RESUMO
O trabalho trata da constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, com enfoque no crime de porte de arma de fogo desmuniciada e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça que tratam da matéria. A partir da tipificação dos crimes de perigo abstrato, surgiram alguns problemas no Direito Penal, como a indagação sobre a lesividade dos tipos neles previstos, assim como o questionamento acerca da efetiva proteção penal que a incriminação destes tipos de delitos traz para a sociedade. Mas o problema que terá enfoque central neste trabalho é a tipicidade do crime de porte de arma de fogo desmuniciada, de acordo com a análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1-A TUTELA PENAL DO BEM JURÍDICO. 1.1-CONCEITO DE BEM JURÍDICO. 1.2-FUNÇÃO DO BEM JURÍDICO. 1.3-CLASSIFICAÇÃO DO BEM JURÍDICO PENAL. 1.3-OS BENS JURÍDICO-PENAIS EXTRAÍDOS DOS VALORES CONSTITUCIONAIS. 2-OS CRIMES DE PERIGO. 2.1-CONCEITO DE PERIGO. 2.2-DIFERENCIAÇÃO ENTRE DOLO DE PERIGO E DOLO DE DANO. 2.3-SUBSIDIARIEDADE DOS CRIMES DE PERIGO EM RELAÇÃO AOS CRIMES DE DANO. 2.4-CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES DE PERIGO. 2.4.1-Crimes de perigo concreto. 2.4.2-Crimes de perigo abstrato ou presumido. 2.4.3-Crimes de perigo abstrato com presunção juris tantum. 2.4.4-Crimes de perigo abstrato-concreto. 2.4.5-Crimes de perigo comum e crimes de perigo individual. 3-A CONSTITUCIONALIDADE DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO. 3.1-DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS. 3.1.1-Princípio da legalidade. 3.1.2-Princípio da intervenção mínima. 3.1.3-Princípio da lesividade, da ofensividade ou da materialização do fato. 3.1.4-Princípio da presunção de inocência. 3.1.5-Princípio da culpabilidade. 3.2-A INCONSTITUCIONALIDADE DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO. 3.3-A CONSTITUCIONALIDADE DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO. 4-A TIPICIDADE DO PORTE DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. 4.1-A POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 4.2-A POSIÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
INTRODUÇÃO
O Direito Penal, de acordo com o princípio da ultima ratio, só deve tutelar os bens juridicamente mais relevantes para a sociedade, dada a gravidade das suas sanções. Acontece que os bens jurídicos mais relevantes são assim valorados a depender do contexto social em que se encontram. [01]
Desta forma, a sociedade, segundo seus valores, manifesta sua intenção de proteger determinados bens jurídicos e, em resposta, o legislador proporciona a respectiva tutela legal, por meio, por exemplo, da tipificação de crimes chamados de perigo abstrato.
Tais crimes, no entanto, não obedecem a uma estrutura típica formal, além de irem de encontro com diversos princípios constitucionais. Limita-se, por conseguinte, direitos fundamentais, como a liberdade, com o intuito de corresponder às expectativas sociais, sem se valer de técnica legislativa adequada.
Apesar da existência de ampla controvérsia doutrinária, os crimes de perigo abstrato podem ser identificados como aqueles em que não se exige nem a efetiva lesão ao bem jurídico protegido pela norma, nem a configuração do perigo em concreto a esse bem jurídico.
Nessa espécie de delito, o legislador penal não toma como pressuposto da criminalização a lesão ou o perigo de lesão concreto a determinado bem jurídico, mas a mera possibilidade de dano.
Segundo o Ministro Gilmar Ferreira Mendes [02], no RHC 89.889/DF, baseado em dados empíricos o legislador seleciona grupos ou classes de ações em que, geralmente, levam consigo indesejado perigo ao bem jurídico. Assim, os tipos de perigo abstrato descrevem ações que, segundo a experiência, produzem efetiva lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico digno de proteção penal, ainda que, concretamente, essa lesão ou esse perigo de lesão não venha a ocorrer. O legislador, dessa forma, formula uma presunção absoluta a respeito da periculosidade de determinada conduta em relação ao bem jurídico que pretende proteger. O perigo, nesse sentido, não é concreto, mas apenas abstrato. Não é necessário, portanto, que, no caso concreto, a lesão ou perigo de lesão venha a se efetivar. O delito estará consumado com a mera conduta descrita no tipo.
Os crimes de perigo abstrato presumem, de forma absoluta, a criação do perigo pelo autor da conduta prevista no tipo respectivo. Isto quer dizer que o agente é punido pela mera desobediência da letra da lei, sem que se comprove a existência de qualquer lesão ou ameaça de lesão ao bem tutelado, ou seja, de qualquer resultado jurídico/normativo. A presunção legal de perigo e a tipificação elaborada vagamente, põem em dúvida a sua constitucionalidade, bem como a dos crimes de perigo abstrato.
Isso porque se considera que esta presunção vai de encontro a diversos princípios constitucionais penais, além de não respeitar a estrutura básica do tipo e de ser expressão de uma técnica legislativa reprovável, ainda mais quando suprimem garantias fundamentais do indivíduo.
A maior preocupação da doutrina e da jurisprudência baseia-se no fato de se estar tutelando apenas um comportamento que tem potencialidade lesiva, mas, muitas vezes, nem isso, podendo, assim, nunca ocasionar um dano efetivo. Por essas razões indaga-se até que ponto esses delitos são constitucionais e respeitam os princípios constitucionais penais, os direitos e garantias fundamentais do indivíduo.
O presente estudo buscará examinar a utilização dos crimes de perigo abstrato como a forma encontrada pelo legislador para tentar barrar a criminalidade oriunda da sociedade posta na atualidade, bem como a constitucionalidade desses delitos, tendo como exemplo a tipificação do porte de arma de fogo desmuniciada. Também se investigará se esse tipo de crime se justifica, especialmente em face da Constituição, tendo em conta seus valores, princípios e uma política criminal que vise a concretizá-los.
Assim, analisar-se-á a forma pela qual a sociedade contemporânea vem se caracterizando, as justificativas utilizadas pelo legislador para criminalizar condutas de perigo, a ofensividade de tais delitos aos princípios constitucionais. Após, ver-se-ão as diferenças entre os crimes de perigo e os crimes de dano, os conceitos de crimes de perigo concreto e abstrato, e a fundamentação da existência e abundância deste último nas legislações penais da sociedade contemporânea, além das violações que acarreta ao Direito Penal Clássico.
A premissa desse estudo é o Direito Penal liberal-democrático, que encontra fundamento no Estado Democrático de Direito, no princípio basilar da dignidade da pessoa humana e seus direitos fundamentais e em certos princípios penais daí decorrentes, ligados à uma política criminal que vise à proteção de bens jurídicos que respeite os direitos fundamentais do homem, restringindo-os de modo tanto moderado, principalmente a liberdade, na medida necessária, o quanto baste, para tutelar os bens jurídicos imprescindíveis à vida em comunidade.
1. A TUTELA PENAL DO BEM JURÍDICO
1.1. Conceito de bem jurídico
Atualmente, não há resistência alguma entre os autores de Direito Penal sobre a importância do estudo do bem jurídico, muito pelo contrário, há uma marcada e invariável concordância entre eles de que a intervenção penal só se justifica para tutelar bens jurídicos. Daí ser tão importante a sua conceituação.
No entanto, a conceituação de bem jurídico não encontra muito consenso na doutrina.
De acordo com o ensinamento de Pontes de Miranda [03], bem jurídico é aquele que, por ser relevante para o direito, entrou para o mundo jurídico. É o bem que, por ter sido selecionado como essencial, tornou-se portador de tutela jurídica.
Existem conceitos imanentes, que são aqueles decorrentes da norma, e conceitos transcedentais, que são aqueles independentes da norma, conceitos autônomos, como falava Franz von Liszt [04], que entendia que a norma não constituía o bem jurídico, mas reconhecia-o. O bem, desta forma, seria preexistente à norma.
Vonz Liszt [05] buscava estabelecer uma conceituação com respaldo nas relações sociais, afirmando que o bem jurídico não era criado pelo legislador, mas por este reconhecido. O autor recebeu a crítica de Rocco [06], por não distinguir bem de interesse.
Polaino Navarrete [07] faz sua definição nos seguintes termos: "Em suma, o ‘bem jurídico’ pode ser definido de forma sintética, a nosso juízo, como o bem ou valor merecedor da máxima proteção jurídica, cuja outorga é reservada às prescrições do direito penal".
Já Jakobs preocupa-se com a eficácia da norma e com o sistema, concebendo a partir daí uma posição que significa infirmar a doutrina do bem jurídico. [08]
Na busca da definição de bem jurídico, não se pode deixar de levar em consideração que o homem, que a sociedade vive em função de valores, de modo que as ações que empreendem a respeito de situações, fatos, coisas e também de pessoas são produtos de valorações. Desse modo, se algum valor for de tal relevância que mereça a proteção penal, configurará um bem jurídico-penal.
Sábia é a definição de Francisco de Assis Toledo, para quem "bens jurídicos são valores éticos-sociais que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou lesões efetivas". [09]
No mesmo sentido está a lapidar lição de Claus Roxin, segundo a qual em:
"cada situação histórica e social de um grupo humano os pressupostos imprescindíveis para uma existência em comum se concretizam numa série de condições valiosas como, por exemplo, a vida, a integridade física, a liberdade de actuação ou a propriedade, as quais todo o mundo conchece; numa palavra, os chamados bens jurídicos" [10].
Fragoso entende que o bem jurídico "é o bem humano ou da vida social que se procura preservar, cuja natureza e qualidade dependem, sem dúvida, do sentido que a norma tem ou que a ela é atribuído, constituindo, em qualquer caso, uma realidade contemplada pelo direito" [11].
É importante ressaltar que há bens que foram selecionados e tutelados pelo direito, os bens jurídicos em sentido lato, e outros que, por terem maior importância, são tutelados pelo direito penal, o que significa dizer que há relevante diferença entre o conceito de bem jurídico e de bem jurídico-penal, já que nem todos os bens jurídicos são dignos de tutela penal [12]. É necessário que se tenha em vista os princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade do direito penal.
De acordo com o princípio da fragementariedade, o direito penal não atua sobre toda a realidade fática, mas seleciona os bens que entende mais importantes para proteger, desde que comprovada a lesividade e a inadequação das condutas que os ofendem.
O direito penal não está autorizado a proteger todos os interesses juridicamente relevantes, mas somente aqueles mais essenciais, e em face dos ataques mais graves.
Sendo assim, o direito penal somente é chamado a atuar em condições excepcionais e quando verificados certos fatores. O primeiro diz respeito à dignidade penal do bem jurídico, que é determinada a partir do grau de relevância que o referido bem adquire na sociedade, o que faz com que este receba a qualificação de bem jurídico-penal e exija a tipificação das condutas que o afetam. Para essa análise, é essencial o significado conferido ao princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, pois somente os bens imprescindíveis ao desenvolvimento do cidadão e de sua personalidade é que poderão ser considerados dignos da tutela penal [13].
Além de atentar contra um bem jurídico-penal, a conduta deve ofendê-lo e dessa ofensividade é que decorre que seja grave a lesão e considerável o dano.
Portanto, o fundamento do direito penal material, e que o legitima, é a proteção de valores que se expressam nos bens jurídicos. Assim, o bem jurídico-penal pode ser conceituado como o "bem valorado como essencial à convivência social de certa comunidade, em dado momento histórico, e por isso tutelado pela norma penal" [14].
1.2. Função do bem jurídico
A noção de bem jurídico não se exaure em um simples conceito. Ainda que a definição das suas funções não seja consensual, é importante relacionar algumas.
Primeiramente, as condutas tipificadas no Código Penal são feitas a partir de uma seleção de bens jurídicos. A tipicidade não constitui mero indício de ilicitude, mas representa a seleção de um fato extraído da vida real e que é considerado nocivo á convivência social [15].
Para Assis Toledo:
"o tipo penal é um modelo abstrato de comportamento proibido. É, em outras palavras, descrição esquemática de classe de condutas que possuam características danosas ou ético-socialmente reprovadas, a ponto de serem reputadas intoleráveis pela ordem jurídica" [16].
O bem jurídico busca, portanto, respaldar o trabalho de seleção das figuras penais incriminadoras, que somente se justificam na medida em que tutelem valores essenciais da sociedade, afastando, por conseguinte, incriminações de mero dever. [17] O proibido servirá a tutelar algum valor que seja significativo para a comunidade.
Além da função acima referida, o bem jurídico tem também a função crítica, [18] que se consubstancia na consideração pré-jurídica que se deve ter do bem, porquanto o direito é um produto cultural e vivido antes mesmo de ser normatizado. Na verdade, a função seletiva só se faz possível por meio da função crítica de bens que deve vir antes daquela, porquanto somente após o adequado trabalho crítico é que se chega ao trabalho selecionador de bens merecedores de tutela penal.
No entanto, de acordo com Ângelo Roberto Ilha da Silva:
"a função crítica não deve estar presente apenas como suporte para criminalizar novas condutas lesivas que venham a surgir, mas permanecer presente, possibilitanto, assim, descriminalizar condutas antes previstas como ilícito penal, mas que tenham perdido o seu significado de danosidade social". [19]
Há que se fazer referência, também, a uma função limitadora ou de garantia, porquanto, como se extrai do Código Penal, os crimes ali descritos são sempre crimes contra alguém ou contra algo que se procura preservar. Ademais, conforme leciona Ângelo Roberto Ilha da Silva, "ilícitos tuteladores de bens jurídicos de cunho estritamente ético devem ser descaracterizados, pelo menos em nível penal". [20]
Luiz Regis Prado, ao fazer referência à função de garantia ou de limitação ao direito de punir, afirma que "o bem jurídico é erigido como conceito limite na dimensão material da norma penal". [21]
Importante destacar, ainda, a função dogmática referida por Fiandaca e Musco, que terá como efeito a atipicidade da conduta que não configure lesão a algum bem [22]; a função humanizadora, tratada por Mauricio Antônio Ribeiro Lopes e indicada por Roxin, "como especialização da função de garantia ao expor que só se podem punir as lesões de bens jurídicos se tal for indispensável para uma vida em comum ordenada" [23]; e a função teleológica ou interpretativa, como critério de interpretação de lei penal e que tem nítido caráter dogmático-prático.
O bem jurídico assume, ainda, outra importante função de orientação do operador do direito, seja do órgão do Ministério Público, seja do juiz ou do defensor, frente a casos de diminuta significância lesiva, porquanto não deve o direito penal ocupar-se de bagatelas, tampouco deve haver intervenção penal em campo que não o exclusivo da tutela do bem jurídico. Esta função está intimamente ligada com o tão falado e pregado princípio da insignificância, segundo o qual a lesão ínfima ao bem jurídico tutelado carece de tipicidade material.
Uma última função enunciada por Ângelo Roberto Ilha da Silva, que merece destaque e que está mais afeta ao julgador, está no delito tentado, no qual o modelo típico é
"dado pelo tipo previsto na parte especial do Código Penal ou da lei especial somada à regra do art. 14, II, do CP. Em tal caso, a lei prevê uma pena diminuída de um a dois terços em relação ao crime consumado. Nesse caso, ao aplicar a pena, o julgador terá em conta, além de outros fatores, o nível de afetação do bem jurídico". [24]
Nas palavras de Ângelo Roberto Ilha da Silva,
"em torno de todas as funções mencionadas está implícito o axioma fundamentador e, por conseguinte, legitimidador das incriminações, ou seja, a dedução de que o legislador só poderá incriminar, de forma subsidiária, condutas lesivas a bens fundamentais e imprescindíveis à vida em comunidade. Quando se fala em condutas lesivas, tem-se em consideração tanto a lesão efetiva quanto a exposição a perigo". [25]
1.3. Classificação do bem jurídico-penal
Levando-se em consideração que o bem jurídico deve ser detentor de uma enorme importância, é necessário esclarecer para quem deve ser dirigida essa relevância: para o homem, para a coletividade ou para ambos.
A partir dessa análise, surgem três diferentes posicionamentos na doutrina: a concepção dualista, a monista-pessoal e a monista-estatal ou monista coletivista.
Para os que defendem a teoria monista-estatal ou monista-coletivista do bem jurídico, todos os bens jurídicos são reflexos de um interesse do Estado ou da coletividade. [26] Bens jurídicos individuais não seriam reconhecidos enquanto tais, porquanto o indivíduo somente será protegido na medida em que isso interessasse ao Estado ou à coletividade. [27] Esta é uma posição extremista, que tem como precursor Binding.
Em contrapartida, para a concepção monista-pessoal do bem jurídico, o que se tem em foco são os interesses individuais. Os bens jurídicos da coletividade somente serão reconhecidos legítimos na medida em que se referirem a bens jurídicos individuais, o que significa dizer que essa categoria, por si só, não é objeto de tutela por meio do direito penal. Nesse sentido é o ensinamento de Von Liszt e Hassemer, para quem todos os bens jurídicos são bens das pessoas. [28]
Por fim, a terceira corrente, que defende a concepção dualista do bem jurídico, estabelece que há bens jurídicos tanto individuais quanto coletivos, sendo que não se podem reduzir os bens jurídicos individuais à sua dimensão ou interesse coletivo, estando vedado também pensamento em sentido contrário, de reduzir bens jurídicos coletivos em individuais.
1.4. Os bens jurídico-penais extraídos dos valores constitucionais
Com base no Estado Democrático Brasileiro consagrado pela Constituição da República Federativa do Brasil, é que se deve analisar a legitimidade dos crimes de perigo abstrato em face desta.
É de notar-se que há um núcleo comum consistente no Estado de Justiça, e na especial consideração da dignidade da pessoa humana com suas consequências, e isso advém de uma conquista do pensamento iluminista que norteia a generalidade dos Estados Democráticos ocidentais, que erige o valor central e os demais valores fundamentais sempre a gravitar em torno desse valor primordial, como consequência. Portanto, há um espaço comum nas Constituições ocidentais, de marca democrática, que consagram invariavelmente a dignidade da pessoa humana, a liberdade, o Estado Democrático de Direito e outros, que constituem consequência lógica.
Um conceito material de Constituição, assim entendida, no magistério de Canotilho [29],
"seguindo as sugestões de uma cultura constitucional fortemente radicada – a italiana – o conjunto de fins e valores constitutivos do princípio efectivo da unidade e permanência de um ordenamento jurídico (dimensão objectiva), e o conjunto de forças políticas e sociais (dimensão subjectiva) que exprimem esses fins ou valores, assegurando a estes respectiva prossecução e concretização, algumas vezes para além da própria constituição escrita".
A consideração da Constituição em seu aspecto formal é que irá possibilitar deduzir os parâmetros que subjazem ao estabelecimento de seus valores.
Partindo do exame de valores ou sistema de valores, busca-se desvelar "opções ético-sociais da comunidade jurídico-política representada naqueles valores", [30] em conjunto com o valor da dignidade da pessoa humana e outros deste decorrentes, tais como a vida, a liberdade, a igualdade, a integridade física e moral e alguns bens jurídicos coletivos fundamentais, havendo forte embate doutrinário quanto a estes últimos, os coletivos fundamentais, no que diz com sua tutela por meio da intervenção penal. [31]
Em síntese, pode-se afirmar que é possível auferir valores constitucionais por meio do estabelecimento de um sistema de valores fundado em um esquema constitucionalmente proposto, e que consiste em estabelecer uma leitura do conteúdo material da Constituição e dar-lhe uma interpretação teleológica tendente a concretizar objetivos ético-sociais.
No que tange ao risco de sacrificar-se um bem de hierarquia superior ao bem violado, parece ser inerente à necessidade de tutela de bens constitucionalmente essenciais, porquanto, se assim não fosse, bastaria que o agente infrator optasse por violar bens hierarquicamente inferiores à liberdade para ver franqueada em seu favor uma condução delituosa. [32] No entanto, deve-se ressaltar o ensinamento de Bricola [33], que afirma que a "sanção penal pode ser adotada somente em presença da violação de bem, o qual, senão de igual grau relativamente ao valor (liberdade pessoal) sacrificado, seja ao menos dotado de relevância constitucional".
É verdade que todo ser humano no gozo de suas faculdades mentais possui como valores fundamentais a liberdade, a auto-determinação e a responsabilidade, de modo que, em último nivel, se ele não for responsável na condução da sua liberdade, acabará tendo esta negada, justamente em detrimento de quem sofre os efeitos da liberdade indevidamente utilizada pelo infrator. Não fora isso, a liberdade transcende o valor constitucional, constituindo, a um só tempo, um valor e também um princípio e, enquanto princípio constitucional, não obstante, não se traduz como princípio absoluto como, aliás, qualquer outro.