INTRODUÇÃO
O Poder Executivo, como o Legislativo e o Judiciário, tem o dever de zelar pela Constituição. Entretanto, questiona-se se, na esteira desse dever, lhe seria permitido deixar de cumprir uma lei (ou ordenar que se descumpra) alegando sua inconstitucionalidade. Argumentos de peso são sustentados tanto por aqueles que defendem quanto por aqueles que condenam a prática.
O presente estudo analisará, ainda que brevemente, a doutrina e jurisprudência nacionais, buscando refutar a argumentação invocada por aqueles que defendem a possibilidade de o Executivo negar cumprimento a uma lei pretensamente inconstitucional.
É preciso, antes, fazer um esclarecimento: consideraremos Poder Executivo como sinônimo de Administração Pública direta, nas esferas federal, estadual e municipal. Não será objeto deste trabalho a possibilidade de Autarquias, Empresas Públicas e demais entes integrantes da Administração Pública indireta descumprirem uma lei por a entenderem inconstitucional.
A QUESTÃO NA JURISPRUDÊNCIA E NA DOUTRINA
A jurisprudência do STF não tem uma posição definitiva a respeito do tema, apesar de historicamente haver se posicionado favoravelmente à possibilidade de o Chefe do Executivo ordenar a seus subordinados que não cumpram uma lei pretensamente inconstitucional.
Anteriormente à promulgação da Emenda Constitucional n. 16/65, que criou a representação de inconstitucionalidade, a jurisprudência do STF havia se consolidado no sentido de admitir que o Executivo deixasse de aplicar uma lei por entendê-la inconstitucional1. Após o surgimento do controle abstrato, o Tribunal discutiu longamente a questão por ocasião do MS 15.886. No referido julgamento, o relator, ministro Victor Nunes Leal, proferiu voto no sentido de que o Executivo não poderia se furtar do cumprimento da lei alegando inconstitucionalidade, por haver no sistema meio rápido e eficaz para sanar o vício: a representação de inconstitucionalidade2. Tal entendimento foi acompanhado por alguns ministros, mas, no final, o relator foi vencido, restando afirmada a posição histórica do Tribunal.
Sob a égide da Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal ainda não se posicionou devidamente sobre o tema. Na ADI-MC 221, de relatoria do ministro Moreira Alves, a ementa trouxe o seguinte trecho:
Em nosso sistema jurídico, não se admite declaração de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo com força de lei por lei ou por ato normativo com força de lei posteriores. O controle de constitucionalidade da lei ou dos atos normativos é da competência exclusiva do Poder Judiciário. Os Poderes Executivo e Legislativo, por sua Chefia – e isso mesmo tem sido questionado com o alargamento da legitimidade ativa na ação direta de inconstitucionalidade – podem tão-só determinar aos seus órgãos subordinados que deixem de aplicar administrativamente as leis ou atos com força de lei que considerem inconstitucionais.
Entretanto, tal tema não foi discutido no mérito da ação, pelo que deve ser considerado apenas como obiter dictum (coisa dita de passagem), não refletindo, necessariamente, a posição do Tribunal.
No STJ, contudo, há jurisprudência expressa no sentido de permitir que o Executivo não aplique uma lei que no seu entendimento seja inconstitucional. No REsp 23.121, ficou decidido que “o Poder Executivo deve negar execução a ato normativo que lhe pareça inconstitucional”. Esse entendimento foi recentemente confirmado3.
A doutrina não é uníssona sobre a questão. Luís Roberto Barroso defende a possibilidade de o Executivo não cumprir uma lei que considere inconstitucional, tendo como principal argumento a supremacia da Constuição4. Alexandre de Moraes tem o mesmo posicionamento, admitindo, contudo, a possibilidade de um exame posterior pelo Poder Judiciário.5
Em sentido contrário, Gilmar Ferreira Mendes sustenta que, ao menos nos planos federal e estadual, onde os Chefes do Executivo têm legitimidade para provocação do controle concentrado (com possibilidade, inclusive, de pedido de medida cautelar), o Executivo não pode deixar de aplicar uma lei por considerá-la inconstitucional6. Walber de Moura Agra também discorda da possibilidade de o Executivo escusar-se do cumprimento da lei, invocando a presunção de legitimidade de que gozam os atos do Poder Público e a insegurança jurídica que poderia advir de tal controle político7.
ARGUMENTAÇÃO
O principal argumento invocado por aqueles que advogam a tese descumprimento de lei inconstitucional – do qual decorrem todos os outros – é a supremacia da Constituição. Segundo entendem alguns autores, “aplicar a lei inconstitucional é negar vigência à Constituição”8, de modo que, havendo conflito entre a lei e a Constituição, pode o Executivo negar cumprimento a uma lei que entenda inconstitucional. Mas do que um poder, entendem este autores ser um dever do Chefe do Executivo9, que, assim o fazendo, estaria prestigiando a Constituição.
Tal argumento, apesar de sedutor, a nosso ver não prospera. É certo que a supremacia da Constituição é uma importante conquista do constitucionalismo moderno, sendo igualmente certo que tal ideia deve pautar as ações de todos os agentes da ordem constitucional. Entretanto, não podemos reduzir a questão a termos simples. A supremacia da Constituição deve ser globalmente considerada, já que é cediço que não se interpreta a Constituição em tiras.
Assim, deve se constatar que há relevantes argumentos, que prestigiam a Constituição e sua supremacia, indicando que o Executivo não pode deixar de cumprir uma lei sob o argumento da inconstitucionalidade. Podemos elencá-los da seguinte forma: (i) presunção de constitucionalidade; (ii) legitimação para provocação do controle concentrado; (iii) separação de poderes; (iv) segurança jurídica. Analisemo-los.
A presunção de constitucionalidade consiste na suposição de que todos os atos do Poder Público (entre os quais se inclui a lei) são constitucionais. Tal postulado é perfeitamente lógico, na medida em que seria absurdo imaginar (presumir) que os entes constitucionalmente instituídos (entre os quais se inclui o Poder Legislativo) atuam contra a Constituição. Ora, se são por ela constituídos, presume-se que sua atuação é com ela compatível. É verdade que tal presunção é juris tantum (relativa), e, como tal, admite prova em contrário (declaração de inconstitucionalidade), mas essa ressalva só reforça a tese de o Executivo não pode descumprir uma lei antes da declaração de inconstitucionalidade: até a declaração de inconstitucionalidade, a norma presume constitucional10.
É tão relevante para a supremacia da Constituição a presunção de constitucionalidade que o próprio constituinte previu que somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público (art. 97). Essa cláusula (reserva de plenário – full bench), ao estabelecer um quórum de maioria absoluta para declaração de inconstitucionalidade, reforça a presunção de constitucionalidade de que gozam os atos do Poder Público. Se num tribunal, que é o ente a quem cabe a declaração de inconstitucionalidade (Poder Judiciário), exige-se maioria absoluta, não parece razoável deixar ao alvedrio do Chefe Executivo a definição do que é e do que não é constitucional. Ressalte-se, ainda, que, mesmo que admitíssemos a possibilidade de o Executivo descumprir a lei, caso sobreviesse um pronunciamento judicial afirmando a constitucionalidade do dispositivo, não seria mais lícito admitir tal escusa, pois o que era só presunção teria sido confirmado, ganhando força e estabilidade11.
Também cumpre destacar que a legitimação para provocação do controle concentrado foi profundamente ampliada com a Constituição de 1988, passando a incluir o Presidente da República e o Governador de Estado/Distrito Federal entre os que podem propor ação direta de inconstitucionalidade (art. 103, CRFB). Como é sabido, até 1988 o único legitimado para propositura de ADI (na época denominada representação de inconstitucionalidade) era o Procurador-Geral da República. Tal monopólio reduzia sobremaneira a quantidade de questões que chegavam ao Supremo Tribunal Federal12. Entretanto, atualmente há um amplo rol de legitimados que podem pedir a declaração de inconstitucionalidade de uma lei, incluindo-se nesse rol os Chefes do Executivo Federal e Estadual. Caso haja plausibilidade no pedido e perigo de grave dano, pode-se inclusive pedir uma medida cautelar, para suspender a eficácia da lei.
Nesse ponto, há quem defenda que, pelo menos pelo menos em relação aos Prefeitos (Chefes do Executivo Municipal), deveria ser franqueada a possibilidade de descumprimento da lei, por não figurarem estas autoridades no rol dos legitimados para provocação do controle concentrado13. Tal argumentação, contudo, parte do equívoco de olvidar o controle difuso. É verdade que os Prefeitos não podem provocar o controle concentrado, mas eles dispõem do amplo controle difuso, podendo arguir, em qualquer processo de que sejam parte, a inconstitucionalidade de uma norma que lhes pareça inconstitucional.
Outro argumento invocado pelos defensores da tese do descumprimento é a previsão de efeito vinculante em relação à Administração pública direta nas decisões de ADI e ADC. A previsão do efeito vinculante em relação à Administração Pública federal, estadual e municipal. “Ao estabelecer que a declaração de constitucionalidade vincula o Executivo, o dispositivo pressupõe que até que ela ocorra poderia ele considerar a norma inconstitucional”14. Essa leitura está na contramão do que foi dito acima: os atos do Poder Público gozam de presunção de constitucionalidade. O dispositivo apenas deixa claro que, no caso de declaração de constitucionalidade, a decisão vincula o Executivo. Mas, antes mesmo de haver posicionamento do Judiciário, a lei já vincula o Executivo, posto presumir-se constitucional. Assim, a nosso ver, a jurisprudência do STF, que se formou sob a égide da Carta de 1967/69, não se mostra mais aplicável com o advento da Constituição de 1988. Após 1988, operou-se significativa mudança no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, com prevalência do controle concentrado sobre o difuso. Com a quebra do monopólio do PGR, não há mais espaço para essa tese de descumprimento de lei pelo Executivo.
O terceiro argumento que concorre para a impossibilidade de o Executivo deixar de aplicar uma lei é a separação de poderes. É certo que esse princípio não tem mais sua feição clássica, que prestigiava demasiadamente o Legislativo e impedia qualquer interpenetração entre as funções estatais15. Entretanto, ele continua sendo uma importante baliza para a atividade estatal. Hoje, permite-se que os “poderes” exerçam funções atípicas, dentro de certos limites (edição de Medidas Provisórias pelo Executivo, por exemplo), mas não se pode dizer que a separação de poderes imaginada nos auspícios da Revolução Francesa esteja superada16. Dentro dessa concepção, por mais vanguardista que se seja, é inegável que compete ao Poder Judiciário declarar definitivamente a inconstitucionalidade de uma lei. Ao Executivo não é dado suspender a eficácia de lei ou ato normativo, devendo, se entender inconstitucional determinada disposição, provocar o Judiciário para obter um pronunciamento a respeito constitucionalidade da norma. O Executivo deve pautar sua conduta pelo princípio da legalidade17, executando fielmente a lei.
Não queremos com isso dizer que o Executivo esteja relegado a uma função de mero “cumpridor da lei”. Ele também participa do controle de constitucionalidade. Além de poder provocar o Judiciário, a ele cabe analisar previamente os projetos de lei, sancionando ou vetando. O veto, inclusive, não se baseia somente em razões de inconstitucionalidade, podendo ter como fundamento a contrariedade ao interesse público (caso em que não haveria, exatamente, controle de constitucionalidade). Entretanto, essa prerrogativa se esgota em quinze dias. Não utilizada a possibilidade de veto (ou tendo ele sido rejeitado pelo Congresso), o Chefe do Executivo está adstrito ao cumprimento da lei, devendo recorrer ao Poder Judiciário caso queria infirmar a constitucionalidade do diploma legal.
Ainda de referência à separação de poderes, é comum argumentar-se que todos devem defender a Constituição, e que isso legitimaria o controle pelo Executivo. Não prospera tal argumentação por duas razões. A uma, porque, se é certo que todos devem defender a Constituição, também é certo que a Constituição estabelece as formas pelas quais deve ser defendida, oferecendo vários instrumentos de controle de constitucionalidade (veto, parecer da CCJ, etc.), e elegendo como principal a declaração de inconstitucionalidade pelo Judiciário. Não se pode defender a Constituição por uma forma que a mesma não previu18. A duas, porque defender a Constituição é defendê-la como um todo, considerando-a globalmente e, como foi visto, a presunção de constitucionalidade é uma importante ideia agasalhada no texto de 1988. Em última análise, defender a Constituição é também defender a presunção de constitucionalidade gozada pelos atos do Poder Público.
Por fim, também é digna de nota a segurança jurídica que deve reger as relações humanas. Tal princípio, genericamente positivado no art. 5º, XXXVI, da Constituição19, representa importante esteio para os indivíduos, que necessitam de previsibilidade em suas relações. Permitir que o Executivo descumpra uma lei (supostamente inconstitucional), com a possibilidade de o Judiciário posteriormente confirmar sua constitucionalidade, geraria imensa insegurança jurídica: o Executivo criaria uma situação que a qualquer momento poderia ser desfeita com a declaração de constitucionalidade pelo Judiciário. Não parece razoável pairar essa espada de Dâmocles sobre a cabeça dos indivíduos. Se não se pode prever o futuro, é necessário ao menos a previsibilidade em relação aos fatos passados.
CONCLUSÃO
A lei, até que se declare sua inconstitucionalidade, é de observância obrigatória pelo Executivo, em qualquer das esferas da federação. Permitir que o Chefe do Executivo descumpra uma lei ou ordene que seus subordinados a descumpram, sob alegação de inconstitucionalidade, não encontra amparo na atual ordem constitucional, porque:
a) Os atos do Poder Público gozam de presunção de constitucionalidade, a qual só se desfaz com a declaração de inconstitucionalidade;
b) A legitimação para provocação do controle concentrado inclui o Presidente da República e o Governador de Estado/Distrito Federal;
c) A separação de funções estatais definida na Constituição não pode ser desprezada, servindo de baliza para a atuação dos órgãos do Estado;
d) A segurança jurídica é um importante princípio constitucional, representando uma proteção dos indivíduos contra as mudanças fáticas e jurídicas.
REFERÊNCIAS
AGRA, Walber de Moura. Aspectos controvertidos do controle de constitucionalidade. Salvador: JusPodivm, 2008.
CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.
MELLO, Cristiana De Santis Mendes De Farias. O Poder Executivo e o Descumprimento de Leis Inconstitucionais: uma Breve Análise dos Argumentos Desfavoráveis. Direito Público, n. 31, jan./fev. 2010.
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2008.