder estatal, e também um status positivus, como um dever de atuação do Estado pela sua proteção concreta. [149] Porém, a forma como se concretiza essa influência é por meio de controle (a instância do sobredireito) a ajustar o processo deliberativo (concretizado pela razão prática) quando este desbordar dos fins constitucionais [150]. Não por acaso, a abstração do fundamento faz com que as tentativas de concretizá-la resultem em uma fórmula negativa, que é a fórmula objeto de DÜRIG [151]: " a dignidade humana é atingida quando o homem concreto é degradado em objeto, num mero meio, numa grandeza substituível." Essa definição, tida como "ainda hoje a construção teórica mais convincente" [152] e que se constitui em uma caracterização por violação, revela como, efetivamente, por mais que se queira, não é possível fazer dos valores constitucionais, em especial do seu valor mais abstrato, o coringa de aplicação imediata e irrestrita. É imprescindível, ao Estado Democrático de Direito, o respeito à legítima autonomia e complementaridade de cada um dos níveis do ordenamento. [153]