"A injustiça que se faz a um é uma ameaça que se faz a todos."
Barão de Montesquieu
"A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar."
Martin Luther King
"Se ages contra a justiça e eu te deixo agir, então a injustiça é minha."
Mahatma Ghandi
RESUMO
A presente monografia defende a necessidade de aplicação de teorias, princípios e institutos garantistas originários do Direito Penal no âmbito do Direito Administrativo Disciplinar, a fim de alcançar a paz social no seio do serviço público, evitando que a autoridade sancionadora incorra em arbitrariedades e abuso de poder. Estando o Direito Administrativo Disciplinar ainda carente de normas claras, jurisprudência e doutrina robusta, não se pode desprezar a contribuição que se pode obter com a conexão aos sedimentados princípios e institutos do Direito Penal. Sob a égide da Constituição Cidadã, não mais se deve restringir suas garantias à esfera penal, mas sim estender a todo Direito sancionador que limite os direitos do cidadão, notadamente, o acusado em processos administrativos disciplinares. É prudente que o jus puniendi no âmbito administrativo disciplinar só deva ser sacudido em casos de significância, sob o risco de intoxicação do serviço público com um remédio em dose amarga e acima da recomendada. Que esta obra possa contribuir para o esclarecimento das autoridades julgadoras, comissões disciplinares e demais operadores do direito; bem como servir de alento aos cidadãos-servidores acusados em processos administrativos disciplinares, tudo visando ao engrandecimento do Direito Administrativo Disciplinar.
Palavras-chave: Direito Administrativo Disciplinar. Direito Penal. Ilícito Disciplinar. Garantismo.
ABSTRACT
This monograph argues the need for application of guarantist theories, principles and institutes of criminal law in Disciplinary Administrative Law in order to achieve social peace in the public service, preventing the sanctioning authority to incur arbitrariness and abuse of power. Once the Disciplinary Administrative Law still lacks clear standards, robust jurisprudence and doctrine, one cannot disregard the contribution that can be achieved with the connection to sedimented principles and institutes of criminal law. Under the auspices of the Citizen Constitution, should no longer restrict their guarantees to a criminal court, but extend to any law sanctioning that limits the rights of citizens, notably, the accused in disciplinary administrative proceedings. It is prudent to jus puniendi in administrative disciplinary only should be shaken in significative cases, at risk of poisoning the public service with adose of bitter medicine and above recommended. That this work may contribute to the clarification of the judging authorities, disciplinary committees and other law professionals, as well as serve as an encouragement to the citizen-servants charges in disciplinary administrative, all aimed at the enhancement of Administrative Law Disciplinary.
Keywords: Disciplinary Administrative Law. Criminal Law. Disciplinary Illicit. Guarantism.
SUMÁRIO: INTRODUÇAO . GARANTISMO JURÍDICO . AS ACEPÇÕES DO TERMO .ELEMENTOS FORMAIS E SUBSTANCIAIS . PRINCÍPIOS FUNDANTES . A FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL DO JUS PUNIENDI . INTERSECÇÃO ENTRE DIREITO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR E DIREITO PENAL . ILÍCITO PENAL E ILÍCITO ADMINISTRATIVO . PRINCÍPIOS PENAIS CONSTITUCIONAIS . Normas Jurídicas . Princípio da Intervenção Mínima . Princípio da Lesividade ou Ofensividade . Princípio da Legalidade . Principio da insignificância . TIPICIDADE DO ILÍCITO DISCIPLINAR . TEORIA DA AÇÃO NO Processo ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR . UMA VISÃO GARANTISTA DO ILÍCITO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. ASPECTOS INTRODUTÓRIOS . Poder Disciplinar e Discricionariedade . NO REGIME DISCIPLINAR . Ilícito Administrativo . Ilicitude Material . Erro Administrativo Escusável . Impossibilidade de Responsabilização Objetiva .Atos da Vida Privada . Infração Moral . NO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR .Instauração e a Subsidiariedade da Esfera Disciplinar . Designação da Comissão de Apuração (e não de Acusação) . Praxe Administrativa e Legalidade . Verdade Sabida e o Devido Processo Legal . Indeferimento de Testemunhas e a Ampla Defesa . Indiciamento Genérico e o Exercício do Contraditório . Relatório Final e a Presunção de Inocência.. O DIREITO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR IN CONCRETO. NOS NORMATIVOS INTERNOS DA ADM.INISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL Termo Circunstanciado Administrativo . Compromisso de Adequação Funcional . NA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS . CONSIDERAÇÕES FINAIS . REFERÊNCIAS . ANEXOS
INTRODUÇAO
O poder de punir do Estado na esfera administrativa bebe na mesma fonte do Direito Penal, por isso, estão umbilicalmente ligados. Ambos os ramos do direito provém de um só tronco que é o texto constitucional, portanto, não se podem negar ao polo passivo do direito sancionador administrativo os benefícios conquistados, à duras penas, pelos praticantes de ilícitos penais.
Durante a pesquisa, buscou-se analisar temas como: princípios da insignificância e da intervenção mínima, lesividade do bem jurídico, ilicitude material, dentre outros, sempre com o intuito de conectar o Direito Administrativo Disciplinar ao Direito Penal.
Não há a mínima intenção de aqui defender a existência ou criação de um Direito Administrativo Penal ou Direito Penal Administrativo. Ocupa-se este trabalho de fatia importante desse universo que é a seara disciplinar e suas conexões com o direito penal, visto sob uma ótica garantista e constitucional.
Assim, no presente trabalho intentou-se fazer uma abordagem da concepção garantista iniciada no âmbito penal, pinçando princípios, institutos e normas que possam dar resguardo aos servidores públicos, aclarando sua aplicabilidade no direito administrativo disciplinar.
O exercício do jus puniendi do Estado jamais deverá ultrapassar os limites no percurso pela busca da justiça. Esse poder estatal deve traduzir em essência o conteúdo reprovador de que deve a sanção estar revestida. Sem prevaricação ou arbítrio, apenas seguindo o ideário do justo.
O direito administrativo disciplinar não pode servir de cortina para justiçamentos. A vontade do Estado não pode vir travestida de vingança, má-fé ou vaidade, devendo sim, servir à busca da paz social no âmbito do serviço público. A penalidade deve representar um verdadeiro mal causado à administração, nunca a vontade particular da autoridade sancionadora.
Ressaltamos que a necessidade é da constituição de uma imunidade – e não im(p)unidade – dos servidores-cidadãos contra a arbitrariedade das punições descabidas.
Cabe ao servidor guindado tempo-espacialmente à condição de autoridade sancionadora aplicar o estatuto e as demais normas administrativas, com base na abalizada doutrina, jurisprudência e preceitos advindos do direito penal.
Afinal, como se admitir que garantias atribuídas àqueles que transgrediram a norma penal, protetora de bens jurídicos tidos como mais importantes para a sociedade, não se apliquem à proteção dos servidores do próprio estado?
Pensar assim levaria à lógica conclusão de que os servidores públicos seriam uma espécie de subcategoria dentre os cidadãos, aos quais não seriam garantidos os mesmo direitos dos demais, nem mesmo àqueles afetos a quem cometeu crimes.
Fechar os olhos para a não sujeição dos servidores a tais avanços conquistados pelo Direito Penal é permitir um permanente estado de constrangimento perante o poder punitivo do Estado, institucionalizando o que poderia se cogitar de chamar de verdadeiro "Direito Disciplinar do Inimigo".
Entretanto, a desanimadora situação a que estão sujeitos os servidores públicos acusados em processos administrativos disciplinares não requer a defesa de soluções apocalípticas. Muito menos se pretende a crítica pela crítica.
O que se busca é o aperfeiçoamento do sistema jurídico, com a correta aplicação dos normativos existentes, de modo a evitar o uso equivocado do poder disciplinar.
Visando a esse aprimoramento, o exame acurado de tão importante ramo do Direito Administrativo é medida basilar para o correto e limitado exercício de tal poder pelo Estado.
Em tempos em que o país vem ganhando importância em todos os fóruns, e por isso sendo alvo da atenção mundial, não se pode olvidar da importância crescente que terá o processo administrativo (incluindo a sede disciplinar) para a profissionalização da máquina pública, exigindo, assim, investigações teóricas visando a esclarecer os contornos ainda nebulosos e carentes de delimitação do Processo Administrativo Disciplinar.
A fim de melhor analisar o tema, dividimos o nosso estudo e, consequentemente, os resultados da nossa pesquisa em áreas temáticas que acabaram correspondendo às seções principais da monografia.
Na primeira seção nos debruçamos sobre o garantismo jurídico defendido por Luigi Ferrajoli, por ser essa a teoria penal que demonstrou condições de oferecer guarida à tese em apreço, pois além de já em seu âmago considerar o acusado um sujeito de direitos amparado por princípios constitucionais, a teoria acaba por extrapolar a sede penal para atingir outros ramos do direito, como o direito administrativo disciplinar.
Em seguida, o esforço foi no sentido de aproximar ainda mais os dois ramos do direito público punitivo, refutando divergências, elencando princípios penais aplicáveis e abordando teorias e institutos próprios do direito penal, como teoria da ação e tipicidade.
Nas duas últimas seções, adentramos ao universo do direito administrativo disciplinar já carreado do espírito garantista, inicialmente, esclarecendo como se dá essa visão garantista do ilícito disciplinar, destacando tópicos relacionados aos aspectos substancial (Regime Disciplinar) e instrumental (Processo Administrativo Disciplinar) desse universo, para finalizar com exemplos em concreto da aplicação (ou desatendimento) dessa postura garantista nos normativos da Administração Pública Federal e em julgados do Superior Tribunal de Justiça.
1.GARANTISMO JURÍDICO
O mundo jurídico nesse início de século aparenta viver uma crise. O Estado encontra-se cada vez mais incapaz de suprir o fenômeno jurídico a partir apenas de seus parâmetros estatais. A teoria do direito também não vem conseguindo atender satisfatoriamente a essas mudanças. Um positivismo tradicional e formalista e um sociologismo exacerbado se digladiam para se sobressair nesse panorama de transformação, naufragando sem se atentar que restam superadas essas dicotomias. [01]
O garantismo surge exatamente da observação desse cenário de descompasso entre as normas estatais e o mundo real de práticas autoritárias nas atuações administrativas e penais. A ideia é aproximar essas duas realidades díspares, mas que não deveriam ser antagônicas. O garantismo visa então unir a normatividade à efetividade.
Na preleção de Paulo Rangel:
A teoria do garantismo penal defendida por Luigi Ferrajoli é originária de um movimento do uso alternativo do direito nascido na Itália nos anos setenta por intermédio de juízes do grupo Magistratura Democrática (dentre eles Ferrajoli), sendo uma consequência da evolução histórica dos direitos da humanidade, que, hodiernamente, considera o acusadonão como objeto de investigação estatal, mas sim como sujeito de direitos, tutelado pelo Estado, que passa a ter o poder-dever de protegê-lo, em qualquer fase do processo (investigatório ou propriamente punitivo). Segundo a fórmula garantista, na produção das leis (e também nas suas interpretações e aplicações), seus conteúdos materiais devem ser vinculados a princípios e valores estampados nas constituições dos estados democráticos em que vigorem. [02]
Destaque-se que as bases conceituais do garantismo penal, estabelecidas por Ferrajoli na sua obra Direito e Razão, subsidiam uma teoria geral do garantismo, aplicáveis, pois, a todos os demais ramos do direito, dentre eles o direito administrativo disciplinar, por sua proximidade com o direito penal, desenvolvida no presente trabalho.
Destaca Ferrajoli que:
Da palavra garantismo é, então, possível distinguir três significados diversos: modelo normativo de direito, teoria jurídica da validade e da efetividade da norma, e filosofia política, que podem ser estendidos a todos os campos do ordenamento jurídico (grifo nosso). [03]
1.1.AS ACEPÇÕES DO TERMO
A primeira acepção do termo garantismo relaciona-se a um modelo normativo de direito, decorrente do princípio da legalidade, base do Estado de Direito. Visa impor ao Estado um sistema de proteção às garantias do cidadão, como passo na direção de um real Estado Constitucional de Direito.
O Garantismo vem determinar um modelo normativo de direito, precisamente no que diz respeito ao direito penal, o modelo de estrita legalidade, próprio do Estado de Direito, que pode ser entendido sob três planos: o epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo; o político, por sua vez, se caracteriza como uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade; por fim, o jurídico, como um sistema de vínculo impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos (grifo nosso). [04]
Afora as óticas política, jurídica e epistemológica, o garantismo deve servir para aproximar os elementos de validade e efetividade do direito, pois desses decorrem o que o autor chama de graus de garantismo, que terá sua variância justamente em função do compasso ou descompasso entre os elementos.
Nas palavras de Edihermes Marques Coelho
A noção de validade garantista talvez seja o ponto mais delicado do garantismo enquanto teoria geral do Direito, pois sua formulação mexe com noções tradicionais, arraigadas nas concepções jurídicas contemporâneas. [05]
Outra acepção do garantismo é a da busca pela legitimidade ético-política dos comandos e práticas do Estado. Essa justificativa externa ao sistema jurídico seria algo como uma metafísica jurídica, pois seriam fundamentos para o surgimento das normas jurídicas.
Para o Jurista italiano, "o garantismo é considerado como uma filosofia política, que requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade". [06]
São essas três acepções: a vinculação do poder público ao estado de direito; a dualidade entre vigência e validade; e as visões externa (ético-política) e interna (jurídico); que acabam por caracterizar a teoria geral do garantismo.
O Garantismo pode ainda ser entendido como instrumento capaz de aferir a validade da intervenção do Estado no caso concreto, ou seja, permite observar se os parâmetros constitucionais (princípios) estão sendo cumpridos de fato (verificar se o ser está de acordo com o dever ser).
Para o Mestre italiano, "o garantismo jurídico opera como doutrina jurídica de legitimação e, sobretudo, de perda da legitimação interna do direito penal, que requer dos juízes e dos juristas uma constante tensão critica sobre as leis vigentes, (...)". [07]
1.2.ELEMENTOS FORMAIS E SUBSTANCIAIS
Para além dos aspectos formais, a teoria garantista vem acrescer um novo aspecto a ser observado no fenômeno jurídico, que é o elemento substancial. O aspecto formal encontra-se ligado ao procedimento previsto para o surgimento de determinada norma, sendo seu pressuposto de legitimidade.
Até esse aspecto, a teoria de Ferrajoli ainda não se distancia muito da teoria pura do direito de Kelsen, para quem a validade de uma norma está em outra norma anterior no tempo e superior em hierarquia, existindo, portanto um mecanismo de derivação entre as normas jurídicas. [08]
Enquanto os juízos de vigência ou não de normas apresentam um caráter fortemente descritivo, eis que dizem respeito a fatos concretos, tais como a promulgação daquelas por autoridades competentes e a observância do devido procedimento da edição, os juízos sobre a validade - pelo fato de pretenderem verificar processos de adequação valorativa - trazem uma acentuada carga axiológica. No entanto, enquanto as condições formais constituem requisitos de fato em cuja ausência as normas não chegam juridicamente a existir, as condições substanciais de validade - e de forma especial as da validade constitucional - consistem no respeito aos valores - tais como a igualdade, a liberdade e as garantias dos direitos dos cidadãos - cuja lesão produz uma antinomia, isto é, um conflito entre normas de significados incompatíveis. [09]
Kelsen, adotando pressupostos da Escola Neokantiana, considerava o direito como seu objeto de estudo apenas em seu aspecto formal, isentando-o de questões ligadas ao seu conteúdo valorativo.
Para Kant, a determinação racional da possibilidade e limite do conhecimento puro precede ao conhecimento do real. Da mesma forma, para Kelsen a necessidade de uma teoria pura, que delimite o objeto do conhecimento jurídico e estabeleça as condições e possibilidades do mesmo, precede logicamente o conhecimento das ciências jurídicas positivas. Por isso, tarefa prioritária da teoria pura é estabelecer as categorias jurídicas distintas e determinantes, em última instância, do campo temático específico das ciências jurídicas, as categorias constituintes da normatividade. [10]
Para Kelsen, "a validade normativa está confundida com a vigência das normas: se a norma existe juridicamente enquanto norma, sendo formalmente apta a emanar os seus efeitos, ela é válida". [11]
Ferrajoli tecendo suas críticas a esta visão, pontua que:
Um conceito deste tipo não poderá dar conta da estrutura dos sistemas jurídicos complexos que comportam as atuais democracias constitucionais, para cuja explicação, a noção de validade das normas deverá incluir também a coerência de seus conteúdos ou significados com os princípios de caráter substancial enunciados na Constituição, como o princípio da igualdade e os direitos fundamentais, e deverá admitir, portanto, a possibilidade de normas formalmente vigentes e, entretanto, substancialmente inválidas. [12]
Para o autor italiano, ao procedimento de validade deve ser acrescentado um elemento substancial, de conteúdo material, que são os direitos fundamentais. Para o autor, uma norma que não se encontra de acordo com essas garantias elencadas na Constituição Federal seria inválida.
Ainda, conforme Luigi Ferrajoli,
a especificidade do moderno Estado Constitucional de Direito está precisamente no fato de que as condições de validade estabelecidas por suas leis fundamentais incorporam não só requisitos de regularidade formal, senão também condições de justiça material. Esses traços substanciais de validade, inexplicavelmente ignorados pela maior parte das definições juspositivistas de direito válido, sejam normativistas ou realistas, têm uma relevância bem maior do que a dos meramente formais. [13]
1.3.PRINCÍPIOS FUNDANTES
O Sistema Garantista funda-se sobre dez axiomas, que pretendem determinar as regras do jogo fundamental. Em resumo, tais princípios são os seguintes:
1) princípio da retributividade ou da sucessividade da pena em relação ao delito cometido (que demonstra o expresso reconhecimento de Ferrajoli da necessidade do Direito Penal, contrariamente a visões abolicionistas. Aliás, Ferrajoli reiteradamente tem dito que o garantismo penal é a negação do abolicionismo); 2) princípio da legalidade: inviável se cogitar a condenação de alguém e a imposição de respectiva penalidade se não houver expressa previsão legal, guardando esta a devida compatibilidade com o sistema constitucional vigente; 3) princípio da necessidade ou da economia do Direito Penal: somente se deve acorrer ao Direito Penal quando absolutamente necessário, de modo que se deve buscar a possibilidade de solução dos conflitos por outros meios. É a ultima ratio do Direito Penal; 4) princípio da lesividade ou da ofensividade do ato: além de típico, o ato deve causar efetiva lesividade ou ofensividade ao bem jurídico protegido, desde que deflua da Constituição (direta ou indiretamente) mandato que ordene sua criminalização; 5) princípio da materialidade;6) princípio da culpabilidade: a responsabilidade criminal é do agente que praticou o ato, sendo necessária a devida e segura comprovação da culpabilidade do autor; remanescendo dúvidas razoáveis, há se aplicar o aforisma in dubio pro reu; 7) princípio da jurisdicionalidade: o devido processo legal está relacionado diretamente também com a estrita obediência de que as penas de natureza criminal sejam impostas por quem investido de jurisdição à luz das competências estipuladas na Constituição; 8) princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação: numa frase significa unicamente que o julgador deve ser pessoa distinta da do acusador; 9) princípio do encargo da prova: ao réu não se deve impor o ônus de que é inocente, pois é a acusação quem tem a obrigação de provar a responsabilidade criminal do imputado; 10) princípio do contraditório: sendo inadmissíveis procedimentos kafknianos, deflui do devido processo legal que o réu tem o direito fundamental de saber do que está sendo acusado e que lhe seja propiciada a mais ampla possibilidade de, se quiser, rebater (ampla defesa) as acusações que lhe são feitas (grifo nosso). [14]
Como se pode depreender até aqui, o Sistema Garantista encontra-se alicerçado no positivismo e no constitucionalismo, pois apesar de haver nascido com os olhos voltados para o direito penal, só pode se concretizar com a articulação de todo o ordenamento.
Sérgio Cademartori é um dos autores brasileiros que primeiro intentaram expandir o garantismo para além da seara penal.
O jurista ao criticar o direito vigente (e para Ferrajoli isto é fazer ciência) assume os valores constitucionalmente positivados como parâmetros do próprio discurso jurídico, independentemente da sua adesão moral. (…) Assim, os juízos de validade são científicos e desempenham um controle da produção normativa, comum ao Estado de Direito. [15]
Segundo Ricardo Guastini:
Uma organização jurídica diz-se garantista quando inclui estruturas e instituições aptas a manter, oferecer proteção, defender e tutelar algumas liberdades individuais bem definidas. Dessa forma, um jurista legitima-se como garantista quanto dirige suas atividades para o aumento ou eficácia das estruturas e dos instrumentos oferecidos pela organização jurídica para tutelar, defender, etc, as liberdades individuais. [16]
Enfim, em um Estado Democrático de Direito, todos os ramos do direito devem se amoldar aos princípios constitucionais. Assim o direito penal e os órgãos do sistema criminal. Assim o direito disciplinar e a Administração Pública no seu exercício do jus puniendi.
1.4.A FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL DO JUS PUNIENDI
Admitindo que a força normativa da Constituição estende-se até a relação entre os particulares, não poderia o Estado, enquanto ente de direito público, desprezar os ditames constitucionais no exercício de seu jus puniendi na seara administrativo-disciplinar.
Conforme pontifica Luiz Flávio Gomes:
A chamada constituição material, justamente porque trata dos seus conteúdos substanciais e centra na pessoa e nos seus direitos fundamentais a base de toda a realidade jurídico-política do Estado, conta com a eficácia interpretativa que, indubitavelmente, se estende a todo o ordenamento jurídico (grifo nosso). [17]
Preleciona, também nesse sentido, Luciano Santos Lopes:
Todavia, não se trata de simplesmente oferecer justaposições da Constituição às outras normas positivadas. Trata-se de fazer com que a Carta Magna, legitimada por seus princípios, consiga exercer realmente a função sistematizadora e promotora de unidade em um sistema jurídico determinado. Requer-se, também, que a Constituição tenha força normativa. Sob pena de restar como referência meramente retórica. A importância da Hermenêutica constitucional faz-se visível neste plano de discussão. [18]
Assim, a teoria do garantismo jurídico de Luigi Ferrajoli abre a possibilidade de interpretação da norma estatutária à luz de princípios penais basilares presentes na Carta Magna, estabelecendo nova leitura dos direitos fundamentais no âmbito do Direito Administrativo Disciplinar.
Os princípios e institutos de direito penal, secularmente estudados e desenvolvidos, são plenamente aplicáveis ao direito administrativo disciplinar, mormente quando direitos e garantias fundamentais constitucionalmente qualificados são objetos de relação jurídica, formal e material, formada entre o Estado-administração, no exercício do poder disciplinar, e o servidor público acusado, em instrumento apuratório e punitivo, de cometimento de falta grave ou média (grifo nosso). [19]