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Sobre a discricionariedade na interpretação jurídica

Agenda 25/11/2011 às 14:11

No processo de consolidação da vontade da norma, é a ponderação que guia as decisões. É meramente acidental se a ponderação ocorre na fase política ou judicial; sua característica principal é a de criar direito sem vinculação ao texto, o que ocorre tipicamente com legislador e acidentalmente com o juiz.

RESUMO: A completa vinculação do intérprete ao texto da norma é um ideal de segurança jurídica que se enfraquece diante dos casos difíceis, que exigem dele a recriação do significado normativo. A possibilidade de uma vinculação artificialmente elaborada pelo legislador (expressa pelo Caso B do ensaio) indica que as normas são traços acidentais de uma realidade jurídica subjacente e complexa, que não se deixa apreender por um único método de interpretação e está presente tanto em casos de vinculação como de discricionariedade. A ideia reguladora de que o direito é um sistema coerente contextualiza a norma, revelando-a um mero instrumento para a realização de um estado de coisas preferível.

PALAVRAS-CHAVE: Direito; Filosofia; Linguagem; Discricionariedade.

ABSTRACT: The interpreter’s obedience to a specific meaning of a normative text is an ideal of certainty that cannot survive to hard cases, which force the interpreter to recreate the meaning a legal expression. The possibility of an artificial narrowing of significance indicates that norms are accidental traces of a juridical reality underneath the text. This reality is not given by one single method, but supports any method of interpretation. The interpretive idea of Law as a coherent system contextualizes the normative texts, revealing them as a mere instrument to make real the situation that the ideal legislator wants.

KEYWORDS: Law; Philosophy; Language; Judicial Discretion.


Introdução

Por trás de um texto de norma jurídica há um bem que merece proteção. A noção de bem jurídico varia, mas é sempre algo que a lei tenta proteger, mesmo que não caiba em definições precisas. Quem enuncia um dever-ser procura defender algo, enuncia uma vontade a favor de um estado de coisas. A situação preferida possui bens que a situação preterida não possui, os quais são os protegidos pelo enunciado da norma.

A forma como esse bem se revela é não raramente ocultada pela técnica de interpretação jurídica, que transforma a interpretação mais trabalhosa em algo operacionalizável. Isso não significa racionalidade empobrecida; pelo contrário, a técnica tem a qualidade de transformar símbolos complexos e multiformes em símbolos simples e uniformes, sem que se perca de vista o estado de coisas desejado. O presente ensaio é uma tentativa de entender alguns aspectos dessa técnica jurídica e o desvelamento do estado de coisas preferível.

O estudo inicia com dois casos em que a linguagem do direito lida com a complexidade das situações fáticas relevantes. No primeiro caso, a hipótese normativa se mantém propositalmente aberta a interpretações. A hipótese no segundo caso tem a complexidade abreviada pelo legislador no próprio texto da norma. Em ambos é complexo identificar a situação de fato, mas configuram duas abordagens distintas: uma expõe a vagueza e a outra a oculta. Ocultar ou revelar a vagueza é o que caracteriza, nessa ordem, regras e princípios, e a distinção possui uma importante função prática.1 No entanto, aqui se deixa em segundo plano tal distinção em nome de uma compreensão da interpretação jurídica a partir de duas formas de redigir comandos normativos.


2. Caso A: hipótese mais aberta

Exemplo 1: Proibido transitar com veículos nesta via.

O exemplo, análogo ao trabalhado por Hart, é de complexidade conhecida. Deve-se analisar a situação da via de tráfego e interpretar o que o legislador quis proteger quando se referiu à proibição de veículos. Se o objetivo é a segurança dos transeuntes, não entram na lista de proibições carrinhos de controle remoto de pequeno porte e brinquedos infantis em geral; carros de passeio, caminhões e ônibus estariam entre os elementos proibidos pela norma. Se o objetivo fosse evitar o barulho, veículos de grande porte silenciosos seriam autorizados a trafegar, enquanto carros de brinquedo barulhentos seriam proibidos.

Exemplo 2: Proibido transitar com automóveis nesta via.

Nessa outra formulação, o termo central na hipótese é mais específico do que na anterior, mas ainda assim não é possível determinar univocamente o significado automóveis. O sentido literal, do dicionário, que poderia resolver controvérsias, é apenas uma convenção. A primazia da literalidade é uma ilusão metafórica; é útil em uma série de contextos, mas os limites práticos de sua aplicação se manifestam em situações de interpretação mais complexas. Insistir na literalidade em ambientes complexos é exigir algo que dela não se pode obter. Na abundância de significado, a literalidade é simples em demasia.

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Da mesma forma, insistir no sentido comum ou literal em ambientes especializados é inconveniente. Frequentemente a linguagem jurídica utiliza significados técnicos específicos que mudam ou restringem o sentido comum dos termos. Em contextos de linguagem técnica, restritos, a literalidade significa demais.

Nos dois exemplos citados, para identificar o sentido do texto é necessário observar a finalidade da norma. O significado imediatamente visível é apenas uma indicação para a busca do significado relevante, o qual é impossível definir com todos os detalhes antes da ocorrência do caso concreto. O plano teleológico ganha importância, até mesmo por permissão do legislador. Esse plano é o que entrega significado ao texto; o cenário desejado pela norma é elemento importante para identificar e operar os significados dos símbolos linguísticos.


3. Caso B: substituição dos conceitos

As regras existem para reduzir a complexidade na interpretação dos textos normativos. Nelas, o encaixe do fato observado à hipótese da norma se dá de forma muito simples; por isso se diz que com as regras o método de interpretação é dedutivo ou subsuntivo, isto é, a partir da ocorrência do fato meramente observado se chega à conclusão jurídica sem utilizar nenhuma forma controversa de raciocínio. As regras entregam uniformidade e segurança jurídica. Veja-se outro exemplo hipotético.

Exemplo 3: Capacidade jurídica inicia aos dezoito anos.

É comum na linguagem jurídica a substituição de termos com significado complexo por termos de simples interpretação que guardem relação com o acontecimento inicial substituído. No caso exemplificado, a maturidade jurídica é associada à maturidade psicológica que, dificilmente identificável, é substituída pela passagem temporal de fácil verificação. Isso evita controvérsia, uma vez que afasta a necessidade de caros exames psicológicos para determinar a maturidade do sujeito, ao passo que diminui a arbitrariedade: é razoável supor que a grande maioria dos jovens de dezoito anos em condições normais de saúde mental pode cuidar de sua vida jurídica. Ainda que um exame psicológico revelasse de forma mais direta e precisa o grau de maturidade para os atos jurídicos, a idade é um critério mais prático.

A técnica jurídica, então, relega ao segundo plano o significado relevante, pondo em primeiro plano um conceito substituto de fácil manejo. Enquanto o legislador nos exemplos do caso A se conforma com a indefinição dos temos, no caso B a segurança jurídica é reforçada artificialmente. No encaixe da norma com a realidade se encontrarão muitas pessoas com dezesseis anos mais responsáveis do que tantas de vinte, mas isso pouco importa ao direito. Entre os prós e contras, o sistema jurídico prefere forçar a uniformização na aplicação da norma. Como existe relação entre a idade da pessoa e o senso de responsabilidade, a margem de erro é segura.


4. Análise comparativa dos dois casos

Tanto no caso A como no caso B, as situações de fato não podem ser perfeitamente determinadas no texto da norma, requerendo do legislador o emprego da técnica legislativa para contornar o problema. A diferença entre as duas opções ilustradas pelos casos reside no grau de discricionariedade concedido ao intérprete.

No primeiro, o legislador permitiu a interpretação, e a redação da norma se curvou à complexidade dos fatos. Nessa situação, o uso de critérios auxiliares na decisão jurídica não é apenas bem-vindo, mas necessário. Frise-se que interpretar os termos de acordo com o senso comum é um critério auxiliar, como também o são o uso de princípios ou precedentes.

No segundo, o legislador proíbe expressamente a interpretação ao estabelecer um ponto temporal relevante juridicamente. Idade e capacidade de responder pelos atos são dois conceitos distintos; a maturidade guarda uma relação com o tempo de vida, mas está claro que não há uma mudança brusca na mente de alguém apenas pela chegada da data de aniversário. O direito cria a ligação artificial e tecnicamente conveniente entre aniversário de dezoito anos e maturidade.

Se o ordenamento jurídico fosse um quebra-cabeça, o texto de norma seria uma peça. Os casos discricionários (A) correspondem a peças maiores, uma vez que o intérprete contribui mais para formar a figura inteira; os casos vinculados (B) correspondem a peças mais discretas. Embora faça diferença para o funcionário que aplica a lei, do ponto de vista filosófico, a prioridade da figura inteira torna irrelevante a diferença entre as peças. Nas conclusões abaixo, deixa-se de lado a diferença para entender, a partir da semântica por ela revelada, a imagem completa.


5. Conclusões

5.1 A utilização de conceitos substitutos na hipótese normativa é não apenas comum, mas inevitável

No caso B, ficou claro que um estado de coisas subjacente (a capacidade jurídica) foi substituído por um conceito de simples identificação (dezoito anos de idade). Um rápido olhar indica que houve uma simplificação do método de identificação da capacidade jurídica: substitui-se uma análise psicológica (método original, primário) pela contagem do tempo (método artificial, secundário). Um olhar mais cuidadoso, no entanto, revela que até a análise psicológica seria um método artificial para identificar a capacidade jurídica. Não há algo como uma essência da responsabilidade para além do método, já que a essência é constituída pelo método que a procura.

Um dito conhecido da filosofia analítica é o de que "o significado de algo é seu método de verificação". O significado da capacidade jurídica é a forma que o legislador pensar conveniente para encontrá-la. O método da análise psicológica seria apenas um substituto mais caro e detalhado da verificação da maturidade; nada garante que ele fosse um método mais verdadeiro, e qualquer outro método teria suas conveniências e inconveniências. Além disso, nenhum método seria capaz de definir de maneira cabal o significado de "capacidade jurídica". O verdadeiro é apenas a forma utilizada para encontrar a verdade. Não faz sentido falar que a análise psicológica para averiguar a capacidade mental, mesmo sofisticada, seja mais verdadeira do que a contagem do tempo de vida.


5.2 O cenário subjacente é fundamental na interpretação da norma

Uma segunda conclusão vem ao analisar o sistema jurídico como um conjunto de normas. Se não há um significado verdadeiro determinante, como exposto na conclusão anterior, então o que sustenta a harmonia do sistema é a combinação difusa das intenções das leis, que formam um estado de coisas desejado pelo direito. Esse estado de coisas é o mundo do direito, o conjunto dos fatos jurídicos, uma combinação sem forma definida de todos os conceitos importantes subjacentes e compostos pelos métodos de identificação da técnica de interpretação jurídica. O modo como é identificada a capacidade da pessoa ou a paz numa via pública, a forma como é obtida a riqueza do Estado, o sistema de votação, entre outras manifestações jurídicas, compõem o estado de coisas que o direito quer. Esse plano de fundo que se tem em mente na análise das normas permite uma interpretação sistemática dos textos jurídicos. A integração entre as normas só é possível se houver um mundo interpretado conforme o conjunto das leis jurídicas e os bens juridicamente regulados. É natural na aplicação das leis haver casos difíceis, ou seja, conflitos de prescrições normativas com o estado de coisas desejado. Por isso, é importante que o intérprete identifique a razão de sua vinculação ao texto, pois nos casos difíceis é preciso quebrar a casca e recriar os métodos sem entrar em conflito com legislador ideal. Nisso o intérprete recria também o sentido da norma e o estado de coisas garantido pelo direito: nos métodos que escolhe para atingir o fim da norma, o aplicador recria o significado subjacente.


5.3 Princípios descrevem bem a vontade do direito

Ainda sobre significado subjacente, os princípios, enquanto termos gerais, possuem a importante função de descrever o ambiente jurídico. Abrangentes, relatam o cenário do direito sem que o intérprete precise consultar um grande conjunto de normas e identificar ele próprio os bens fundamentais protegidos. Na medida em que os princípios também criam direito, a identificação da vontade do legislador ideal é facilitada. É errado opor pura e simplesmente os métodos de interpretação de princípios (ponderação) e os das regras (subsunção), pois se obscurece o fato de que toda interpretação normativa, seja de princípios ou regras, precisa considerar, direta ou indiretamente, um cenário juridicamente desejável que subjaz ao conjunto de textos de norma. Tanto na ponderação como na subsunção, vai-se em direção ao cenário almejado pelo ordenamento. A completa vinculação, característica da subsunção, só ocorre quando todas as etapas de ponderação necessárias já foram efetuadas; é simples e funcional, mas resultado de um processo complexo. O intérprete se desvincula quando o caso foge do padrão estabelecido pelas etapas anteriores. Os casos difíceis evidenciam os limites desse padrão, iluminando os contornos das concepções jurídicas. Os padrões e suas exceções delineiam o cenário que expressa a vontade jurídica do Estado.

No processo de consolidação da vontade da norma, é a ponderação que guia as decisões. É meramente acidental se a ponderação ocorre na fase política ou judicial; sua característica principal é a de criar direito sem vinculação ao texto, o que ocorre tipicamente com legislador e acidentalmente com o juiz. Daí seu caráter especial, pois é um método sem método, facilmente descrito e dificilmente controlado: disso vem sua inegável força retórica.


Referências bibliográficas

ÁVILA, Humberto: ""Neoconstitucionalismo": entre a "Ciência do Direito" e o "Direito da Ciência"". In SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel & BINENBOJM, Gustavo (orgs.). Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

CASTRO Jr., Torquato. Metáforas de Letras em Culturas Jurídicas da Escrita: Como se é Fiel à Vontade da Lei? In: BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco & ADEODATO, João Maurício (orgs.). Princípio da Legalidade: Da Dogmática Jurídica à Teoria do Direito . Rio de Janeiro: Forense, 2009.

PUTNAM, Hilary. The Collapse of the Fact/Value Dichotomy and Other Essays. Cambridge: Harvard University Press, 2004.


Notas

  1. ÁVILA, Humberto: “'Neoconstitucionalismo': entre a 'Ciência do Direito' e o 'Direito da Ciência'”. Vinte Anos da Constituição Federal de 1988 (orgs.: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel & BINENBOJM, Gustavo). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. 187-202.
Sobre o autor
Clóvis Falcão

Professor universitário. Mestre e doutorando em Direito pela UFPE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FALCÃO, Clóvis. Sobre a discricionariedade na interpretação jurídica . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3068, 25 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20503. Acesso em: 24 nov. 2024.

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