01. Liberdade
Como um pressuposto lógico para entender o tema principal deste trabalho, é imprescindível tecer algumas considerações sobre a noção jurídica de liberdade e, consequentemente, de liberdade sexual.
Para isto, com fins meramente didáticos, separamos a análise entre noções conceituais e previsões constitucionais de tutela da liberdade, conhecendo, em seguida, os limites ao seu exercício absoluto.
01.01. Noções conceituais
Afinal de contas, o que é este instituto aparentemente tão precioso chamado liberdade?
Valendo-nos da dogmática nacional, encontramos alguns conceitos interessantes de liberdade.
Na concepção gramatical da palavra, verificamos os seguintes significados, segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira:
"liberdade. [Do lat. libertate] S. f. 1. Faculdade de cada um se decidir ou agir segundo a própria determinação: Sua liberdade, ninguém a tolhia. 2. Poder de agir, no seio de uma sociedade organizada, segundo a própria determinação, dentro dos limites impostos por normas definidas: liberdade civil; liberdade de imprensa; liberdade de ensino. 3. Faculdade de praticar tudo quanto não é proibido por lei. 4. Supressão ou ausência de toda a opressão considerada anormal, ilegítima, imoral: Liberdade não é libertinagem; Liberdade de pensamento é um direito fundamental do homem. 5. Estado ou condição de homem livre: dar liberdade a um prisioneiro, a um escravo. 6. Independência, autonomia: O Brasil conquistou a liberdade política em 1822. 7. Facilidade, desembaraço: Liberdade de movimentos. 8. Permissão, licença: Tem liberdade de deixar o país. 9. Confiança, familiaridade, intimidade (às vezes abusiva): Desculpe-me, tomei a liberdade de vir aqui sem telefonar-lhe; Muito comunicativo, toma às vezes certas liberdades que me aborrecem. 10. Bras. V. risca (4): ´Trazia os cabelos caprichosamente penteados, com uma abertura ao meio, formando liberdade.´ (De Araújo Costa, O Menino e o Tempo, p. 29.) 11. Filos. Caráter ou condição de um ser que não está impedido de expressar, ou que efetivamente expressa, algum aspecto de sua essência ou natureza. [Quanto à liberdade humana, o problema consiste quer na determinação dos limites que sejam garantias de desenvolvimento das potencialidades dos homens no seus conjunto - as leis, a organização política, social e econômica, a moral, etc. -, quer na definição das potencialidades que caracterizam a humanidade na sua essência, concebendo-se a liberdade como o efetivo exercício dessas potencialidades que caracterizam a humanidade na sua essência, concebendo-se a liberdade como o efetivo exercício dessas potencialidades, as quais, concretamente, se manifestam pela capacidade que tenham os homens de reconhecer, com amplitude sempre crescente, os condicionamentos, implicações e conseqüências das situações concretas em que se encontram, aumentando com esse reconhecimento o poder de conservá-las ou transformá-las em seu próprio benefício.]"(1)
Como podemos constatar, a palavra "liberdade" apresenta diversos conteúdos, o que pode dificultar a nossa compreensão posterior do que seja liberdade sexual, tema deste capítulo.
Buscando, porém, um conceito estritamente jurídico, encontrado, por exemplo, no Dicionário da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, vemos que este apresenta, no que se refere à liberdade, o seguinte conceito:
"LIBERDADE. S. f. (Lat. libertas) Faculdade que tem cada um de agir em obediência apenas a sua vontade. OBS. Esse conceito lato sofre restrições no estádio do homem coletivizado, sendo peculiar tão-somente ao estágio da horda."(2)
Ora, a imprecisão e generalidade do conceito jurídico-dogmático de liberdade é, por certo, uma caixa de pandora da qual podemos retirar as mais amplas interpretações.
Ilustrando tal afirmação, o conceito mencionado, que o próprio dicionarista declara ser peculiar ao estágio de horda, nos permitiria concluir que o ato de matar alguém, por exemplo, nada mais é do que o exercício pleno da liberdade absoluta do indivíduo de optar entre o certo e o errado, o bem e o mal ou a vida e a morte.
E talvez essa ponderação seja realmente bastante razoável, se levarmos em consideração que a conduta humana no convívio social (e a qualificação que o Direito lhe empresta) nada mais é do que o exercício diuturno de escolha entre o lícito e o ilícito, vez que, conforme ensinava Machado Neto, ao comentar a Teoria Egológica do Direito, a "liberdade é, nessa perspectiva, um prius donde há que partir. Originariamente toda conduta é permitida. Todo direito é assim um contínuo de licitudes e um descontínuo de ilicitudes. Daí que o princípio ontológico não seja conversível como o é o juízo analítico ‘tudo que não é ilícito é lícito’ (...) Sobre esse prius da liberdade humana, esse contínuo de licitudes, a determinação normativa vai estabelecendo as ilicitudes"(3).
A faculdade de livre agir, porém, não pode ser interpretada de forma extrema. Desde a mais tenra idade, fomos condicionados com frases do tipo "minha liberdade (meu direito) termina onde começa a (o) do outro" ou "liberdade sem responsabilidade não é liberdade, mas sim libertinagem", em que, instintivamente, já começamos a inferir a existência de limites ao exercício da liberdade.
Logo, se é certo que a liberdade é algo inerente à capacidade volitiva do homem, escolhendo a prática deste ou daquele tipo de ação, muito mais evidente é que haverá certos tipos de atos que serão reprimidos pela Ordem Jurídica, como verdadeiras limitações ao exercício absoluto da liberdade.
Tais limites, do ponto de vista da teoria geral do Direito, nada mais são do que o estabelecimento de sanções a determinados tipos de conduta que podem ser praticadas pelos indivíduos, no exercício de sua liberdade. Em outros termos, podemos afirmar que um preceito proibitivo não impede, de forma alguma, que a pessoa, no exercício de sua liberdade individual, pratique a conduta vedada pelo Direito, mas sim estabelece, em verdade, que a opção por aquela conduta implicará, deontologicamente, na aplicação de uma determinada sanção pela violação da ordem jurídica.(4)
Os limites, portanto, ao exercício absoluto da liberdade do ser humano nada mais são do que a proteção que o ordenamento jurídico empresta a determinados bens jurídicos como a vida, a propriedade e a própria liberdade.
E que limites são esses?
Apenas por uma questão de metodologia, deixaremos para enfrentar esta questão no tópico 01.03 ("Limites ao exercício absoluto da liberdade"), onde pretendemos aprofundar o tema.
Por enquanto, fiquemos somente com a conclusão de que é possível haver restrições (resistências) à liberdade absoluta (ou, mais tecnicamente, ao exercício absoluto da liberdade), pelo que, lembrando as poéticas palavras de Carlos Fernandez Sessarego, tenhamos a convicção de que "la libertad es como un ave que para volar necesita de la resistencia del aire. La libertad tiene necesidad ontológica de otras existencias libres y de cosas. La libertad es coexistencia, compresencia. Necesita de sus potencias psíquicas, de su cuerpo, que son las evolturas próximas; del mundo interno en contraposición con el mundo externo que son los ´otros´ seres. El mundo interno es lo ´mio´, lo que pertenece en forma inmediata al centro espiritual del hombre como libertad."(5)
01.02. Previsões constitucionais da tutela da liberdade
A tutela jurídica da liberdade, pelo que vimos no tópico anterior, está incrustada em todo o ordenamento jurídico positivo, pois o estabelecimento de qualquer regra de conduta implica, em última análise, na disciplina do exercício da liberdade.
Entretanto, pela sua evidente importância na hierarquia das normas, parece-nos bastante conveniente destacarmos, no texto da vigente carta constitucional, algumas previsões específicas da tutela jurídica da liberdade.
Sem sombra de qualquer dúvida, se for possível estabelecer um grau de importância entre os diversos dispositivos constitucionais, o art. 5º por certo se destacaria no conjunto de preceitos normativos da nossa analítica constituição.
Ao estabelecer, no seu caput, que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade", o constituinte consagrou, como pilar da ordem jurídica positiva, a isonomia de tratamento entre os indivíduos, o que, definitivamente, não é tarefa das mais fáceis, tendo em vista as evidentes desigualdades fáticas ocorrentes na realidade prática.
Neste sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho observa que o "princípio da isonomia oferece na sua aplicação à vida inúmeras e sérias dificuldades. De fato, conduziria a inomináveis injustiças se importasse em tratamento igual para os que se acham em desigualdade de situações. A justiça que reclama tratamento igual para os iguais pressupõe tratamento desigual dos desiguais. Isso impõe, em determinadas circunstâncias, um tratamento diferenciado entre os homens, exatamente para estabelecer, no plano do fundamental, a igualdade"(6).
A disciplina procedida pelos 77 (setenta e sete) incisos e 2 (dois) parágrafos do art. 5º abarca diversos princípios jurídicos intimamente relacionados com a noção de liberdade, como, a título meramente exemplificativo, a igualdade de direitos entre homens e mulheres (inciso I, de fundamental importância para nosso estudo), a liberdade de expressão e pensamento (incisos IV, V e IX) e a liberdade de consciência e crença (inciso VI).
Vale destacar, dentre tais estipulações, o preceito do § 1º, que estabelece que as "normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata". Assim sendo, não há como se negar, do ponto de vista dogmático, o exercício da proteção de um direito ou garantia fundamental somente pela inexistência de uma lei específica definidora dos limites da correspondente garantia ou direito fundamental.
Tal conclusão não se choca, de forma alguma, com o disposto no inciso II ("Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei"), mas sim, a contrario sensu, reforça-o, vez que o princípio da legalidade, mesmo sendo a base fundamental do estado de Direito, não pode ter a sua importância exageradamente exaltada, pois, socorrendo-nos novamente do Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a "missão emprestada à lei resulta de uma concepção bem clara e definida a seu respeito. Para Montesquieu, como para os principais autores da Revolução Francesa, a supremacia da lei é o primado da razão, conseqüentemente da justiça. O direito, para eles, não é criação arbitrária, fruto de qualquer ‘volonté momentanée et capricieuse’ (De l’esprit des lois, Livro 2, Cap. 4). É a descoberta do justo pela razão dos representantes. Conseqüentemente, ‘a lei não tem o direito de vedar senão as ações prejudiciais à sociedade’ (Declaração de 1789, art. 5º, primeira parte)"(7).
Feitas tais considerações, enfrentemos, finalmente, a questão dos limites ao exercício absoluto da liberdade.
01.03. Limites ao exercício absoluto da liberdade"Libertas est naturalis facultas ejus quod cuique facere libet nisi si quid vi aut jure prohibetur".
O brocardo latino, que significa que a "liberdade é a faculdade natural de fazer o que se deseja, desde que não haja proibição da força ou direito", já nos traz um indício de onde encontraremos as limitações ao exercício absoluto da liberdade.
De fato, onde mais estariam os limites ao exercício absoluto da liberdade, senão no próprio Direito que garante a liberdade?
Afastado o exercício puro do arbítrio, justificador da referência à "força" na expressão lembrada, somente a própria ordem jurídica, com o fito de garantir seus bens mais preciosos, é que teria a legitimidade para estabelecer limitações à liberdade individual das pessoas.
Os limites ao exercício absoluto da liberdade do ser humano nada mais são, portanto, do que a proteção que o ordenamento jurídico empresta a determinados bens jurídicos como, v.g., a vida, a propriedade e a própria liberdade.
Desta forma, a primeira conclusão que se tira desta reflexão é que o cerne da liberdade jurídica reside na possibilidade de fazer tudo aquilo que não é proibido pelo seu próprio ordenamento. Esta conclusão, entretanto, suscita novas questões: o que pode ser proibido ou não dentro da Sociedade? Existem limites para a limitação da liberdade?
A análise do inciso XI do art. 5º do texto constitucional pode nos ajudar, agora sob um método indutivo, a responder esta questão.
Com efeito, dispõe o referido preceito que "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial".
Nesta regra constitucional, podemos verificar que o direito amplo de ir e vir é limitado pelo direito de propriedade, vez que ninguém pode penetrar em casa alheia sem o consentimento do morador.
Todavia, havendo um interesse jurídico maior, seja da sociedade lato sensu (flagrante delito, desastre ou necessidade de prestação de socorro), seja do Estado (invasão durante o dia, por ordem judicial), a limitação constitucional encontra um outro óbice (da mesma natureza) que a releva, criando o que chamamos de "limitação da limitação".
E qual o motivo para a imposição desta "limitação da limitação"?
A resposta mais óbvia (e, por isso mesmo, rasteira) seria: porque assim o quis o legislador.
Recusando, porém, o magister dixit, podemos encontrar a justificativa lógica para tais limitações justamente no objetivo, em última instância, da garantia do exercício da liberdade e da organização da sociedade.
O que devemos ter sempre em mente é que a possibilidade de limitação (ou sancionamento, como consideramos mais técnico numa perspectiva lógico-jurídica) do exercício absoluto da liberdade individual – possibilidade esta aqui indubitavelmente reconhecida – deve tomar como premissa o prevalecimento da própria liberdade.
Assim sendo, para conhecer e estabelecer os limites do exercício pleno da liberdade, teremos que tomar como bússola inarredável a constatação de qual é o ponto em que tal exercício fere o interesse social, público ou do outro indivíduo. Somente observando o postulado básico da liberdade geral é que verificaremos, em cada caso concreto, quais os limites impostos pela ordem jurídica ao exercício absoluto da liberdade individual.
Sobre a matéria, observa José Afonso da Silva que:
"o legislador ordinário, quando expressamente autorizado pela Constituição, intervém para regular o direito de liberdade conferido. Algumas normas constitucionais, conferidoras de liberdades e garantias individuais, mencionam uma lei limitadora (art. 5º, VI, VII, XIII, XV, XVIII). Outras limitações podem provir da incidência de normas constitucionais (p. ex. art. 5º, XVI: reunir-se pacificamente, sem armas; XVII: fins lícitos e vedação de caráter paramilitar, para as associações, são conceitos limitadores; restrições decorrentes de estado de defesa e estado de sítio: arts. 136, § 1º, e 139).
Tudo isso constitui modos de restrições das liberdades, que, no entanto, esbarram no princípio de que é a liberdade, o direito, que deve prevalecer, não podendo ser estirpado por via de atuação do Poder Legislativo nem do poder de polícia. Este é, sem dúvida, um sistema importante de limitação de direitos individuais, mas só tem cabimento na extensão requerida pelo bem-estar social. Fora daí é arbítrio"(8).
2. Liberdade sexual
Entendida a noção de liberdade, bem como a questão da possibilidade de limitação de seu exercício absoluto, já podemos enfrentar um dos pontos nevrálgicos do nosso tema.
A questão básica é a seguinte: existe uma liberdade sexual? E, caso a resposta seja positiva, em que consiste este instituto e como instrumentalizar a sua garantia?
A primeira pergunta ("Existe uma liberdade sexual?") pode parecer, ao leitor menos avisado, no mínimo, uma tolice: "É lógico que existe uma liberdade sexual", ouviríamos!
É mesmo? – respondemos! Se a existência deste direito é, valendo-nos da expressão consagrada por Nelson Rodrigues, de uma obviedade ululante, então qual é o motivo para que haja tantos tabus e preconceitos no trato das relações jurídicas decorrentes do exercício da liberdade sexual dos indivíduos?
A resposta poderá ser encontrada justamente na nossa premissa de raciocínio de que o exercício da liberdade (e a liberdade sexual também está aí incluída!) na sociedade moderna pressupõe a observância de alguns limites, existentes deontologicamente não por um simples arbítrio do legislador, mas sim como uma exigência para a sobrevivência da própria liberdade garantida.
No caso da liberdade sexual, o conhecimento destes "limites" se dará pelo respeito ao exercício alheio do próprio direito de liberdade sexual, além de outros bens jurídicos constitucionalmente tutelados, como a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas(9).
Assim sendo, é preciso "dissecar doutrinariamente" a liberdade sexual, apresentando um cabedal doutrinário que pavimente seu estudo, em especial no que diz respeito às relações homem/mulher na sociedade, o que faremos nos próximos tópicos.
02.01.ConceitoSegundo a Professora Maria Helena Diniz, em seu colossal "Dicionário Jurídico", a expressão "liberdade sexual" pode ser assim entendida:
"LIBERDADE SEXUAL. Direito penal. Direito de disposição do próprio corpo ou de não ser forçado a praticar ato sexual. Constituirão crimes contra liberdade sexual: o ato de constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça; o atentado violento ao pudor, forçando alguém a praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal; a conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude; o ato de induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ato libidinoso."(10)
A noção jurídica de liberdade sexual está ligada, portanto, à idéia de livre disposição do próprio corpo, concepção esta que se relaciona a uma visão individualista do ser humano, que pode ser sintetizada na frase, tão ouvida entre os apologistas da legalização das drogas, de que "cada um faz com seu corpo o que quiser".
Sobre a liberdade sexual, ensina Magalhães Noronha:
"Tal liberdade não desaparece nas próprias espécies inferiores, onde se observa que geralmente o macho procura a fêmea, quando ela se acha em cio, isto é, predisposta ao coito. Nelas, também, a requesta antecedente é o fato observado pelos zoólogos.
Os odores, as cores, as formas, a força, o som, as danças etc. são sempre recursos postos em prática antes do amplexo sexual.
No homem, a requesta antecede ao ato, mesmo entre os selvagens. São sempre a música e a dança os atos preliminares da união dos sexos, como anota Havelock Ellis.
Fácil, pois, é conjeturar quão intenso é o primitivismo bárbaro do que atenta contra a disponibilidade sexual da pessoa"(11).
Há, portanto, sedimentação doutrinária acerca da existência e importância da liberdade sexual para o convívio entre os indivíduos na sociedade moderna, estando a mesma, inclusive, tutelada por normas de natureza criminal.
Mas nem sempre foi assim!
A conquista de um direito à liberdade sexual não foi entregue de mão beijada a homens e, especialmente, mulheres. Estas, em especial, travaram uma longa batalha para a conquista dos seus espaços, principalmente no que diz respeito ao reconhecimento da ordem jurídica, política e social do seu direito de "dispor do seu próprio corpo".
02.02. Escorço histórico
As relações (sociais e de Direito) entre os sexos, através dos tempos, não estiveram sempre nesta condição de isonomia legal de tratamento, hoje garantida na esmagadora maioria dos ordenamentos jurídicos do mundo(12).
Na verdade, desde a antiguidade, prevalecia a idéia preconcebida de superioridade masculina, em que a mulher era reduzida à condição muito próxima de objeto, não somente sexual, mas também de Direito(13). Na visão sintética de Aloysio Santos, "em termos sexuais, as mulheres não representavam senão o papel de outro organismo vivo, capaz de satisfazer as necessidades do homem e da matriz reprodutora. Ela era, então, simples objeto do sexo, socialmente subjugada pelo homem"(14).
Até mesmo na Bíblia Sagrada, mais especificamente no livro de Gênesis, encontramos fundamento para tal conduta discriminatória e subjugadora, vez que, ao punir o homem por ter sucumbido à tentação, Deus dirigiu-se à mulher, condenando-a: "Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor terás filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará" (Gn., 3, 16).
Vale destacar, porém, que, nas sociedades primitivas, a primeira forma de divisão do trabalho também tomava como parâmetro o sexo, vez que aos homens era destinada a atividade de pesca e caça; e, às mulheres, a coleta dos frutos e, em fase posterior, também a cultura da terra.
Nas sociedades antigas mais organizadas, vale transcrever o testemunho sempre autorizado de Alice Monteiro de Barros, que preleciona que "a história registra, sobretudo no Egito antigo, que a tecelagem constituía uma ocupação reservada às mulheres, competindo-lhes tosquiar as ovelhas e tecer a lã. Também há registros de trabalho das mulheres na ceifa do trigo, no preparo da farinha e na massa do pão, enquanto os homens o assavam. Está documentado, nos papiros, que as mulheres mais pobres trabalhavam em grandes obras de construção. Depois de assinalar o papel político desempenhado por algumas mulheres, onde sobressai o reinado de Hatshepsut, em meados do segundo milênio, afirmam alguns historiadores que o antigo Egito não considerou, em princípio, a mulher como um ser inferior, provavelmente dada a mediocridade de suas preocupações militares. Acontece que a tradição exigia que os faraós fossem filhos de Amon (deus do Sol); em conseqüência, logo apareceu uma lenda segundo a qual esse grande deus teria envolvido Ahmasi, mãe de Hatshepsut, em uma nuvem de perfume, anunciando que aquela daria à luz uma filha, que o representaria na Terra. E para vencer os preconceitos da época, sustentam os historiadores que Hatshepsut, ao assumir totalmente o poder, exercido durante certo período com o irmão, teve que sacrificar seu comportamento inicial, de agir como mulher, conduzindo-se à semelhança de um faraó, vestida de homem e usando barba, como, aliás, nos mostram os grandes monumentos"(15).
O certo é que, apesar de algumas ressalvas históricas, as visões preconcebidas da mulher como um ser inferior dominaram a Antigüidade, seja nas sociedades primitivas, seja no Egito, Grécia ou antiga Roma(16).
Com a Idade Média, a situação jurídica da mulher não foi muito modificada, apesar da sexualidade humana ter passado a exercer um lugar de destaque nas preocupações sociais, principalmente em função da notória influência da Igreja. Como observa Aloysio Santos, dada esta ascendência, em especial, do Catolicismo, "estava a cargo da hierarquia religiosa, na época, a definição do comportamento considerado eticamente ideal para ser seguido pelos jovens e o grupo familiar cristão. Na verdade, a Igreja medieval se intrometia com tudo aquilo que se relacionasse com a vida dos povos e, por isso, teve de assumir o encargo da crítica da sexualidade humana"(17).
Reprimida pelos representantes da fé e pela sociedade em geral, nada mais cabia à mulher do que se limitar à sua condição de "sexo frágil", patrimônio de seu senhor, ligando-se às atividades caseiras e à vida doméstica, sendo considerada, em função da sua presumida debilidade física, como uma mão-de-obra secundária.
Na Idade Moderna, com o Renascimento, a mulher toma, do ponto de vista social, uma posição de maior relevo, seja pela redenção procedida pelos poetas, como Dante e Petrarca, que exaltavam a figura feminina, seja pelo próprio Cristianismo, que ao dignificá-la pelo casamento monogâmico, possibilitou-lhe, no âmbito do lar, acesso à leitura e às coisas da inteligência e ciência, "aparecendo as figuras das ‘preciosas’, das ‘sábias’ e ‘enciclopédicas’.(18)"
Neste panorama histórico das relações jurídicas relacionadas com a emancipação e o trabalho da mulher, a Revolução Industrial, sem sombra de qualquer dúvida, é um marco divisório para a efetiva conquista do espaço feminino na sociedade moderna.
Com efeito, o surgimento da máquina serviu para equilibrar o desnível existente entre o trabalho do homem e da mulher, porque menor a força física a ser despendida. Assim sendo, por mais contraditório que possa parecer, é com o início da exploração industrial do trabalho da mulher que esta consegue dar seus primeiros passos para a necessidade de reconhecimento da igualdade (com o respeito às diferenças essenciais, acrescentamos nós!) de tratamento com os homens.
Ressalte-se que esta introdução das mulheres no mercado de trabalho não se deu em função de um reconhecimento jurídico de sua igualdade, mas sim, a contrario sensu, pela sua condição de mão-de-obra mais dócil e barata, o que nos remete à velha conclusão de que é sempre o dinheiro, a "mola-mestra do mundo", que está por trás das grandes transformações sociais e jurídicos, nelas incluindo o próprio surgimento do Direito do Trabalho.
Como observam Orlando Gomes e Elson Gottschalk, o "emprego de mulheres e menores na indústria nascente representava uma sensível redução do custo de produção, a absorção de mão-de-obra barata, em suma, um meio eficiente e simples para enfrentar a concorrência. Nenhum preceito moral ou jurídico impedia o patrão de empregar em larga escala a mão-de-obra feminina e infantil. Os princípios invioláveis do liberalismo econômico e do individualismo jurídico davam-lhe a base ética e jurídica para contratar livremente, no mercado, esta espécie de mercadoria. Os abusos desse liberalismo cedo se fizeram patentes aos olhos de todos, suscitando súplicas, protestos e relatórios (Villermé) em prol de uma intervenção estatal em matéria de trabalho de mulheres e menores. Com as primeiras leis que surgiram, em diversos países europeus, disciplinando esta espécie de trabalho, surgiu, também, para o mundo juridico, a nova disciplina: O Direito do Trabalho. Com efeito, foi o Moral and Health Act, de Roberto Peel, em 1802, a primeira manifestação concreta que corresponde à idéia contemporânea do Direito do Trabalho"(19).
E é com este reconhecimento da exploração da mão-de-obra feminina, cuja inserção no mercado de trabalho já havia se tornado um fato irreversível, que os construtores do Direito começam a centrar esforços numa efetivação da tutela de igualdade entre os sexos.
Fazendo um salto histórico, é importante destacar o papel da revolução feminista (ou sexual), movimento de emancipação feminina desencadeado na segunda metade deste século, através do qual as mulheres conseguiram o reconhecimento desta isonomia com os homens, pelo menos nos dispositivos normativos ocidentais. A atuação das "feministas" pela garantia e certificação de seus direitos, simbolizada na famosa queima pública dos sutiãs, possibilitaram a demanda por um tratamento igualitário com a execração da superioridade masculina discriminatória.
Do ponto de vista do Direito positivo brasileiro, vale destacar que tal igualdade está consagrada no texto constitucional, a saber, no art. 5º, I, da Carta Magna, ao preceituar que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição".
Todavia, o simples reconhecimento jurídico da imperatividade do tratamento isonômico entre os sexos não é suficiente para se garantir, na prática, a efetividade do exercício responsável da liberdade sexual.
A agressividade (decorrente, talvez, da permissividade deste final de século) com que as condutas de natureza sexual são praticadas na sociedade moderna têm gerado novos enfoques de discussão sobre os limites do comportamento social aceitável.
Ao conquistar o reconhecimento jurídico da liberdade sexual, homens e mulheres passaram a conviver com uma nova onda de problemas, antes não encarados de forma séria, dentre os quais a questão da orientação sexual, tema que será tratado no próximo tópico.