O debate sobre o Conselho Nacional de Justiça vem ganhando contornos cada vez mais nítidos na atualidade. Mais recentemente, em uma revista de veiculação nacional[i], a DD. Ministra Eliana Calmon do STJ concedeu entrevista em defesa da instituição em testilha. O posicionamento ideológico da insigne jurista em favor do recrudescimento nas funções do CNJ, por meio de um maior rigor na fiscalização do desempenho dos Magistrados corresponde a uma necessidade democrática de equilíbrio de poderes estatais e atende a um imperativo ético da sociedade contemporânea, sequiosa de uma prestação jurisdicional mais célere, eficiente e repressora de interesses escusos.
Com efeito, aponta a célebre jurista:
“O Magistrado precisa ter um comportamento absolutamente correto. O juiz é quem garante que o comportamento dos cidadãos se mantenha de acordo com a lei e os bons costumes da sociedade. O Poder Judiciário é fiador, em última análise, da própria cidadania. Por isso, o deslize ético de um profissional pago com dinheiro público para fazer o bom direito é mais grave que o de qualquer outro” [ii].
Dignas de ponderação são as reflexões acima apresentadas.
Primeiro, cabe considerar que os juízes, membros componentes do Poder Judiciário, têm responsabilidade direta na pacificação dos conflitos sociais, inserindo-se na “tutela jurisdicional da organização judiciária e só têm significado sistemático e legitimidade política na medida em que se traduzam em garantias ao consumidor do serviço jurisdicional”[iii].
Conclama olhares mais atentos, portanto, que a atividade dos juízes excede a prestação técnico-jurídica, considerada o próprio escopo de solução de crises jurídicas de certeza e de adimplemento. A legitimidade política do Judiciário, enquanto Poder, não se esgota no momento inicial de constituição do Estado, quando se operou a opção do constituinte originário pela independência dos membros do Pouvoir de Juger. Ao contrário, tal legitimação demanda a renovação constante do compromisso social de destrinçar as pendências jurídicas dos cidadãos, sem opor quaisquer resistências a um controle externo, para salvaguardar da higidez das engrenagens democráticas.
Os desdobramentos deste compromisso social, marcado por repercussões políticas multifacetadas, permaneceu durante muito tempo obscurecido pela névoa da indissipável desconfiança que contamina a sociedade, em relação ao Judiciário, acusado de excessiva leniência em relação às faltas perpetradas por seus membros. Seria injusto, de um lado, pensar que o mau proceder de uma minoria de magistrados, desvinculados dos propósitos éticos do Judiciário, macula toda uma classe profissional de obreiros jurídicos de valor. Contudo, cada notícia de corrupção envolvendo o nome de um juiz alimenta os olhares oblíquos e enviezados do cidadão comum em relação ao Judiciário.
Muito além de buscar preservar a imagem de uma casta profissional, tais olhares de soslaio, além de ressoarem sentimentos sociais negativos, produzem um efeito prático indelével: mitiga-se a garantia constitucional de acesso ao Judiciário, insculpida na Constituição Federal, art. 5º, inc. XXXV.
As dificuldades de acesso ao Judiciário não decorreriam de circunstâncias práticas, como a carência de informação (felizmente, cada vez menos sentida nos dias atuais), ou jurídicas, como a inadequação técnica do direito processual enquanto instrumento ético de solução de crises sociais, mas sim, uma consequência sociológica da imagem ostentada pelo Judiciário.
Em resultado ao quadro já exposto, os comandos constitucionais que, em sua eficácia imediata, permitem o acesso irrestrito à prestação jurisdicional, deixam de se mostrar uma opção válida, sobretudo em feitos de competência cível, versando sobre direitos disponíveis. E, se muitos dos feitos que ingressam no contencioso cível têm natureza disponível, a própria garantia constitucional de atendimento estatal na solução de conflitos por sub-rogação do Judiciário não é.
Existe no Brasil, por conseguinte, um quadro endêmico, em que uma cláusula pétrea, constitucionalizada e de matiz garantista, tem sua eficácia plena mitigada por um fenômeno sociológico que apenas o direito não pode combater.
Vale recordar que a relação pragmática existente entre as normas jurídicas e os destinatários destas normas, os sujeitos de direito no Estado democrático, não obstante imbuída do mesmo caráter prescritivo que define a relação jurídica, podem encontrar um limite de efetividade, pela resistência dos sujeitos envolvidos na relação[iv]. Em outras palavras, a garantia constitucional de acesso ao Judiciário, ainda que provida de um telos específico bastante claro no ordenamento jurídico, encontra sua aplicabilidade de seu mister fundamental corroída por uma sociedade fragilizada quanto ao exercício de atos de cidadania mais elementares[v].
A gravidade do fenômeno, cujas raízes sociológicas, exorbitam as dimensões deste artigo, fazem as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos (Constituição Federal, art. 95, inc. I, II e III), soarem como privilégios, conquanto nada possa desnaturar sua real essência, a de cláusulas constitucionais de necessária salvaguarda dos membros do Judiciário, para quem possam cumprir, em fidelidade aos mandamentos éticos da Lei Maior, a mais típica de suas funções: a dissolução de conflitos jurídicos, convergendo à constituição da coisa julgada com fulcro a restabilizar as relações sociais.
Em conclusão, a reabilitação na estrutura do Judiciário que visa combater a “crise de desconfiança” conforma-se com o mesmo espírito reformista que ensejou a edição da Emenda Constitucional nº 45 de 2004. Fomentada pela mesma premissa de eficiência que motivara outra emenda, a Emenda Constitucional nº 19 de 1998, aquela primeira inseriu o Conselho Nacional de Justiça na Constituição Federal, art. 92, inc. I-A.
Tecnicamente, o dispositivo nitidamente controverso (JOSÉ AFONSO DA SILVA[vi]) parece padecer de falha, pois, não obstante o CNJ tem um caráter fiscalizador e, até certo ponto, correicional, é difícil impingir-lhe a tarefa de supervisionar a desenvoltura dos membros do Judiciário, como órgão de controle externo, independente e pujante, se a própria Lei Magna o classifica como órgão do próprio Judiciário!
Impende ressaltar ainda, na mesma linha de argumentação, que o CNJ dispõe de uma composição heterogênea (Constituição Federal, art. 103-B), porém, aparentemente pouco compatível para um órgão fiscalizador do Judiciário. Dos quinze integrantes do CNJ, apenas seis não são órgãos do Judiciário, ao passo que três quintos, nos quais se inclui o próprio Presidente do STF (em virtude da Emenda Constitucional nº 61/2009), são Magistrados ligados às Judiciaturas existentes no organograma do Judiciário.
A doutrina divide-se com relação ao entendimento em torno da instituição do CNJ, ainda que em geral a communis opinio doctorum teça considerações aprovadoras a respeito.
Um argumento favorável é de natureza histórica, pois a experiência política de criação de semelhante conselho já foi vivida em diversos países, como Itália (art. 105 de sua Constituição), França (art. 65), Portugal (art. 223º), Espanha (art. 122), Turquia (arts. 143-144), Colômbia (arts. 254-257) e Venezuela (art. 217)[vii].
Também pesam, nesse tocante, as considerações quanto à eficácia das funções judiciais, diretamente relacionadas à atuação de um Conselho de controle externo, formulador de políticas judiciais e prevenindo que “os integrantes do Poder Judiciário se convertam num corpo fechado e extratificado”[viii], com indica FIX-ZAMUDIO, o que certamente ajuda a atenuar os ressentimentos sociais em relação à classe dos Magistrados.
Tão valiosa quanto o combate à morosidade judicial, todavia, é a reafirmação histórica da legitimidade democrática que o CNJ carreia.
Não existe qualquer afronta à Constituição Federal na criação do CNJ. As discussões acerca da matéria estão longe de estabelecer qualquer consenso, ainda mais se for considerado o teor de recente Súmula do STF (Súmula 649), segundo a qual “é inconstitucional a criação, por Constituição Estadual, de órgão de controle administrativo do Poder Judiciário do qual participem representantes de outros Poderes ou entidades”. De fato, a manutenção do regime democrático encontra supedâneo na preservação de garantias essenciais aos Poderes do Estado, como o autogoverno e a autonomia financeira, administrativa e orçamentária”[ix]. Entretanto, considerando as prerrogativas do CNJ, não só tais garantias permanecem intocáveis, como também a independência dos Poderes – é sempre válido recordar – não é absoluta, mas vem balizada, no melhor espírito da Schutzzwecklehre, pela doutrina do check and balances, inspirada pelo federalismo norte-americano e com previsão na Lei Magna (Constituição Federal, art. 60, §4º, III)[x]. A higidez da ordem democrática apoia-se não tanto na autonomia de cada Poder, mas no equilíbrio entre os Poderes.
Para efeitos práticos, em 13.04.2005, o STF, julgando a ADI 3.367 movida pela AMB – Associação de Magistrados Brasileiros, considerou constitucional o Conselho Nacional de Justiça, afastando quaisquer vícios formais, reconhecendo inexistir afronta aos arts. 2º e 18 da Constituição Federal[xi]. Em suma, o CNJ conta hoje com chancela da própria Corte Constitucional brasileira.
Não é desarrazoada a decisão autorizativa para a instauração do CNJ: não existe nada na órbita constitucional que possa subtrair as garantias político-fundamentais conferidas ao Poder Judiciário, ou a qualquer outro Poder na realidade, porquanto uma das cláusulas pétreas expressamente postas na Lei Maior é a própria separação de poderes (Constituição Federal, art. 60, §4º III).
Não se questiona a importância política cabedal da independência do Judiciário, com vistas à consecução dos objetivos do Estado democrático de Direito. Ao contrário, a atuação do CNJ, em verdade, compartilha estes mesmos objetivos, sobretudo porque o juiz exerce o papel de, na inestimável lição de OTT BACHOFF, “órgão próprio, não do Estado, nem da Coroa, mas sim da lex terrae, como viva vox legis, tendo em conta que para essa conclusão, lex não expressa a vontade de um governante, mas um direito estabelecido na comunidade e por ela mesmo aceito e vivido”[xii].
O que se pode extrair, à guiza de conclusão, é que a necessidade de conciliar o demandismo social pela maior transparência, eficiência e probidade dos Poderes Estatais, em especial do Judiciário, com a preservação de um dos princípios basilares da democracia moderna, a separação e independência desses mesmos Poderes, converteu o CNJ num órgão administrativo interno do Poder Judiciário, enquanto solução técnica para assegurar-lhe a constitucionalidade, afastando a tese de afronta à cláusula inserida no art. 60 §4º III da Constituição perante o STF[xiii]. Assim, não se tratou de lapso técnico, mas de solução político-constitucional para gerir a criação de um órgão de atribuições garantistas e fiscalizadoras frente ao desempenho do Judiciário.
Como órgão componente da hierarquia do Judiciário, o CNJ desempenha atividades fundamentais, tanto com vistas à higidez administrativa e financeira do Judiciário, quanto para nortear a atuação dos magistrados com base nos princípios da probidade e da eficiência e, se necessário, para adotar medidas repressivas pelo descumprimento de deveres funcionais[xiv].
Tais misteres, delineados no texto constitucional no art. 103-B §4º, exprimem enfim uma necessidade que, dissipado o manto dos refluxos políticos, se mostra compatível com a separação e a independência de poderes, sem ferir o autogoverno do Judiciário, mas prevenindo eventuais futuras máculas à honradez da Magistratura, em consonância com o princípio administrativista da eficiência. Inicia-se, além disso, uma investida estrutural na organização judicial que prestigia também o princípio da moralidade, cumprindo o desiderato ético que norteia as normas constitucionais.
Notas
[i] V. Revista Veja. Editora Abril. Ed. 2237, ano 44, nº 40, datada de 05 de outubro de 2011, pp. 64-5.
[ii] V. Revista cit., nota i supra, p. 65.
[iii] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil I. São Paulo: Malheiros, 6ª ed., 2009, p. 363.
[iv] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 2ª ed., 1994, pp. 316-7.
[v] A experiência histórica absolutista foi tão severa em países como a França que, após ter sido debelado o processo de reformulação estatal com a Revolução Francesa, operou-se a cisão entre o contencioso judiciário e o contencioso administrativo, em reação à desconfiança popular quanto à atuação dos juízes.
[vi] DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 34ª ed., 2011, p. 568.
[vii] DA SILVA, José Afonso. Comentário textual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 7ª ed., 2010, p. 575.
[viii] Cf. DA SILVA, J. A. Comentário cit., nota vii supra, p. 575.
[ix] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 7ª ed., 2011, p. 717.
[x] DE MORAES, Alexandre. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 27ª ed., 2011, p. 541.
[xi] Cf. LENZA, Pedro. Direito cit, nota ix supra, p. 718.
[xii] Cf. DE MORAES, Alexandre. Direito cit., nota x supra, p. 538.
[xiii] FERREIRA MENDES, Gilmar, MÁRTIRES COELHO, Inocêncio e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 5ª ed., 2010, p. 1.137.
[xiv] Cf. DE MORAES, Alexandre. Direito cit., nota x supra, p. 549.