6 O que aconteceu no Poder Judiciário
Em brilhante estudo de caso, as autoras Ana Cléia Clímaco Rodrigues da Silva e Thamyres Camarço Oliveira (2011) mostram que o conceito da integridade aparece na sentença do juiz Alcides da Fonseca Neto, da 11ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, envolvendo um processo judicial relacionado com atos de violência doméstica e familiar entre dois parceiros homoafetivos masculinos.
Diante da denúncia formalizada de que um dos parceiros e vítima das agressões era espancado frequentemente nos últimos três anos; considerando também o fato de que no mês de março de 2011 a vítima foi atacada com uma garrafa de vidro, que cortou seu rosto, lábios, coxas e pernas; e que, além disso, a vítima sofria constantemente ameaças de morte para não denunciar os maus tratos à Polícia, o juiz do Rio de Janeiro encontrou-se diante de um caso difícil e obscuro para julgar a violência doméstica principalmente porque não existe nenhuma lei brasileira disciplinando a convivência entre casais homoafetivos masculinos.
O juiz encontrou uma lacuna jurídica que precisava ser preenchida ou pelo princípio da discricionariedade do convencionalismo; ou pela intuição pessoal do pragmatismo, ou então por meio do princípio combinatório da integridade.
Se fosse pelo princípio da discricionariedade, no exercício de sua liberdade criativa o juiz encontraria como exemplo a ser copiado um caso anterior julgado na comunidade judiciária do Rio Grande Sul, na comarca de Rio Prado, através do juiz Osmar de Aguiar Pacheco, que concedeu uma medida protetiva a um dos parceiros ameaçado pelo companheiro agressor.
Indo nessa direção, entretanto, o juiz do Rio de Janeiro seria permanentemente questionado pelo fantasma do aguilhão semântico dos textos legais, que no ordenamento jurídico brasileiro são direcionados exclusivamente para resolver problemas de casais heterossexuais, pressionando qualquer mortal que não seja Hércules a ser desfavorável ao pedido da vítima, provavelmente abandonando o exemplo da sentença anterior do Rio Grande do Sul com receio de que proferir uma sentença textualmente incoerente e "ilegal".
De outro modo, se o juiz fosse adotar a sua intuição pessoal, ele poderia realmente superar o legalismo da linguagem e incluir uma decisão inusitada no caso, privilegiando a sua moral individualmente em detrimento quase absoluto do texto legal e das experiências institucionais do Poder Judiciário no passado.
Conforme explicam as autoras Silva e Oliveira, no convencionalismo os seus adeptos conferem maior importância à forma, podendo assim os juízes decidirem de qualquer modo, desde que respeitem o aspecto formal, ficando excessivamente presos às decisões tomadas pelas instituições jurídicas no passado. Essa conduta, de acordo com o que sugeriu Ronald Dworkin, não é do agrado de certo tipo de juiz que deseja imprimir a sua marca presente e existencialista naquilo que vai julgar. O jusfilósofo idealizado por Dworkin não aceita igualmente o pragmatismo, que, na ausência ou incompletude da lei, recomenda que o juiz preencha as lacunas com princípios morais próprios, desvinculando-se do texto da lei.
No princípio da integridade, diferentemente, a complexidade da aplicação e da interpretação do direito se resolve por meio de um processo integrativo, considerando o devido processo legal, a equidade e a justiça. Aqui, o direito não é composto apenas por regras, mas também por princípios, que são standards a serem observados por exigências da moral política e da justiça. Em outras palavras, a integridade representa a síntese do texto com o contexto e a moralidade pessoal do juiz. Ou então, a síntese do coletivismo com o individualismo jurídico. Para isso acontecer efetivamente são aplicados critérios específicos (coerência, adequação, abrangência, justificação, integridade e criatividade do juiz) que fazem parte daquilo que Dworkin chamou de interpretação construtiva.
De acordo com as autoras Silva e Oliveira, interpretar uma prática social (no caso, a lei) é propor um valor por meio da descrição de seus objetivos. Especificamente no modelo de Ronald Dworkin, a interpretação construtiva é feita desenvolvendo três etapas: pré-interpretativa, interpretativa e pós-interpretativa.
Primeiramente, são consideradas as regras e os padrões que fornecem o conteúdo experimental da prática. No estudo em análise, em que a Lei Maria da Penha é aplicada a um casal homoafetivo composto por homens, o juiz recorreu ao ordenamento jurídico no sentido de observar as regras que melhor se aplicariam a este caso. Declarou o juiz Alcides da Fonseca Neto nesse sentido: "importa finalmente salientar que a presente medida, de natureza cautelar, é concedida com fundamento na Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), muito embora esta lei seja direcionada para as hipóteses de violência doméstica e familiar contra a mulher".
Na etapa seguinte da interpretação criativa, o intérprete busca formular uma justificativa geral para os principais elementos observados na etapa anterior, argumentando se deve ou não buscar uma prática com essa forma geral. Aqui, o juiz considerou insuficientes as determinações do direito penal convencional e recorreu à lei 11.340/06 para atender às especificidades do caso concreto.
Por fim, na etapa pós-interpretativa, o aplicador da lei busca o ajuste ou adequação entre a sua ideia e aquilo que o caso requer completando a justificativa formulada na etapa anterior. No caso concreto, o magistrado ampliou a abrangência da Lei Maria da Penha, considerando o princípio constitucional, hierarquicamente superior, da isonomia. De acordo com o que afirmou o juiz "[...] a especial proteção destinada à mulher pode e dever ser estendida ao homem naqueles casos em que ele também é vítima de violência doméstica e familiar, eis que no caso em exame a relação homo-afetiva entre o réu e o ofendido, isto é, entre dois homens, também requer a imposição de medidas protetivas de urgência, até mesmo para que seja respeitado o Princípio Constitucional da Isonomia" (ibid.).
As autoras consideraram ainda que no contexto integrativo o juiz diante de um caso concreto deve analisar casos anteriores parecidos com o atual, tendo em vista que a prática de interpretação do direito precisa considerar tanto o passado sob o olhar interessado do presente, como o futuro. Isso acontece porque o exercício da atividade jurídica e judiciária está em processo contínuo de desenvolvimento, entretanto, é importante ressaltar, o princípio da adequação jamais poderá quebrar a harmonia do sistema jurídico nesse processo.
No desenvolvimento do conceito de integridade, as autoras da pesquisa consideraram particularmente a decisão proferida pelo juiz Alcides da Fonseca Neto - no Rio de Janeiro - e a do juiz Osmar de Aguiar Pacheco - no Rio Grande do Sul - como capítulos do mesmo direito, sendo essa continuidade o cerne da ideia do direito como romance em cadeia.
Explicaram as autoras que o romance em cadeia é uma metáfora que compara o texto literário ao direito. Assim, cada romancista recebe os capítulos anteriores para interpretar e, a partir daí, escrever o seu próprio capítulo. Essa produção interpretativa deve preservar a unidade e harmonia da obra como um todo, como se ela fosse elaborada por um único autor. Nesse sentido, o juiz é considerado autor e também crítico do direito. Os juízes introduzem acréscimos na tradição que interpretam. Se o juiz for um bom crítico, seu modo de lidar com essas questões será complicado e multifacetado, pois o valor de um bom romance não pode ser apreendido a partir de uma única perspectiva.
Nesse contexto, a aplicação de uma lei destinada especificamente à mulher e agora para um homem produz uma decisão inovadora, embora não configure uma transgressão ao ordenamento jurídico, pois é o caso concreto que aponta o conteúdo de justiça para determinada sociedade em determinado contexto.
É importante destacar, segundo as autoras, que o exercício interpretativo é sempre criativo, mas deve existir uma vinculação ao texto, o que reflete um compromisso com o enredo do romance em cadeia como um todo. Assim, a atividade criadora do juiz é distinta da criação do legislador, pois o direito como integridade pressupõe que eles - juiz e legislador - estão em pólos diferentes, já que as decisões judiciais são práticas interpretativas e não práticas de produção normativa.
O direito como integridade pressupõe que o juiz consciente de sua função deve apreciar vários critérios, dentre eles as circunstâncias do caso concreto, a moral política da comunidade e a opinião das instituições que estão ou devem estar coerentes com o grupo social e a constituição. Portanto, o bom aplicador judiciário acrescenta valores da comunidade no direito que interpreta, ou seja, faz a adequação entre a norma e a moral política da comunidade como algo importante para preservar a própria segurança jurídica.
Considerando então que o juiz do caso em análise fez uma interpretação integrativa, pois partiu da lei posta, Maria da Penha, restrita textualmente à violência doméstica contra a mulher, e, tomando as circunstâncias do caso concreto, o juiz priorizou a justiça com a equidade. Ou seja, ele redimensionou o alcance da lei sob o prisma do princípio constitucional da igualdade, evitando a interpretação legal da forma "tudo ou nada" que engessa a aplicação jurídica em uma sociedade dinâmica.
Embora Dworkin defenda o direito posto como pressuposto de toda atividade judicial, apresentando, aparentemente, uma tendência ao positivismo jurídico, esta mesma atividade orienta-se pela busca da justiça e da equidade, o que só é possível segundo uma perspectiva principiológica do direito. Dessa forma, as autoras Silva e Oliveira (2011) consideram a necessidade de se atualizar as normas com a moral política e os valores compartilhados pela comunidade, pois isso abre espaço para a interpretação condizente com a complexidade e a pluralidade social.
Reavaliando o que foi dito até o momento, podemos afirmar que homens e mulheres sofrem igualmente os efeitos da violência doméstica e familiar. Por isso, na falta de um arcabouço jurídico especializado para resolver problemas de casais homoafetivos masculinos a lei Maria da Penha pode ser ampliada e servir como fundamento jurídico para alguma decisão judicial voltada para o princípio constitucional da igualdade.
Na lei Maria da Penha, é importante ressalvar, segundo escreveram as autoras, que o artigo 5º da referida lei em seu parágrafo único, declara que as relações pessoais enunciadas no citado artigo independem de orientação sexual; ideia esta acentuada pelos incisos II e III ao se definir a família como comunidade formada por indivíduos e unidade doméstica como espaço de convívio permanente de pessoas unidas por quaisquer relações íntimas de afeto, respectivamente.
Dessa forma, o próprio legislador ampliou o conceito de família, dando abertura para uma interpretação conforme os moldes atuais. Entretanto, no caput do mesmo artigo, bem como na ementa da lei e no artigo 1°, o legislador explicita a violência contra a mulher. Por esse motivo, as decisões até então destinavam-se apenas a casos de casais heterossexuais e, no máximo, a casais homoafetivos compostos por mulheres.
Diante dessas informações, o juiz do Rio de Janeiro admitiu a existência de princípios práticos ou operacionais, sobretudo associados com o processo legal e o espaço institucional de aplicação dessa lei. Seu desafio específico foi juntar o princípio transcendente da igualdade com o devido processo legal. Para fazer essa ligação prático-transcendente, o juiz precisou ser metódico, reflexivo, criterioso, criativo e constitucionalista. Por isso mesmo, não se deixou levar pela teoria da intencionalidade do legislador, nem pelas decisões convencionais, muito menos se entregou ao domínio do aguilhão semântico das leis.
O caso judicial foi difícil ou obscuro não especificamente porque faltavam e faltam leis sobre essa matéria, mas principalmente porque existe um contexto social - através da mídia e dos movimentos sociais - que reivindica os direitos humanos na esfera doméstica e familiar independentemente de qualquer modalidade de relacionamento afetivo e matrimonial.
Para fazer a ligação da igualdade com as leis e o devido processo legal, o juiz do Rio de Janeiro desenvolveu inconscientemente ou não uma série de critérios ligadores. Primeiramente (fundamentação), conforme descrevem originalmente Silva e Oliveira, o juiz buscou a fundamentação jurídica, investigando o que havia disponível sobre o assunto bem como as sentenças ou interpretações já realizadas envolvendo casais homoafetivos masculinos. Agindo desse modo, o juiz recorreu ao ordenamento jurídico brasileiro a fim de reconhecer objetivamente as regras que melhor se aplicariam ao caso.
Em segundo lugar (justificação), o juiz faz uma justificativa de convicção, realizando um diagnóstico da situação, tornando público nesse sentido que o direito penal convencional é insuficiente e incompleto para enfrentar a questão dos casais homoafetivos masculinos, o que, segundo ele, justificaria maximizar ou radicalizar alguma lei, oportunamente Maria da Penha, de maneira mais abrangente possível.
Em terceiro lugar (adequação), o desafio foi adequar moralmente a justificativa da convicção do juiz às regras e fatos processuais. Nessa etapa pós-interpretativa, o magistrado estendeu a abrangência da lei Maria da Penha, considerando o princípio constitucional, hierarquicamente superior, da isonomia, concluindo que o fato exigia a imposição de medidas protetivas de urgência, até mesmo para que fosse respeitado o princípio constitucional da isonomia, conforme afirmou textualmente o juiz Alcides da Fonseca Neto.
Em quarto lugar (criação), o juiz inventou ou produziu uma decisão judicial inovadora, olhando para o caso concreto. Aqui é importante ressaltar que o exercício interpretativo é sempre criativo, mas deve haver uma vinculação ao texto, o que reflete um compromisso com o enredo do romance em cadeia. Assim, a atividade criadora do juiz é distinta da criação do legislador, pois o direito como integridade pressupõe que ambos estão em pólos diferentes, já que as decisões judiciais são práticas interpretativas, e não produções normativas.
Em quinto lugar (integridade) o juiz consciente de sua função apreciou vários critérios, dentre eles as circunstâncias do caso concreto, a moral política da comunidade e a opinião das instituições em coerência com a constitucionalidade. Assim, o bom aplicador acrescentou valores da comunidade no direito que interpretou e fez a adequação constitucional entre a norma e a moral política da comunidade.
Em sexto lugar (coerência entre princípios transcendentes e práticos), o juiz respeitou e valorizou a norma já posta que é um pressuposto de toda atividade judicial, priorizando a justiça e a equidade. Levando adiante essa prioridade, o juiz fez uma releitura da lei Maria da Penha - pautada no princípio constitucional da isonomia - refletindo a complexidade e a pluralidade da sociedade contemporânea.
Em sétimo lugar (abrangência), o magistrado rompeu com o paradigma dominante na busca da justiça e da equidade para o caso concreto e considerou a individualidade do caso sem oprimi-la diante da universalidade da lei abstrata. Ou seja, considerou a peculiaridade do caso não fazendo uma relativização do direito, mas a própria concretização da segurança jurídica em maior proporção na sociedade através da lei que autorizou essa liberdade criativa. Além disso, segundo informam as autoras da pesquisa, a necessidade de se fazer justiça para o caso concreto pressupôs uma hermenêutica sociológica, que abriu espaço para uma interpretação teleológico-axiológica. Neste caso, a Lei Maria da Penha prevê em seu artigo 4º que os fins sociais aos quais se destina deverão ser considerados no processo interpretativo.
Observando todos esses critérios, o processo chegou à seguinte conclusão: em abril de 2011, o juiz da 11º vara criminal do Rio de Janeiro, Alcides da Fonseca Neto, inspirado na lógica da lei Maria da Penha, decretou que o réu Renã Fernandes Silva deve manter uma distância de 250 metros do seu companheiro, Adriano Cruz de Oliveira.