INTRODUÇÃO
O presente artigo tratará do caso dos contêineres usados como prisão no Espírito Santo. Mais especificadamente, este caso será abordado a partir da ótica do Direito Penal do Inimigo e da posterior crítica feita pela Teoria Geral do Garantismo àquela prática. A discussão desse tema é fundamental, visto que a partir dela – numa visão da Hannah Arendt – a sociedade terá maior conhecimento da conduta desrespeitosa aos direitos humanos por parte do Estado brasileiro e, assim, estará sempre alerta para evitar o perigo ainda maior que pode advir desse tipo de atitude antigarantista estatal. Dessa forma, este artigo tem como objetivos dar ciência à sociedade brasileira sobre o tratamento desumano dispensado aos presos aqui no estado do Espírito Santo, bem como fornecer aos juristas uma fundamentação garantista para a crítica dessas práticas tendo por parte a perspectiva acima mencionada, qual seja, do Direito Penal do Inimigo.
Para alcançar os objetivos propostos, o artigo se estruturou em três capítulos. O primeiro capítulo, cujo título é "Identidade do Direito Penal do Inimigo", explica a tese de Günther Jakobs sobre o Direito Penal do Inimigo caracterizando-a, apresentando sinteticamente seu histórico e, por fim, há a exposição das críticas direcionadas a tal visão teórica. No segundo capítulo – "Uma Aplicação do Direito Penal do Inimigo no Sistema Prisional Capixaba: O Caso dos Contêineres" – é apresentado o caso ocorrido no Espírito Santo e, posteriormente, a aplicação da visão do Direito Penal do Inimigo por parte dos representantes estatais. Já no terceiro capítulo – "Crítica do Garantismo Jurídico à Prática Capixaba" – é tecida uma crítica com base na Teoria Geral do Garantismo à prática capixaba.
Por fim, para embasar as teses aqui elencadas, foi utilizado privilegiadamente o método indutivo – no qual parte-se do caso particular para o geral. Isso porque se passa da aplicação específica do Direito Penal do Inimigo no sistema prisional capixaba para iluminar o caso dos contêineres a partir da Teoria do Garantismo Jurídico, própria de um Estado Constitucional de Direito.
1 IDENTIDADE DO DIREITO PENAL DO INIMIGO
Manuel Cancio de Meliá já nos fornece uma idéia do quão polêmico é o assunto do livro de Günther Jakobs dizendo, logo no Prólogo II da obra "Direito Penal do Inimigo", que "[...] aquilo que pode denominar-se de ‘Direito Penal do Inimigo’ não pode ser ‘Direito’ [...]" (JAKOBS, 2009, p. 11).
Jakobs, principal teórico do Direito Penal do Inimigo, explica que tal perspectiva teórica não é algo diferente do Direito Penal, porém uma das faces deste último. Para o autor, este se divide em Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo. Aquele serve para combater as condutas que podem ser chamadas de delinqüentes, pois somente vão contra a norma jurídica em especial. Já o Direito Penal do Inimigo é aplicado aos casos em que a conduta praticada fere toda a ordem estatal, pondo em perigo a organização social.
Partindo destes pressupostos, Jakobs entende que cada tipo de conduta (do cidadão e do inimigo) terá um tratamento diferenciado. Para a conduta praticada pelo cidadão, cabe a pena [01]; para a conduta praticada pelo inimigo, cabe a medida (custódia) de segurança [02], a qual praticamente não encontra limites no Ordenamento Jurídico. As únicas restrições que podem ser encontrados são o fato de o Estado não privar o inimigo de todos os seus direitos, necessariamente, e de que sua propriedade não é atingida; assim como a consideração de que um futuro acordo de paz poderá ocorrer. Logo, o Estado deve ser cuidadoso em suas ações, visto que quem age daquela forma já não faz parte da sociedade, mas está em estado de natureza e, desta forma, não é regulado pelo "contrato social".
Fica patente neste raciocínio seu diálogo com Hobbes, para quem o crime de traição contra o Estado merece tratamento diferente "[...] pois a natureza deste crime está na rescisão da submissão, o que significa uma recaída no estado de natureza [...] e aqueles que incorrem em tal delito não são castigados como súditos, mas como inimigos" (HOBBES apud JAKOBS, 2009, p. 26). Vale ressaltar que isso tudo decorre da percepção de que quando o indivíduo está "fora do contrato", ele não é mais uma pessoa, no sentido de ser um cidadão que tem seus direitos e deveres garantidos pelo Estado.
É extremamente importante para o presente estudo fazer uma observação. Da mesma forma que Jakobs defende este tratamento diferenciado, ele enfatiza que se o Direito Penal do Inimigo não for aplicado corretamente, ou seja, se ele for concretizado em casos de crimes cometidos por cidadãos, sua realização será ilegítima. Em suas palavras:
[...] Ambas perspectivas têm, em determinados âmbitos, seu lugar legítimo, o que significa, ao mesmo tempo, que também possam ser usadas em um lugar equivocado. [...] Em princípio, nem todo deliquente é um adversário do ordenamento jurídico. Por isso, a introdução de um cúmulo – praticamente já inalcançável – de linhas e fragmentos do Direito Penal do inimigo no Direito Penal geral é um mal, desde a perspectiva do Estado de Direito. [...] (JAKOBS, 2009, p. 40)
Mas como saber quando se deve aplicar o Direito Penal do inimigo e quando se deve aplicar o Direito Penal do cidadão? Ou melhor, quais crimes [03] são considerados um perigo para a ordem social como um todo? Jakobs responde dizendo que os crimes que colocam a ordem social em perigo são os delitos que violam os direitos e as garantias fundamentais [04] em larga escala, como os crimes de guerra, o terrorismo e atentados contra grandes autoridades, por exemplo. Essa afirmação sobre os crimes passíveis de aplicação do Direito Penal do Inimigo se deve ao fato de nas últimas décadas terem surgido vários tratados e declarações internacionais em defesa dos direitos fundamentais, exigindo, então, uma resposta (sanção) mais rigorosa e eficaz em defesa desses últimos quando eles são desrespeitados em larga escala.
Ora, tantas convenções assim não estão lutando pela mera manutenção da ordem, mas sim por sua existência (JAKOBS, 2009, p. 45). Isso porque o mínimo de certeza, de segurança, que o Estado deveria fornecer em relação à eficácia de suas próprias normas, não está sendo fornecido. Dessa forma, o autor defende que a violação a direitos e garantias fundamentais em grandes dimensões é crime praticado por inimigos, não por cidadãos comuns.
Neste momento, a análise histórica importa ao estudo do Direito Penal do inimigo na medida em que permite uma nova visão sobre o crime: nenhum método ou teoria é criado tão somente para ser estudado no mundo da academia; eles são, muitas vezes de modo perigoso, aplicados à realidade prática. Dessa forma, após essas breves considerações, é possível verificar a aplicabilidade e a ideologia escondida por trás do Direito Penal do inimigo.
Os fundamentos do Direito Penal do inimigo remontam desde a Idade Média, na qual os suplícios [05] foram adotados como método de punir os indivíduos que cometessem crimes. Deve-se ressaltar, no entanto, que mais importante que essa função punitiva, os suplícios foram usados para afirmar o poder do Soberano, na medida em que demonstrava o controle do soberano sobre o corpo de seus súditos. Já no modelo disciplinar [06] – o qual surge a partir da Idade Moderna e vigora até a atualidade, essa relação entre o poder soberano e o corpo de seus súditos se dá de modo mais sutil, porém muito mais eficiente que no suplício. Neste modelo, há uma microfísica do poder [07] – na qual cada detalhe é uma manifestação do poder disciplinar – o qual é muito maior que o poder soberano.
Importa ressaltar neste momento que o pensador alemão, Carl Schmitt, oferece uma importante contribuição para o entendimento das raízes teóricas do Direito Penal do Inimigo. Isso porque, para Schmitt, deve haver a eleição de um inimigo e, por sua vez, um combate eficaz a tal inimigo – idéia esta resumida na relação amigo-inimigo e sua conseqüente configuração de inimizade na Política (SCHMITT, 2009, p. 29-38). No século XX, Carl Schmitt então, a partir da leitura de Cortés, analisa o liberalismo em suas conseqüências últimas. Para Schmitt, o Liberalismo não decidiria, aliás, decidiria por não decidir em possível guerra contra o comunismo, ou seja, no estado de exceção [08]. Como, para o pensador alemão, a Política está baseada na relação amigo-inimigo, não cabe debate – poder-se-ia pensar no atual devido processo legal e no processo penal brasileiros, os quais deveriam ser relativizados na perspectiva de Jakobs – em tal ocasião; debate este sustentado pelo Liberalismo.
Isso se deve ao fato de que a relação amigo-inimigo, segundo Schmitt, envolve a afirmação de que um povo é o contraste de seu inimigo, aquele que – seja por fatores étnicos, econômicos, religiosos, morais, etc. – é definido como tal. No "ponto do político", ou seja, nessa grande possibilidade de guerra, é necessário uma decisão, sob pena de total extermínio do povo, não cabendo a "democracia" que o liberalismo prega (ou seja, o correspondente Direito Penal do cidadão de Günther Jakobs), na qual cada um manifesta seu voto individual e secreto. Para Schmitt, a democracia verdadeira, a democracia substancial, reside na homogeneização de um povo e o estrangeiro só é aceito se for também homogeneizado, pacificamente (aceitando o contrato social) ou não (SCHMITT, 1996, p. 10-11). E mais, a democracia substancial não crê em princípios universalistas; cada povo é diferente do outro.
A partir de uma análise histórica, Schmitt também critica a involução da humanidade que vai desde o "deísmo" ao "tecnocismo", passando pelo "teísmo", antropocentrismo e, finalmente ao tecnicismo, o qual não servirá, nem adiantará de nada diante de uma situação de guerra devido a seu politeísmo de valores, altamente criticado por Schmitt.
Pelo exposto, como numa receita, na qual os ingredientes são a necessidade de afirmação do poder soberano e a guerra sem restrições contra o inimigo (não cabendo o debate pregado pelo Liberalismo), surge como resultado o Direito Penal do Inimigo.
Cabe enfatizar, por fim, algumas críticas endereçadas à citada perspectiva teórica. O denominado Direito Penal do inimigo [09] nada mais é que o Direito Penal do autor, vedado pelo Ordenamento Jurídico pátrio. Aquele julga o agente não por sua conduta exteriorizada, mas pelo que ele é. O Direito Penal do autor vigorou - por exemplo, no nazismo, no qual bastava uma pessoa ser da etnia judaica que já era suficiente para considerá-la criminosa (inimiga, como foi defendido por Carl Schmitt) – e ainda vigora, segundo uma das críticas da criminologia crítica, no funcionamento atual do sistema penal.
Outra consideração a ser feita é que a aplicação do Direito Penal do inimigo equivale à medida de segurança, a qual está prevista no Ordenamento Jurídico brasileiro somente para o caso de inimputáveis [10] ou semi-imputáveis [11].
No entanto, a maior crítica reside no fato de esta teoria não seguir os princípios constitucionais. Isso fica patente no caso do devido processo legal [12], o qual não é respeitado, visto que nem mesmo há uma legislação prévia indicando os procedimentos do Direito Penal do Inimigo taxativamente, como seria exigido pelo princípio da legalidade (princípio da estrita reserva legal [13]).
Pode-se ressaltar também que o que está sendo considerado em primeiro plano é o grau de periculosidade [14], não o grau de culpabilidade [15] do agente, ferindo, deste modo, o princípio da ofensividade ou lesividade – o qual prega que uma conduta só pode ser considerada criminosa quando causa dano a algum bem jurídico ou quando o coloca em perigo concreto – e o princípio da culpabilidade – o qual prescreve que, para que alguém seja condenado, deve haver culpa em sua conduta.
Além disso, o Direito Penal do inimigo é extremamente simbólico, visto que a violação a bens jurídicos considerados, em contingências de momento, como importantes não coloca em risco a existência do Estado. E mais, a aplicação de algumas medidas excepcionais, como a prisão sem o devido processo legal, só poderia ocorrer em casos de estado de defesa ou de sítio [16]. Caso contrário, se o Direito Penal do inimigo for aplicado como se quer, possibilita o questionamento da legitimação estatal na utilização de tais condutas excepcionais numa ordem jurídica em que vige uma normalidade institucional democrática.
2 UMA APLICAÇÃO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO NO SISTEMA PRISIONAL CAPIXABA: O CASO DOS CONTÊINERES
Após ter sido delineada a perspectiva teórica do Direito Penal do Inimigo, cabe agora demonstrar como aquele raciocínio vem sendo adotado, mesmo que inconscientemente, no sistema prisional capixaba, em especial no caso dos contêineres.
No dia 15 de março de 2010, em Genebra (Suiça), aconteceu a 13ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) – "Direitos Humanos no Brasil: Violações no Sistema Prisional do Espírito Santo" – na qual foi discutida a denúncia por parte de várias organizações não-governamentais (ONGs) contra o estado do Espírito Santo, o qual estaria violando os direitos fundamentais dos presos que ali estão encarcerados. Aquelas organizações – dentre elas a Conectas, a Justiça Global e a Pastoral da Criança – levaram vídeos, depoimentos e imagens, os quais mostraram o tratamento desumano dispensado aos presos no estado.
Uma das situações mais alarmantes apresentada durante a reunião era a dos presos provisórios que estavam detidos na Unidade de Detenção Provisória de Cariacica - ES, na qual eles eram aprisionados em celas metálicas (provindas de contêineres). Nessas celas, havia 40 cm de esgoto e de lixo nos pés dos aprisionados, bem como superlotação (onde 500 homens estavam literalmente amontoados) e a temperatura podia chegar a mais de 45º Celsius no verão. Além disso, os presos tinham que conviver com ratos num espaço sem areação e, como se não bastasse, freqüentemente a comida servida aos detentos estava estragada (CONSELHO, 2009)
Situação não muito diferente ocorria no presídio de Novo Horizonte, na Serra, e na Penitenciária feminina de Tucum, em Cariacica. Em ambos os lugares, os detentos também eram aprisionados em contêineres com as mesmas condições acima referidas. Vale destacar ainda que a situação da prisão de Novo Horizonte, na qual – apesar de ter capacidade para apenas 144 pessoas – havia um efetivo de 306 pessoas no dia 15 de março, segundo informações fornecidas pelo próprio diretor do local, Robson de Assis (CONSELHO, 2009).
O documento elaborado pelas ONGs acima mencionadas que relatava todos esses fatos teve repercussão nacional e internacional; ele foi encaminhado para a comissão de Tortura e Execuções Sumárias da ONU, para a OEA (Organização dos Estados Americanos), para as comissões de Direitos Humanos do Senado e da Câmara dos Deputados, bem como para o Procurador Geral da República.
Diante do exposto, em maio deste ano, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), [17] após visitas realizadas nos dias 15 e 16 de abril de 2010, fez uma solicitação ao Procurador Geral da República (Antônio Fernando de Souza) para que ele pedisse a intervenção federal no estado capixaba. Nas palavras do presidente do CNPCP:
Cada contêiner tinha cerca de 40 presos. O local é absolutamente insalubre. A temperatura no verão passa de 45 graus, segundo vários depoimentos. Não há qualquer atividade laboral. Não há médico. Não há advogado. Não há defensoria. Não há privacidade alguma. As visitas semanais são feitas através de uma grade farpada. São fatos comuns as crianças se cortarem ao tentar pegar na mão dos detentos por entre as grades. Não há visita íntima. (CONSELHO, 2009)
Neste documento, havia ainda o registro de outro fato alarmante: a decisão de reativar a conhecida "cela micro-ondas" por parte da administração penitenciária espírito-santense. Esta cela deveria ter sido interditada 24 horas após a decisão, que assim prescrevia, da Vara de Execuções Penais do Espírito Santo dada no dia 9 de fevereiro. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), esta decisão foi tomada devido à falta de avaliação das condições de salubridade, insolação e ventilação dos contêineres. No entanto, o CNPCP relatou que a decisão foi descumprida pela administração e só posteriormente houve a desativação. Aquela cela era ainda pior que a anteriormente descrita: como o próprio apelido já aduz, ela é praticamente toda fechada – a "ventilação" é feita através de um cano, restando apenas um espaço de aproximadamente 30 cm de comprimento para a entrada de alimentos.
Vale ressaltar que, a princípio, essas atrocidades só foram conhecidas pela população nacional após a exibição de uma reportagem realizada pela Rede Record – no programa "Repórter Record" exibido no dia 8 de março - e que se não fosse este papel fundamental da imprensa, provavelmente, até hoje elas continuariam a ocorrer, visto que o Governador estadual capixaba desqualificou todas essas denúncias, em entrevista no dia 31 de julho ao jornal A Tribuna, dizendo que se tratava de "ficção". Além dessa declaração, o governador se referiu à denúncia na ONU como "acontecimento de menor importância, secundário" e "apenas mais um" (RABELO, 2010)
Preocupado com o próximo governo, o Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH) propôs um pacto sobre os direitos humanos aos principais candidatos ao cargo de Governador. Apesar de todos os três candidatos o terem assinado, apenas a candidata do PSOL, Brice Bragatto, aceitou assiná-lo na íntegra, demonstrando assim a falta de comprometimento de nossos prováveis futuros representantes com os direitos humanos, os quais devem se estender a todas as pessoas e que deveriam ser protegidos sem nenhum tipo de ressalva.
Ainda em relação aos candidatos ao cargo de Governador, Renato Casagrande [18] – em entrevista à rádio CBN-Vitória – ao ser perguntado sobre o posicionamento do atual Governador, Paulo Hartung, na administração da política criminal, ele respondeu que aquelas medidas foram tomadas em "momento de desespero". A mesma justificativa foi dada pelo governador, o qual disse que se tratava de uma solução emergencial, considerando que não havia dinheiro para agir diferentemente. Essas respostas levam à seguinte indagação: se se tratava de uma medida excepcional e urgente, por que tal medida durou quatro anos e teve um custo de 5,2 milhões de reais? (RABELO, 2010)
O pior ainda está por vir: desde maio de 2009 já havia sido solicitado outro pedido de intervenção federal aqui no estado do Espírito Santo ao Procurador Geral da República na época, Roberto Gurgel, pelo presidente do CNPCP, Sérgio Salomão Shecaira, porém esta solicitação está engavetada até hoje, bem como a outra solicitação feita posteriormente em abril de 2010 (ver acima).
Depois de ter sido apresentado o caso das celas-contêineres do Espírito Santo, pode-se evidenciar melhor as características do Direito Penal do Inimigo presentes nas atitudes dos responsáveis pelo sistema carcerário capixaba.
O primeiro fato que chama a atenção foi o pedido de saída (para não dizer expulsão) da Penitenciária Feminina de Tucum feito aos representantes das ONGs Justiça Global, Conectas, Pastoral do Menor, do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Espírito Santo (CEDH-ES) e do Conselho de Defesa dos Direitos Humanos da Serra (CDDH-Serra). A ordem foi do secretário de Justiça, Ângelo Roncalli, e foi dada na visita do dia três de março de 2010. A diretora da ONG Justiça Global, Sandra Carvalho, explica em suas palavras: "Não nos deram explicação alguma, simplesmente pediram que nos retirássemos do interior do presídio poucos minutos após a nossa entrada" (RABELO, 2010). É grave também a segurança dessas pessoas, já que de 1989 a 2003, nove defensores de direitos humanos foram mortos (VIOLAÇÕES, 2010).
Isso mostra claramente a falta de importância dada a tais órgãos, às suas funções (defesa dos direitos humanos) e, conseqüentemente, aos direitos humanos dos presos, que além de terem tido que viver nas péssimas condições daquelas celas, não tinham sequer a possibilidade de que alguém agisse em prol deles. Bruno Souza (presidente do CEDH-ES), [19] Sérgio Shecaira (presidente do CNPCP), [20] Oscar Vilhena Vieira (diretor jurídico da Conectas), [21] Tamara Melo (advogada da Justiça Global) [22] e Bruno Pereira Nascimento (presidente da Associação Capixaba dos Defensores Públicos – Acadep) [23] chegaram à mesma conclusão: o desrespeito às normas constitucionais e infraconstitucionais no Espírito Santo é patente, tanto por parte do Poder Judiciário, quanto por parte do Ministério Público e, principalmente, do Poder Executivo.
Na medida em que o Estado dispensa um tratamento tão desumano aos prisioneiros – muitos destes, inclusive, presos provisórios –, fica patente a adoção por parte daquele da medida de segurança idealizada por Günther Jakobs. Isso porque não há limites na sanção aplicada aos presos do estado, nem mesmo limites quanto aos direitos humanos e ao direito ao devido processo legal, tal como previa o teorizador do Direito Penal do inimigo. Para ficar mais clara a visualização do tratamento dispensado aos presos, veja o relato de Sérgio Shecaira (CNPCP) sobre aquelas visitas citadas acima realizadas nos dias 15 e 16 de abril:
Poucas vezes na história, seres humanos foram submetidos a tanto desrespeito. Vencendo a repugnância do odor, aproximamo-nos dos presos. Novas denúncias de comida podre e de violências. Encontramos um preso com um tiro no olho e outro com marcas de bala na barriga. Marcas de balas na parte externa dos contêineres são comuns. A promiscuidade impera. Violências entre presos e contra presos foram denunciadas(CONSELHO, 2009)
Através desse depoimento – o qual foi registrado no documento encaminhado ao Procurador Geral da República, Antônio Fernando de Souza – pode-se ver que além de o Estado abandonar os presos em condições subumanas, ele também os tratava com atos de violência, como os que se podem deduzir pelo fato das paredes dos contêineres estarem com marcas de tiro, além dos tiros nos próprios presos e as denúncias de violência contra eles.
Diante do exposto fica difícil acreditar na ignorância e, muito menos, na inocência das autoridades do Estado, as quais alegam que estão criando novas vagas, porém continuam não oferecendo um tratamento digno aos presos, nem respeitando nossa Lei. O Padre Xavier Paolillo (coordenador da Pastoral do Menor) diz – ao comentar sobre os novos presídios que estão prontos ou sendo construídos – que:
Comparando com os outros, os presídios esteticamente são bonitos. Porém os erros se repetem. Os internos ficam 23 horas presos dentro da cela sem atividade alguma, só saem uma hora para o banho de sol. Estão proibidos de ter contato físico com esposa, filhos ou familiares em geral. A visita é por meio de um vidro chamado parlatório. Constantemente os detentos são submetidos a procedimentos degradantes e humilhantes, como, por exemplo, ficar agachado nas pontas dos pés - típica prática de tortura. [...] Nos CDPs funciona um esquema semelhante ao RDD (Regime Disciplinar Diferenciado). Os presos ficam privados de qualquer contato com o mundo externo. Não podem ler um livro, jornal ou revista. Até a bíblia eles estavam impedindo de receber nas unidades [...] Há presos que comentam que já estão com saudades da PM, tal o tratamento desumano e violento que os agentes têm dispensado aos internos [...] (RABELO, 2010)
Após tantas denúncias, finalmente, a sexta turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu Habeas Corpus [24] a um dos presos, Antônio Roldi Filho, o qual estava preso cautelosamente num contêiner no Centro de Detenção Provisória de Cariacica devido à prática de um homicídio e uma tentativa de homicídio. [25]
O próprio Exmo. Sr. Ministro Relator Nilson Naves ficou estarrecido com as condições em que os presos do CDP de Cariacica-ES se encontravam [26], deferindo, então, Habeas Corpus e estendendo sua decisão a todos os outros presos que estavam na mesma condição. Apesar de tal decisão, como nem todos os presos têm acesso à Justiça, todos eles só foram efetivamente transferidos em agosto de 2010 (por causa do acordo realizado com o CNJ), sendo que a decisão já tinha sido dada há três meses antes.
Enfim, as unidades prisionais oriundas de contêineres estavam ativas há quatro anos e só foram desativadas em agosto de 2010 por causa de um acordo realizado no início deste ano com o CNJ prevendo essa desativação.
Deve-se deixar claro que nem mesmo a teoria do Direito Penal do Inimigo de Jakobs prega esse tipo de conduta estatal: para Jakobs, essa teoria não pode ser aplicada a cidadãos comuns, que praticaram crimes comuns, mas tão somente a crimes que violam os direitos humanos em larga escala, pondo a ordem estatal em perigo. Porém, pode-se observar que a lógica de sua teoria foi aplicada: a sanção aplicada pelo Estado para aqueles presos está mais próxima de uma medida de segurança do que de uma pena; para muitos presos, sequer houve o devido processo legal, visto que eles estavam presos provisoriamente ou cautelarmente; e, conseqüentemente, tais medidas foram adotadas porque não foi considerado de modo efetivo seu grau de culpabilidade, mas o grau de periculosidade.