2.4 Considerável Número de Pessoas
A quantidade de posseiros aqui deve ser suficiente para levar função social ao imóvel ocupado ao realizar obras e serviços de relevante interesse social.
Carecedor de critérios objetivos a essa quantificação, o juiz deverá observar no caso concreto, as dimensões da extensa área em contraposição ao número de pessoas ocupantes, sem olvidar o objetivo social da norma.
Lembra Silva (2009,p. 43), o magistério de Augusto Geraldo Teizen Junior que bem exemplifica o acima escandido.
Imagine que num terreno urbano, de mil metros quadrados, três pessoas dele venham a adquirir posse e a partir daí lá construam um pequeno barracão para exploração de uma oficina mecânica de autos. Com o passar do tempo, o pequeno empreendimento se organiza, prospera e serve para a subsistência dos três sócios e de suas famílias. Passando mais de cinco anos de posse ininterrupta e de boa-fé, um dia são surpreendidos com a citação de uma ação reivindicatória. Será que mil metros quadrados não foram uma área extensa o bastante para o exercício eficaz da posse trabalho e respectiva função social? Será que os três sócios não formam um considerável número de pessoas grande e suficiente o bastante para empreitar obras e serviços de relevante valor social e econômico, tendo em vista que da pequena oficina eles sobrevivem e ajudam a manter as respectivas famílias? A resposta é positiva para os dois questionamentos.
2.5 Realização de Obras e Serviços considerados pelo Juiz de Interesse Social e Econômico Relevante
Aqui o magistrado utilizará de sua discricionariedade na apreciação dos critérios da posse qualificada, pois presentes requisitos indeterminados.
Tem-se que a coletividade quando passa a utilizar a área que não atendia sua função social, de modo a construir moradia, ou ainda a explorar atividade econômica como plantações ou mesmo industrial, atenderá importante interesse para o social e para o econômico. Desse modo, verifica-se a efetivação dos ditames constitucionais da moradia e valorização do trabalho humano, livre iniciativa, função social da propriedade identificada na posse qualificada pro labore.
É necessário frisar que a lei fala de obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante. No entanto, nem sempre esses requisitos estarão conjugados, como se poderia entender a partir de uma leitura gramatical da norma em virtude da conjunção "e". Ramos (2006) bem exemplifica a hipótese quando a ocupação ocorre apenas para fins de moradia. No caso existe a obra, mas ausenta-se o serviço. Em um terreno ocupado para plantação de horta comunitária, existe o serviço, mas não a obra. Do mesmo modo ocorre com o interesse social e econômico relevante, que podem ser visualizados nos mesmos exemplos.
O autor ainda coloca que, havendo o reconhecimento de interesse social, deverá o Ministério Público intervir como custus legis, sob pena de nulidade.
2.6 Justa Indenização
O art. 1228, §5º, do Código Civil reza que o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário. Aludida indenização deverá ser prévia e em dinheiro. Esse entendimento está amparado no art. 5º, XXVI, da Constituição Federal, aplicada a todas as espécies de desapropriação, exceto a desapropriação-sanção e desapropriação confisco.
Para calcular o valor justo, o magistrado deverá suprimir todas as benfeitorias realizadas no bem pela coletividade, inclusive os gastos do Poder Público com melhoria urbana, afastando a fixação pelo valor de mercado. Se assim não fosse, seria latente o enriquecimento ilícito do proprietário, tendo em vista que se aproveitaria de trabalho alheio na propriedade que antes não atendia sua função social.
O Conselho da Justiça Federal editou Enunciado nº 240 que corrobora o esposado, "A justa indenização a que alude o §5º do art. 1228 não tem como critério valorativo, necessariamente, a avaliação técnica lastreada no mercado imobiliário, sendo indevidos os juros compensatórios".
Além disso, conforme Mazzili e Garcia (2005), seria possível aplicar por analogia o art. 27, do Decreto-Lei 3365/41, que dispõe sobre a desapropriação por utilidade pública, quanto aos critérios fixadores do quantum indenizatório que assim dispõe:
O juiz indicará na sentença os fatos que motivaram o seu convencimento e deverá atender, especialmente, à estimação dos bens para efeitos fiscais; ao preço de aquisição e interesse que deles aufere o proprietário; à sua situação, estado de conservação e segurança; ao valor venal dos da mesma espécie, nos últimos cinco anos, e à valorização ou depreciação de área remanescente, pertencente ao réu.
Menciona-se, ainda, que depois de pago o valor estipulado na sentença é que se transferirá a propriedade por meio de registro em cartório. Sobre esse aspecto Diniz (2004, p.93-94) faz importante observação,
Pago o preço, a sentença valerá como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores, gerando, como diz Nelson Kojranski, um condomínio híbrido. Cada condômino terá posse e propriedade sobre área certa e sobre área comum. Isto é assim, porque a “extensa área” ocupada preservará sua unidade, tendo uma só matrícula no registro imobiliário e as obras, levadas a efeito em conjunto ou separadamente, serão tidas como propriedade condominial.
3 A RESPONSABILIDADE PELO PAGAMENTO DO VALOR EXPROPRIATÓRIO
Como visto, a justa indenização é um dos requisitos da desapropriação judicial. No entanto, a lei foi omissa no que pertine à responsabilidade pelo pagamento. A doutrina e os enunciados do Conselho da Justiça Federal procuraram suprir essa lacuna.
É sabido que as espécies de desapropriação estabelecidas na Constituição Federal são impulsionadas pela Administração Pública, cabendo a esta o dever de indenizar. Contudo, alguns entendem que, no caso da expropriação judicial movida por particulares em pedido contraposto de ações reivindicatórias, a indenização deverá ser arcada pelos possuidores.
Melo (2010, p.18) expõe esse entendimento quando coloca, "Aliás importa considerar que o preço para a aquisição da área não será pago pelos cofres públicos e sim pelos ocupantes". A corroborar com essa tese, poder-se-ia alegar que o Poder Público não seria parte do processo, além disso, haveria imposição à Administração de um ônus capaz de gerar desequilíbrio nas finanças públicas.
Para a efetivação da indenização, Carneiro (2008) escreve que os possuidores poderiam utilizar de financiamento subsidiados, outros programas de habitação ou levantamento de FGTS, afastando, assim, a Administração Pública de arcar com essa despesa.
O Conselho da Justiça Federal também entendeu que os possuidores seriam os legitimados ao pagamento do quantum indenizatório, ao editar o Enunciado nº 84,
A defesa fundada no direito de aquisição com base no interesse social (art. 1228,§§ 4º e 5º, do novo Código Civil) deve ser arguida pelos réus da ação reivindicatória, eles próprios responsáveis pelo pagamento da indenização.
Farias e Rosenvald (2010, p.46), a seu turno, lembram que os posseiros na maioria das vezes são hipossuficientes, impossibilitados de pagarem o valor da indenização, devendo estes denunciar à lide o Poder Público. Desconsiderar essa possibilidade consideram os mesmos autores, fará com que a desapropriação judicial não passe de mero instituto legal “[...]em favor da coletividade de classe média ou abastada que tenham ingressado em terrenos, para a regularização da situação possessória pelo pagamento de um preço, pela aquisição da propriedade.”
Posteriormente, o Conselho da Justiça Federal, com notória evolução de entendimento pretérito, editou o Enunciado nº 308, pela possibilidade de pagamento da indenização pela Administração:
A justa indenização devida ao proprietário em caso de desapropriação judicial (art. 1.228, § 5°) somente deverá ser suportada pela Administração Pública no contexto das políticas públicas de reforma urbana ou agrária, em se tratando de possuidores de baixa renda e desde que tenha havido intervenção daquela nos termos da lei processual. Não sendo os possuidores de baixa renda, aplica-se a orientação do Enunciado 84 da I Jornada de Direito Civil.
Cumpre evidenciar que esse se mostra o entendimento mais coerente com a finalidade do instituto. Frise-se que nem sempre os posseiros, quando de baixa renda, poderão se sujeitar a financiamentos ou mesmo levantar o FGTS, pois a informalidade é realidade em grande parte das famílias de poucos recursos. Daí ser possível a atuação do Poder Público, como Estado provedor dos direitos sociais pregoados, por exemplo, no art. 6º da Constituição Federal.
Contudo, caso a situação financeira da coletividade seja outra, a indenização deverá ser rateada entre todos, no caso de posse pro indiviso. Sendo delimitada a ocupação de cada possuidor, pro diviso, a indenização será dividida de acordo com a extensão e valor do espaço individual (FARIAS e ROSENVALD, 2010).
No que pertine aos entes da Federação, na hipótese, nos quais recairia a responsabilidade, a solução mais razoável seria observar os preceitos constitucionais que atribuem responsabilidades aos Estados, Municípios e União (PAGANI, 2009).
Destarte, a partir desse critério, pode-se dizer que caso o imóvel esteja em zona urbana, o dever de indenizar será da municipalidade. É que o art. 182, da Constituição Federal, atribui aos Municípios o dever de ordenar a cidade. A seu turno, quando o bem for localizado em zona rural, a União será responsável pela indenização, em virtude dos artigos 184 a 186, da Lei Maior.
No entanto, a doutrina consultada pouco discorre sobre a possibilidade do Estado, ente federativo, ser também responsabilizado pela obrigatória indenização. A partir da leitura do art. 23, IX, da Lei Maior, percebe-se que aludida norma constitucional atribui à União, Estados e Municípios promover programas de construção de moradia e melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.
É fácil, pois, depreender que quando a área possuída for utilizada para fins de moradia, será possível que a coletividade de baixa renda denuncie à lide o ente federativo responsável segundo o entendimento já esposado, juntamente com o Estado. Esta prática, inclusive, seria de mais valia quando o responsável fosse pequeno Município, de pouca renda, a fim de não se esbarrar na reserva do possível, podendo o Estado custear parte do quantum indenizatório.
Ramos (2006) traz outra colocação acerca da responsabilidade do Poder Público. Segundo ele o ente federativo responsável seria aquele competente para julgar a ação. A título de exemplificação, se o foro fosse da Justiça Estadual, a indenização caberia ao Estado.
Com a devida vênia, esse não parece ser o entendimento mais adequado, pois excluiria o Município, a quem a Constituição atribuiu a responsabilidade pelas políticas de desenvolvimento urbano. Isso porque inexiste Justiça Municipal.
4 SIMILITUDE COM DEMAIS INSTITUTOS
A desapropriação judicial surge com o Código Civil de 2002, configurando-se instituto único no ordenamento jurídico pátrio. No entanto, chega-se a afirmar que o legislador pretendeu criar nova figura de usucapião (PAGANI, 2009). Também se duvida de sua utilidade, porquanto existem diversas espécies de usucapião que atingiriam as mesmas finalidades (VENOSA, 2008).
Constata-se que a expropriação judicial pode ser considerada um instituto híbrido, com características de usucapião e de desapropriação, mas esses não se confundem, conforme se demonstrará.
4.1 Expropriação Judicial e Usucapião Coletivo
Dispõe a Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade) sobre a usucapião coletiva como instrumento que promove a função social da propriedade visando a “regularização de áreas de favelas ou de aglomerados residenciais sem condições de legalização de domínio”, conforme diz Gonçalves (2006, p.245). Assim, dispõe a norma em seu art. 10,
As áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupados por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
Infere-se, pois, que os pressupostos desse instituto são: a) áreas urbanas com mais de 250m²; b) ocupação por população de baixa renda para sua moradia; c) prazo de 5 anos ininterruptamente e sem oposição; d) impossibilidade de identificação dos terrenos ocupados por cada possuidor; e) possuidores não proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
Embora sejam semelhantes quanto à defesa de uma coletividade que deu função social à propriedade, a desapropriação judicial apresenta grandes diferenças.
No instituto surgido com o atual Código Civil não consta a exata extensão da área, devendo o juiz suprir tal lacuna; a desapropriação judicial se aplica a imóveis tanto rurais quantos urbanos, ao passo que a usucapião coletiva se aplica tão só a estes últimos; pode ser alegada por posseiros de baixa renda ou não; o prazo de posse é “mais” de 5 anos; exige o requisito da boa-fé; exige, ainda, obras ou serviços de interesse social e econômico relevante, enquanto a espécie de usucapião analisada necessita que a ocupação seja para fins de moradia; desnecessário haver impossibilidade de identificação da área por cada posseiro; possuidor pode ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural; inexige o animus domini.
Vê-se que uma coletividade de classe média pode usar um terreno para fins econômicos, pelo que afastaria a possibilidade de se defender, caso conste com ré em ação reivindicatória/possessória, utilizando-se de qualquer espécie de usucapião no interregno de cinco anos.
Sendo, assim, poderia concluir que a desapropriação judicial só seria favorável à classe média, detentora de condições para arcar com o quantum indenizatório, pois a população de baixa renda faria uso de usucapião na sua defesa. Não se deve olvidar, contudo, que os hipossuficientes poderiam alegar na contestação os dois institutos, assim, haveria plenitude de defesa. O magistrado, então, decidiria por aquele mais célere, caso satisfeito os requisitos tanto da usucapião como da expropriação judicial, ou seja, o primeiro, visto que não esperaria pelo pagamento indenizatório.
Por outro lado, percebe-se que a diferença maior entre os institutos é a sobredita indenização, inexistente na usucapião, em quaisquer de suas espécies.