5. DIREITO E JUSTIÇA
Direito e Justiça são dois lados da mesma moeda. O Direito deve buscar a Justiça. O Direito deve ser Justo[30]. Nesse particular, vale lembrar Eduardo Couture que, em seus Mandamentos do Advogado, no 4º mandamento, nominado como “luta”, pontificou: “teu dever é lutar pelo Direito, mas no dia em que encontrares em conflito o direito e a justiça, luta pela justiça”.
Mas o que vem a ser Justiça?
E mais: como alcançá-la?
Para tentar responder a essas questões, que de há muito intrigam o ser humano, convém citar uma passagem de Cecília Meireles que, ao tentar descrever o que seria liberdade, sintetizou: “não há ninguém que (a) explique e ninguém que não (a) entenda”. Pois bem, o mesmo se pode dizer da Justiça: “não há ninguém que (a) explique e ninguém que não (a) entenda”[31].
Na mesma esteira, está observação do personagem Pip, na obra Great Expectations, de Charles Dickens: “não há nada que seja percebido e sentido tão precisamente quanto a injustiça”.[32]
Estas passagens demonstram que a concepção de Justiça, mais do que descrita, explicada ou definida deve ser sentida, apreendida, captada, aferida, aquilatada num “mix” que envolve lei e fatos; texto e contexto; pessoas, circunstâncias e contigências que interagem entre si e afluem para um entorno.
Justiça não é um conceito racional. Tanto que, por mais esforço e tinta que filósofos e filósofos do Direito, de Platão a Aristóteles; de São Tomás de Aquino a Kant, passando por Rousseau; de Radbruch a Perelman, Rawls, Bobbio ou Amartya Sen, pouco se afastou, “mutatis mutandis”, do “dar a cada um o que é seu”, que, por sua vez, já estava previsto no Digesto I, 1, 1; e no Institutas, I, 1, 3, dos Romanos[33].
Esta definição de Justiça, porém, é insuficiente e remete a outros questionamentos. Por exemplo: “o que deve ser dado” e “a quem deve ser dado”?
Isto apenas confirma que a Justiça dificilmente será alcançada pelo o feixe racional. Deve ser buscada além dos limites da razão, isto é, a partir de sentimentos. Raramente, será materializada – exceto por suposto acaso –, por meio de leituras autômatas de disposições legais, elaborados “pret-a-porter”, conforme previsão do distante e imaginário personagem conhecido como legislador, que, de modo geral, não anteviu – sequer imaginou – o imprevisível, o imponderável que é a vida humana; individual ou coletiva. É nesse diapasão, que Maria Francisca Carneiro, defende que “o Direito não seria – não é – uma atividade meramente racional, mas englobaria também aspetos tangentes à emoção e à sensibilidade”.[34]
Com efeito, operar o Direito – e com Justiça – pressupõe, dentre outras, uma postura de empatia para com o próximo. Colocar-se no lugar do outro, “sentir” seus dramas, seus sonhos, seus desejos; pôr-se em sua posição; vislumbrar suas expectativas, legítimas ou não; perceber suas dores, frustrações, anseios e medos; reais ou fictícios, e tentar, no caso concreto, valendo-se, de preferência, da régua de Lesbos, mencionoda por Aristóteles, no Capítulo 5, de sua Ética a Nicômaco[35], restabelecer o equilíbrio (“mesótes”) que tenha sido abalado ou rompido por razões específicias e/ou inusitadas no episódio em exame.
Aqui repousa a ideia de Justiça, seja ela distributiva, comutativa, restaurativa, retributiva, o que transcende a meras regras frias e/ou a partir de interpretações mecânicas. Antes, exige sentimentos próprios da “Aesthesis”, em que a Música, inegavelmente, se insere e auxilia.
Por evidente, não se pretende aqui desenvolver ou expor novo método ou teoria de raciocínio jurídico apto a proclamar uma novel teoria da Justiça. Nada mais equivocado. Defende-se, sim, a ideia de que o Direito não pode prescindir do conceito e mesmo da busca da Justiça por mais difícil e, talvez, utópico que isso possa parecer. Caso contrário, pode-se incorrer num niilismo jurídico pernicioso sem precedentes e com ele aceitar, por indiferença ou passividade, qualquer Direito, mesmo aquele próprio de regimes totalitários, relegando ao esquecimento todos os valores humanitários presentes nos Direitos Fundamentais, conquistados que foram a duras penas em Séculos de Civilização, o que seria inegável retrocesso[36].
Neste particular, Eduardo Bittar e Guilherme Assis de Almeida advertem: “O Direito, quando se afasta da justiça, revela-se, em grande parte, arbítrio, força opressora, puro ato de imposição, e, com isso, sem ser balança, oprime pela espada que deve proteger”.[37]
A dificuldade de se atingir e se concretizar um Direito Justo, mais do que uma meta ou um objetivo, será sempre um desafio do qual não pode se afastar seu intérprete/aplicador. A dificuldade deve ser vista mais como um elemento de motivação, e não como um fim inatingível. Dificuldade, aliás, não é sinônimo de impossibilidade, até porque, como a experiência demonstra, decisões judiciais justas são proferidas!
Seguindo essa mesma orientação, estão as entusiáticas recomendações de Cesar Asfor Rocha, na obra Cartas a um jovem juiz:
A nenhum de nós é estranho o tormentoso problema da justiça, não faltando os que dizem que ela é algo tão subjetivo e rebelde à conceituação que é empreendidamento impossível defenir-lhe o exato conteúdo. Mesmo os que participam dessa desalentadora conclusão sabem detectar uma injustiça quando a encontram, e isso já é suficiente para afirmar que a justiça é um bem que se pode alcançar; basta persegui-lo com obstinação e denodo, o que me faz lembrar a reflexão de Calamandrei ao dizer ser preciso acreditar na justiça, que, como todas as divindades, só se revela àqueles que nela creem.[38]
Em arremate, a aproximação entre Direito e Música emerge como fator de complementação e diálogo – jamais de exclusão – entre razão e emoção, o que alarga e amplia os caminhos para se chegar a um Direito Justo.
6. RISCOS DE UMA SUBJETIVIDADE DEMASIADA?
No contraponto do que aqui se expõe, poder-se-ia argumentar que esta linha de pensamento contribui em demasia para a subjetividade, para “decisionismos”, para a manipulação de linguagem, para apelos emocionais descontexutalizados, para um relativismo quase absoluto que aceita qualquer solução jurídica, conforme as aspirações ou convicções pessoais de justiça e mesmo habilidade do detentor da palavra, condutor e direcionador do raciocínio jurídico então alinhavado.
A crítica não procede.
Não há dúvida que toda forma de subjetividade, de fato, traz em si visões de mundo diferentes, a partir das experiências do sujeito respectivo. Visões estas (valores) que, sem dúvida, irão repercutir na solução jurídica do caso. Contudo, negar a subjetividade é antinatural. Ela sempre vai existir. Sobre o tema, veja o que diz o neurocientista Miguel Nicolelis:
Circuitos neurais formados por milhões ou mesmo bilhões de neurônios produzem continuamente propriedades emergentes (...). Propriedades emergentes também são responsáveis por outras funções cerebrais, mas altamente complexas, como a percepção do mundo que nos cerca, a geração de expectativas sobre eventos futuros e nosso senso de existir como indivíduos únicos.
O sistema nervoso está sempre tomando a iniciativa e buscando informações tanto sobre o corpo que habita como o mundo que o circunda, compondo de maneira cuidadosa a máscara de realidade, opiniões, amores (...). Essa procura incessante e quase obsessiva por informações e conhecimento mantém o que gosto de chamar de “ponto de vista próprio do cérebro”.
(...)
Dessa forma, a visão cartesiana de que o cérebro humano interpreta ou decodifica passivamente sinais gerados no mundo exterior, sem nenhuma opinião prévia, prejulgamento ou expectativa vinculados a esse processo, não pode mais resistir à evidência experimental acumulada nas últimas décadas.[39]
A par disso, a subjetividade, inerente à condição (e mente) humana, longe está de ser um problema. Ao revés, é um dos caminhos a ser trilhado pelo operador do Direito em busca de um Direito Justo. O Direito, assim como a vida, não é estático. Deve, pois, acompanhar os passos da civilização, sejam estes para frente ou para trás. Logo, somente um intérprete; ou melhor: um sujeito (daí subjetividade) atento e, sobretudo, sensível ao cenário subjacente é que poderá materializar um Direito com efetividade e em sintonia com a vida e valores que o cercam.
Além do mais, todas as vezes que se tentou construir um Direito objetivo, certo e seguro; rígido e fechado, os resultados foram desastrosos. Ficou demonstrado que a ideia de completude do ordenamento jurídico e do juiz como a boca da lei, nos moldes da Escola da Exegese da França, são incompatíveis com a vida real. O Direito, assim como a vida, se constrói e se reconstrói dia a dia; num fenômeno autopoiético, bem ao estilo descrito por Niklas Lhumann[40].
Some-se a isso, que a subjetividade que existe no Direito não significa que todo o poder de dizer o Direito está restrito a apenas um indivíduo, hipótese em que, aí sim, haveria riscos de uma subjetividade exacerbada; de uma ditadura judicial ou daquele que seja dotado da melhor retórica. Mas o que se tem hoje é que a interpretação/aplicação do Direito se realiza mediante um processo dialético, de modo que ao se mencionar o vocábulo “juiz”, não se está a dizer “um” juiz ou “o” juiz, mas a se referir ao Poder Judiciário, que, por seu turno, é composto de vários juízes e que, num único processo, em regra, atuam em vários níveis e graus recursais, pulverizando o “juris dictio”. Isto, ao invés de restringir e concentrar o debate, amplia-o pois é da soma que resulta o todo.
Ainda nesta esteira, não se pode esquecer que existem inúmeros critérios, princípios e institutos jurídicos, edificados ao longo da História do Direito, que permitem coibir raciocínios jurídicos teratológicos, supostamente decorrentes de uma subjetividade inaceitável. Podem ser lembrados a necessidade de se observar o devido processo legal em sua concepção substancial; que, por si só, traz implícito o contraditório e a ampla defesa; a oportunidade de revisões das decisões judiciais, via recursos; os delineamentos que materializam a teoria das provas. Há, outrossim, os métodos e princípios de hermenêutica jurídica que permitem checar o caminho trilhado pelo operador ao construir seu discurso jurídico, tudo com vistas a impedir erros e falhas. Erros e falhas, a propósito, que, queiram ou não, sempre existirão, por ser tratar de obra executada por humanos (“errare humanum est”), o que, também, não pode ser desconsiderado, sob pena de negar a realidade da vida.
Neste cariz, o que se pode dizer é que a relação entre Direito e Música não ignora a subjetividade e os sentimentos, as emoções e os valores que a acompanham. Ao contrário, amplifica-os e, por conseguinte, enriquece o debate, não de maneira autoritária, cega, abstrata ou formal, mas aberta ao ser humano; à vida. Estabelece pontes que permitem unir razão e emoção, o que, em outros estudos, vem sendo chamado de “razão sensível”[41]. E é neste cenário que Eduardo Bittar e Guilherme Assis de Almeida sustentam: “quando razão e sensibilidade se encontram, o Direito opera (a)Justiça”[42].
A associação entre Direito e Música permite ao estudioso e ao operador do Direito um papel mais ativo, flexível, perspicaz e atento à dinâmica que caracteriza e torneia as relações intersubjetivas. Alerta-o que atrás da “dureza” da lei e da “frieza” dos autos existem pessoas, movidas por sentimentos, os quais não podem ser desprezados pelo operador jurídico, e que assim o fazendo estará contribuindo para um Direito melhor interpretado/aplicado; um Direito Justo.
Esta aproximação, cumpre destacar, não nega ou exclui as balizas que fundamentam o Direito em suas premissas racionais. Muito ao contrário, complementam-no e auxiliam-no numa busca convergente entre Direito e Justiça.
7. CONCLUSÃO
Do desenvolvimento do tema, foram extraídas as seguintes conclusões:
1. Estudos transdisciplinares têm sido uma nova maneira de se estudar o Direito, ampliando o espectro do investigador. Atualmente, há registros de pesquisas envolvendo Direito e Cinema, Direito e Literatura, Direito e Matemática e, inclusive, Direito e Música. Esta perspectiva contribui para uma visão mais humanística e sensível de captar a realidade da vida e da natureza humana, sem negar ou rejeitar a técnica jurídica, o que, acredita-se, contribui para uma melhor interpretação/aplicação do Direito.
2. Já existem pesquisas cotejando Direito e Música. Embora estas ainda estejam em fase inicial, já se pode perceber que a Música, como expressão artística que é, permite ao estudioso e operador do Direito acessar campos que os limites da razão não adentra. Amplia-se, pois, o instrumental do estudo do Direito.
3. Dentre os vários pontos em comum entre Direito e Música está a interpretação. Tanto a Música, como o Direito tomam por base referenciais. Na Música esse referencial é a partitura; no Direito, de modo geral, a lei. Sucede que, por mais objetivo que sejam esses sinais (signos) tidos como referenciais, sempre será necessária a intervenção humana; o intérprete. É este que fará a ponte entre esses sinais e a realidade, visando a harmonia, tanto no Direito, como na Música.
4. A relação entre Direito e Música permite a aproximação entre Direito e Estética. Enquanto o Direito busca a Justiça, a Estética se foca no Belo. Ambos têm como pressuposto a sensibilidade de seus agentes para expressar o que não se revela pela mera técnica. A técnica é instrumento empregado por seus agentes para se chegar ao Belo ou ao Justo. Mas só a técnica não basta para atingir seu fim, salvo situações excepcionais, decorrentes mais do acaso do que de outros fatores.
5. A definição clássica e secular de Justiça (“dar a cada um que é seu”) evidencia sinais de limitação no plano racional. Afinal, o que deve ser dado e a quem? Isto confirma que um Direito Justo exige mais do que regras pré-moldadas para a dinâmica, complexa e, por vezes, imponderável da realidade da vida e dos relacionamentos intersubjetivos. Exige sensibilidade para ver o que, ordinariamente, não está à vista.
6. A abertura que a relação entre Direito e Música propicia ao reconhecer o fator sensibilidade presente em ambos, não implica em riscos de uma subjetividade demasiada e, com isso, colocar em risco a segurança jurídica. Primeiro, porque a subjetividade é inerente à condição humana. Segundo, porque existem critérios e institutos jurídicos a coibir disparates jurídicos, eventualmente decorrentes de uma subjetividade que se revele inadmissível em casos concretos. Terceiro e, por último, a relação entre Direito e Música, ao reconhecer o fator emoção na contribuição de um Direito Justo, não exclui os instrumentos da razão jurídica. Ao contrário, implica na ampliação de horizontes, complementares e dialógicos na materialização de um Direito Justo.