"A Fifa quer ser soberana e mandar no nosso país. Ela quer montar o estado dela dentro do nosso. Ainda bem que existem outros deputados que pensam como eu e não concordam com isso. Eu, como brasileiro e político, tento defender o interesse público"
Deputado Romário
RESUMO: Este estudo aborda as nuances do Projeto de Lei 2330/11, que dispõe sobre as medidas a serem adotadas durante a Copa das Confederações FIFA de 2013 e a Copa do Mundo FIFA de 2014, a serem realizadas no Brasil. Enfatiza-se, primeiramente, o moderno conceito de soberania, visto na sua forma mitigada. Pontuam-se os direitos de acesso aos eventos esportivos das crianças e dos adolescentes e dos idosos; a responsabilidade civil da União por danos causados durante a realização dos eventos; o ingresso aos estádios mediante a denominada "carteirada"; os novos tipos penais e sua condição de procedibilidade; as novas modalidades de atos ilícitos; a suspensão parcial dos efeitos do Estatuto do Torcedor e do Estatuto do Idoso. Analisa-se, ainda, a eficácia ultra-ativa de alguns dispositivos da Lei Geral da Copa, doutrinariamente chamada de lei temporária, de acordo com o art. 3º do Código Penal Brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Projeto de Lei 2330/11; Copa do Mundo; Soberania; FIFA.
ABSTRACT: This study addresses the nuances of Bill 2330/11, which provides for measures to be adopted during the FIFA Confederations Cup – 2013 and FIFA World Cup - 2014 to be held in Brazil. We emphasize, first, the modern concept of sovereignty, seen in its mitigated form. We address the rights of access to sporting events for children and adolescents and the elderly, the liability of the Union for damages caused during the course of events, the entry to the stadium through the so-called "portfolio": the new crimes and their pursuance condition, new forms of unlawful acts, the partial effects of the Statute of the Fan and of the Elderly. We analyze also the effectiveness of some ultra-active devices of the General Law of the World Cup, doctrinally called temporary law, in accordance with Art. 3 of the Brazilian Penal Code.
KEYWORDS: Bill 2330/11, World Cup, Sovereignty, FIFA.
RESUMEN: Este estudio aborda los matices de lo Proyecto de Ley 2330/11, que establece medidas a ser adoptadas durante la Copa FIFA Confederaciones 2013 y la Copa Mundial de 2014 que se celebrará en Brasil. Destacamos, en primer lugar, el concepto moderno de soberanía, entendida en su forma mitigada. Puntuación de los derechos de acceso a los eventos deportivos para niños y adolescentes y los ancianos, la responsabilidad de la Unión de los daños causados ??durante el curso de los acontecimientos, la entrada al estadio a través de la denominada "cartera": los nuevos delitos y su condición de procedimiento, nuevas formas de actos ilícitos, los efectos parciales de los Estatutos de los aficionados y los ancianos. Se analiza también la eficacia de algunos de los dispositivos de la Ley General de la Copa del Mundo, doctrinariamente llamada ley temporal, de conformidad con el art. 3 del Código Penal brasileño.
PALABRAS CLAVE: Proyecto de ley 2330/11, la Copa del Mundo, la soberanía, la FIFA.
SUMÁRIO :1. Das notas introdutórias; 2. O Projeto de Lei 2330/11, que cria a Lei Geral da Copa; 3. A Soberania como direito fundamental; 4. A Ordem Social e o fomento à prática esportiva; 5. Das medidas relativas aos eventos; 6. Da responsabilidade Civil da União; 7.Dos Crimes relacionados aos eventos; 8.A venda de bebidas alcoólicas e a suspensão da eficácia do Estatuto do Torcedor; 9.Da criação de tribunais no contexto de exceção; 10.Do direito à meia entrada aos jovens e idosos; 11.Reflexões finais; Referências bibliográficas.
1.Das notas introdutórias
Atualmente alguns temas têm despertado o interesse da população brasileira: eleições, crises internacionais, catástrofes ambientais, corrupção e muitos outros. Contudo, o que tem, recorrentemente, chamado a atenção dos brasileiros, eternamente apaixonados pelo futebol, é a realização da Copa do Mundo, prevista para 2014, com o preaquecimento da Copa das Confederações, prevista para 2013.
Antes de a bola rolar pelas arenas brasileiras, construídas especialmente para essa finalidade, nossos legisladores passarão por uma prova de fogo. A votação da Lei Geral da Copa acenderá, indubitavelmente, uma acalorada discussão no Parlamento Nacional.
A Fédération Internationale de Football Association – FIFA, uma associação suíça de direito privado, entra em cena para a criação de normas transitórias de regulação das atividades esportivas que serão realizadas no Brasil.
Tramita no Congresso Nacional projeto de lei que dispõe sobre as medidas relativas à competição mundial, denominada Copa do Mundo de Futebol.
Há entendimento de que referido projeto de lei cria um arsenal de normas contextuais de exceção, com modificações legais e administrativas de caráter excepcional, atentando contra os interesses nacionais a fim de beneficiar a FIFA e seus parceiros. Para se evitar a prevalência da FIFA sobre o Estado, alguns segmentos advogam a necessidade de uma consulta popular, com amplo debate na sociedade, justamente para não quebrar as vidraças da construção democrática, edificada em nossa sociedade a tão duras penas.
Outra corrente, em contrapartida, advoga que o Projeto de Lei 2330/11 não se trata de aberração jurídica que cria contexto de exceção, mas sim normatização que atende as necessidades do Brasil, Estado Democrático de Direito, para se adequar ao mundo globalizado, visando, destarte, a se integrar aos padrões culturais, sociais e financeiros ditados pela modernidade.
Uma terceira argumentação poderia ser construída a partir do conceito de Tribunal de Exceção, que seria aquele criado pos factum. No caso dos tribunais da copa eles estão sendo previamente regulamentados por legislação anterior à ocorrência dos eventos, o que extirparia a ideia de exceção e preservaria a concepção do juiz natural.
2.O Projeto de Lei 2330/11 e a Lei Geral da Copa.
A Lei Geral da Copa (PL 2330/11) tramita no Congresso Nacional, tendo como relator o deputado Vicente Cândido (PT-SP). O texto é tido como prioridade para o governo, mas ainda não está pronto e acabado na comissão especial que analisa a proposta. Alguns pontos causam celeuma, a exemplo da liberação de bebidas alcoólicas durante os jogos da Copa; o direito de pagamento de meia-entrada para idosos; a responsabilidade civil da União pelos danos que causar, por ação ou omissão, à FIFA ou a seus respectivos representantes legais, empregados e consultores, na forma do art. 37, § 6º, da Constituição Federal; a construção de novos tipos penais; questões de visto e permissões com modificações da Lei do Estrangeiro.
Será necessária muita cautela no exame da matéria. Há envolvimento de muitos interesses que vão além da paixão nacional e da estrita legalidade. Conforme exposto, a soberania nacional há de ser discutida, bem como a projeção do Brasil no mundo, a globalização e os recursos financeiros advindos com a copa do mundo de futebol em um país em desenvolvimento como o Brasil.
3.A soberania como direito fundamental.
Ab initio, importante mencionar a posição legal-topográfica da soberania em nossa legislação. Vem expressa no artigo 1º, da CF/88, in verbis:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
Antes mesmo de uma formulação conceitual, é mister saber o que são direitos e garantias fundamentais. Na feliz expressão de Professor José Afonso da Silva, direitos e garantias fundamentais "são aquelas prerrogativas e instituições que o Direito Positivo concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas".
A doutrina ainda costuma citar as seguintes características dos direitos fundamentais: historicidade, inalienabilidade, irrenunciabilidade, imprescritibilidade, limitabilidade ou relatividade e universalidade.
Vários são os conceitos doutrinários do termo soberania fornecidos por nossos estudiosos.
Na definição léxica, soberania quer dizer autoridade suprema, poder soberano, poder político de que dispõe o Estado, de exercer o comando e o controle, sem submissão aos interesses de outro Estado.
"É necessário subir muito alto para bem descortinar as ilusões e angústias da ambição, poder e soberania", já nos ensinava o Marquês de Maricá.
A advogada Dra. Raquel Perini, em sua Obra A Soberania e o Mundo Globalizado, discorre, com acerto e considerável leveza, sobre a evolução história e sistêmica da temática Soberania. Ensina a jurista com maestria:
...foi Jean Bodin o primeiro autor a dar ao tema da soberania um tratamento sistematizado, na sua obra Os Seis Livros da República. Bodin é francês e viveu entre os anos de 1529 e 1596. Para ele, soberania é um poder perpétuo e ilimitado, ou melhor, um poder que tem como únicas limitações a lei divina e a lei natural. A soberania é, para ele, absoluta dentro dos limites estabelecidos por essas leis.
Thomas Hobbes (1588-1679) acredita que os homens, visando a obter uma convivência pacífica, submetem-se às leis e a um poder tal que torne a desobediência das normas desvantajosas. Assim, para que a criação do Estado traga segurança, os homens renunciam a seu poder e transferem-no para uma única pessoa, o que lhes incute a obrigação de obedecer a tudo que o detentor do poder ordenar, desde que os demais façam o mesmo. É o chamado "Pacto de União".
Jellinek vê na soberania a propriedade do poder do Estado pela qual ele pode juridicamente se autodeterminar e se auto-obrigar. É a teoria da autolimitação, forma encontrada por ele para justificar a submissão do Estado soberano ao Direito.
Segundo ele, o Estado formula o Direito, mas se acha naturalmente subordinado a ele; o Estado impõe a si próprio a limitação do seu poder pela Constituição e pela produção legislativa.
A teoria de Duguit negava a existência da soberania.
Várias são as críticas feitas por ele à noção de soberania. Com relação aos seus limites, por exemplo, ele entende que há um dilema irresistível: ou o Estado é soberano e só se determina pela sua própria vontade (não há regra imperativa que o limite e, portanto, haverá o esmagamento do indivíduo pelo Estado), ou o Estado está submetido a uma regra imperativa que o limita, e, então, não é soberano.
Heller acredita que a soberania é um "fenômeno jurídico decorrente do fato de o Estado possuir a última palavra dentro de seu território; assim, o Estado, ao estabelecer o que é de sua competência e aquilo que não lhe cabe decidir, estará em verdade manifestando sua soberania."
Partindo dessa noção, tem-se que jurisdição e soberania são fenômenos muito ligados, pois o monopólio que o Estado tem da coação física e do poder decisório, com relação aos conflitos existentes em seu território, explica o fenômeno da soberania. Deve haver, então, em cada território, uma só unidade decisória, sob pena de, destruindo a unidade do Estado, destruir a ele próprio.
Para Heller, o caráter absoluto da soberania não é abalado pelo direito internacional e pela interdependência entre os Estados soberanos, já que as obrigações resultantes de tratados entre os Estados não descaracterizariam a soberania, mas, ao contrário, a reafirmariam, porque os Estados têm o direito de lutar pela sua conservação. Mas, nesse ponto, permanece a pergunta: se os Estados podem celebrar acordos internacionais com o intuito de garantir sua manutenção, poderão também, em nome de sua conservação, simplesmente deixar de cumprir as obrigações internacionais?
Kelsen defende que o que faz uma norma superior é o fato de ela ser a fonte na qual as demais se fundam. Assim, se o sistema jurídico é o conjunto de normas, uma norma será soberana, quando ela for a fonte primordial de valor deste sistema. Mas se há vários Estados e há igualdade entre eles, poderia subsistir a idéia de soberania? Poderia a soberania pertencer a vários sujeitos?
Para solucionar esse problema, Kelsen busca algum tipo de identidade entre os diferentes sistemas, utilizando-se dos conceitos de monismo e dualismo.
O sistema jurídico para Kelsen é uno, e por isso é impossível aceitar o dualismo, uma vez que, se aceitar a primazia do direito internacional sobre o direito interno, não existe soberania, mas, por outro lado, se aceitar o contrário, a soberania existe, mas surgem outros tipos de problema. Um deles consiste no fato de que, se o direito interno é superior ao internacional, cada país só será soberano sob sua ótica e, havendo várias ordens de valores igualmente soberanas, torna-se impossível solucionar os conflitos existentes entre normas de ordenamentos diferentes. Por isso Kelsen defendeu o monismo, ou seja, defendeu que a ordem jurídica interna e a ordem jurídica internacional não podem ser separadas, e, em caso de conflito entre normas internas e internacionais, estas últimas devem prevalecer. Nesse sentido, a igualdade entre os Estados se traduz pelo princípio da sua autonomia enquanto sujeitos das relações internacionais.
O conceituado constitucionalista JJ. Gomes Canotilho, define soberania da seguinte forma: "A soberania, em termos gerais e no sentido moderno traduz-se num poder supremo no plano interno e num poder independente no plano internacional."
Entre nós, o professor Marcelo Caetano define soberania como sendo:
"um poder político supremo e independente, entendendo-se por poder supremo aquele que não está limitado por nenhum outro na ordem interna e por poder independente aquele que, na sociedade internacional, não tem de acatar regras que não sejam voluntariamente aceitas e está em pé de igualdade com os poderes supremos dos outros povos".
Já professor Alexandre de Moraes, em sua Obra Direito Constitucional, ensina com maestria que soberania é a capacidade de editar suas próprias normas, sua própria ordem jurídica.
Segundo a lição de José Afonso da Silva: Soberania é "o poder supremo consistente na capacidade de autodeterminação".
No magistério do sempre iluminado professor Luís Roberto Barroso, Soberania é um atributo essencial do Estado, sendo conceito de dupla significação: do ponto de vista do direito internacional, expressa a ideia de igualdade e de não subordinação; do ponto de vista interno traduz a supremacia da constituição e da lei e da superioridade jurídica do poder público em sua aplicação e interpretação.
O processo de globalização, a construção de acordos internacionais para o desenvolvimento da tecnologia e expansão das comunicações, "tem permitido a integração de mercados em velocidade avassaladora e tem propiciado uma intensificação da circulação de bens, serviços, tecnologias, capitais, culturas e informações em escala planetária"¸ continua o ilustre mestre.
Assim, nos dias atuais pode-se afirmar que o conceito de soberania ganha novos contornos. Deve-se relativizar o seu conceito para atender os interesses do direito comunitário, desde que seja criação voluntária e tenha por finalidade atender um nível de satisfação de uma comunidade.
No entanto, flexibilizar nossa legislação para atender tão somente a interesses financeiros de uma associação de direito privado, como a FIFA, seria ato de voluntariedade consciente ou seria manipulação coercitiva em detrimento dos direitos do povo brasileiro, historicamente construídos com derramamento de sangue?
Essa flexibilidade legal extrema implicaria perda da nossa soberania afinal? Estaríamos construindo estado de exceção para cedermos a caprichos financeiros da FIFA? Ou apenas estaríamos nos adequando à modernidade, que exige uma integração aos ditames da globalização e dos avanços econômicos mundiais?
4.A Ordem Social e o fomento à prática esportiva.
A Carta Magna de 1988 inovou quando instituiu um Título destinado a proteger a ordem social, que tem como base o primado do trabalho e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais. Destina um capítulo para cuidar da educação, cultura e desporto, este tratado em uma seção, a partir do art. 217, a saber:
"Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:
I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;
II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;
III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional;
IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.
§ 1º - O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.
§ 2º - A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.
§ 3º - O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social."
Não resta dúvida que a realização de uma Copa do Mundo em nosso país pode modificar a vida de muitos brasileiros. Numa visão macro, é fácil entender que as competições que se aproximam trarão a inevitável visibilidade do nosso mercado econômico, a possibilidade de fomentar a economia, a abertura de canais internacionais para negociações, além da utilização do esporte como inserção de jovens nos diversos estratos sociais e prevenção contra os efeitos perversos e malignos das drogas, pois o esporte além de trazer benefícios à saúde, também proporciona momentos de prazer e interação social.
A própria Administração Pública se preocupa com a qualidade do serviço que será prestado, quando da realização da Copa do Mundo, a exemplo da Polícia Civil de Minas Gerais, que já prepara seu corpo policial, proporcionando treinamentos e cursos de capacitação, língua estrangeira entre outros.
Dessa feita, o Estado brasileiro cumpre a prescrição constitucional, na medida em que fomenta o esporte e, em época de Copa do Mundo, o faz, priorizando o futebol, não só como elemento de desenvolvimento social, mas, sobretudo, de incitador da economia.