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MP 545: desoneração da cadeia produtiva do café.

O Brasil corrige parte das distorções, mas mantém outras

Agenda 27/02/2012 às 08:00

Há de vir um dia que a Justiça reconhecerá, de forma definitiva, que até mesmo nos tributos indiretos, como é o PIS/COFINS, o ICMS, o IPI e vários outros que incidem sobre as cadeias produtivas do agronegócio, inclusive sobre o café, podem sim existir efeitos confiscatórios.

Após negociações com o Governo Federal, o setor produtor do café logrou obter a aprovação da MP 545, que trouxe inúmeras modificações na tributação do PIS/COFINS incidente na cadeia produtiva. A medida, acolhida como conquista pelo segmento, se mostra acertada, pois corrige algumas distorções na matriz tributária brasileira, uma vez que, por exemplo, dá aplicação ao princípio do destino, tão caro nestes tempos de acirrada competição internacional no produto.

De fato, o modelo anterior de tributação continha algumas distorções que reduziam a competitividade, tanto em razão da complexidade da tributação, quanto em razão da própria carga tributária em si, visto que o crédito na aquisição para processamento limitava-se a 35% (trinta e cinco por cento), nas operações de mercado interno, desincentivando, deste modo, as aquisições do produtor pessoa física. Por outro lado, o setor aponta a tendência de concentração do modelo tributário anterior, pois incentivava a incorporação das pequenas empresas, pelas grandes, além da possibilidade de fraude, em determinadas operações, em razão do verdadeiro incentivo à constituição de empresas exportadoras tendo em vista tão somente a possibilidade de aproveitamento dos créditos.

A MP 545 suspende, em seu artigo 4., a incidência do PIS/COFINS na cadeia do café cru (Café não torrado e Outros – Códigos TIPI 0901.1 e 0901.90.00). Neste caso, a suspensão da incidência em referência não alcança a receita bruta auferida nas vendas a consumidor final, mantendo, assim, a tributação na venda direta do produto, o que prejudica o consumidor direto, mas é coerente com o objetivo da norma de incentivar o processamento do grão. Por outro lado, restou vedada às pessoas jurídicas que realizem as operações de venda de café a apuração de créditos vinculados às receitas de vendas efetuadas com o que a norma denomina “suspensão”.

Cumpre esclarecer que deve ser entendido como “isenção” aquilo que a norma denomina “suspensão da incidência”, restando a falta de técnica do legislador explicada pelas já tradicionais justificativas da doutrina, especialmente a composição heterogênea do legislador, ainda que se saiba que a medida provisória seja obra de segmentos especializados da administração federal.

Com a devida vênia, a fórmula utilizada pelo legislador é equivocada, pois conduz o contribuinte a uma situação de insegurança eis que, no futuro, é possível, em tese, visualizar edição de normativo que determine o recolhimento do tributo “suspenso”, ainda que com a apuração de créditos também suspensa pelo § 2º do dispositivo legal em referência. Este cenário não pode ser descartado de forma alguma, dadas as práticas da arbitrária administração tributária brasileira, que não se constrange, vez por outra, de laborar contra a segurança jurídica, sempre sob o fundamento da necessidade de recursos para atender aos reclames do orçamento.

A menos que se considere que o tributo, com a “suspensão da incidência” em referência, deva ser recolhido um dia, com a devida atualização, ao qual a MP não se refere, não parece ter sido este o objetivo da instituição do benefício, sobretudo quando se lê no parágrafo segundo do dispositivo que não será possível o aproveitamento de créditos vinculados às receitas de vendas efetuadas com a tal “suspensão de incidência”.

Melhor interpretação, portanto, é a que determina ser o caso de isenção tributária do PIS/COFINS, não sendo possível à administração tributária, ainda que por lei, determinar o recolhimento do tributo “suspenso”, sob pena de violação do princípio constitucional que protege o ato jurídico perfeito, além do princípio da irretroatividade da lei tributária.

Por outro lado, o art. 6º, § 2., da MP 545, concede crédito presumido de 80% (oitenta por cento) do crédito de 9,25% (nove vírgula vinte e cinco por cento) para o café cru (não torrado) adquirido de pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no País (art. 6., § 1.), ou seja, nas operações internas, e na exportação do café industrializado (art. 6., § 5.).

O crédito de 80% (oitenta por cento) deve ser calculado sobre o valor de aquisição dos produtos classificados no código 0901.1 (Café não torrado) da TIPI utilizados na elaboração dos produtos classificados nos códigos 0901.2 (Café torrado) e 2101.1 (Extratos, essências e concentrados de café e preparações à base destes extratos, essências ou concentrados ou à base de café) da TIPI.

Resta aqui bem demonstrado o acerto da medida no ponto que em que incentiva o processamento do produto, ou seja, somente existirá o crédito se a aquisição do café não-torrado tiver por destino a produção de café torrado, extratos, essências e concentrados, que são produto com maior agregação de valor. A tributação, neste ponto, alonga a cadeia produtiva, espalhando seus efeitos extrafiscais por um número maior de elos, alcançando, assim, os vários agentes econômicos envolvidos no processo produtivo, especialmente na incorporação de tecnologia aplicada sobre o produto primário.

Por fim, a MP 545 (art. 5. § 1.) prevê um crédito presumido de 10% (dez por cento) dos 9,25% (nove, vírgula vinte e cinco por cento), do valor da saca de café cru exportada (somente do café não-torrado, ou seja, cru, in natura) o quê, sem embargo de representar um avanço no sentido de reduzir a exportação de tributos, implicando em prestígio ao princípio do destino, não deixa de significar um retrocesso do ponto de vista do incentivo à industrialização do produto no país. Por quê incentivar exportação do produto cru?

De fato, o incentivo à exportação do produto processado é de 80% (oitenta por cento), muito maior do que o crédito prêmio na exportação do produto cru, que é de 10% (dez por cento). Ocorre que a diferença entre os incentivos em referência pode justificar a preferência pelo caminho da exportação do produto não processado, tendo em vista as peculiaridades e o contexto de cada região produtora, o que não deixa de ser uma incoerência.

Assim, em resumo, a medida desonera a aquisição do café cru, ou seja, aquele adquirido do produtor, liberando o adquirente (torrefadeiras) do referido encargo. Além disso, concede o mesmo crédito presumido na exportação do produto. Ou seja, a partir da referida MP a tributação torna-se mais neutra, pois o gravame tributário é reduzido, tornando o produto mais competitivo e acessível a extensas camadas da população interna e do mercado externo.

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É relevante notar que o incentivo maior fica para a exportação do café industrializado, ainda que o produto cru também tenha sido beneficiado, o que é correto, posto que incentiva a agregação de valor do produto no país, o que vem ao encontro de sucessivas medidas desonerativas das exportações de produtos processados, e reduzindo as distorções da matriz tributária brasileira, em sua atual configuração.

A tributação, como toda e qualquer externalidade, indica o peso de importantes compromissos do produtor com sua comunidade e com seu país. A produção cafeeira tem sim o potencial de provocar desequilíbrios no meio ambiente, sobretudo pelo seu avanço em áreas de preservação permanente, acaso praticada em morros e em encostas, além de poder se tornar triste palco de exploração de trabalhadores em condição de escravo, ou análoga, o que vez por outra é denunciada pela Fiscalização do Trabalho e pelo Ministério Público do Trabalho.

Entretanto, se for realizada de acordo com os prescritivos constitucionais, normativos e reitores de toda e qualquer atividade agrária, sobretudo à luz do princípio da função social da propriedade rural (art. 186, CF/88), importa no prestigiamento da dignidade da pessoa humana e na geração de oportunidades de renda para inúmeras pessoas, além de trazer recursos financeiros para o erário público para que este realize seus compromissos com a sociedade.

Importa, do mesmo modo, na acumulação de divisas para o país, na vertente dos importantíssimos superávits em balança comercial sucessivamente acumulados ao longo de anos em decorrência das capacidades produtiva e competitiva da cadeia do café brasileiro, o que se revela de especial relevância nestes tempos de crise econômica internacional, sobretudo nos mercados que importam o produto originário daqui do Brasil e que tendem em reduzir sua demanda face à queda da renda disponível para o consumo naqueles países.

A medida é benéfica para o segmento do café, posto que torna o produto mais acessível e deve ser recebida com encômios tanto pelo aspecto econômico, já que propiciará a abertura de mercados, como, do ponto de vista jurídico, em menor extensão, posto que significa menor tributação indireta sobre o consumo, que será melhor analisada nas linhas que se seguem.

Assim, ainda que a medida seja uma excelente notícia, prevalecem em vigor, ainda, algumas distorções tributárias sobre o café, as mesmas reconhecidamente existentes na matriz tributária brasileira e que significam atraso nestes temas de direito tributário.

Do ponto de vista jurídico-tributário, na cadeia produtiva do café, continua incidindo a distorção que decorre da tributação sobre o consumo pois o consumidor brasileiro ainda não faz idéia da quantidade de tributos, sobretudo indiretos, incidentes sobre apenas uma xícara de café (ICMS, IPI, PIS/COFINS, etc.), tornando, assim, o produto mais caro e menos acessível a extensas camadas da população e afastando a competitividade no comércio internacional.

Ninguém está a recusar, ou a desmerecer, a necessária canalização de recursos do setor produtivo privado para o erário de modo que o Estado alcance seus objetivos de ordem social e econômica. Mesmo porque o próprio setor produtivo é beneficiário direto da existência de uma ordem jurídica que o protege, o fomenta e o garante e que tem por origem justamente o Estado, através do Poder Público, titular do erário.

Ocorre que o princípio da neutralidade da tributação, que estabelece nada mais, nada menos que a cunha fiscal não deve produzir distorções no comércio e na livre circulação de mercadorias e pessoas, não vem sendo prestigiado, havendo, inclusive, complicadas questões federativas em debate. Basta ver, no caso da cadeia do café, a quantidade de tributos indiretos incidentes sobre o consumo do produto, recordando que a maioria dos Estados cobra alíquota de 18% (dezoito por cento) sobre a bebida, o que já representa quase 1/5 (um quinto) do valor total do preço cobrado do consumidor final.

Aqui, em sede de PIS/COFINS, a alíquota é de 9,25% (nove, vírgula vinte e cinco por cento), e apesar dos incentivos fiscais veiculados pela MP 545, é evidente o excesso, a desproporção, o desequilíbrio que decorre de um encargo tributário tão elevado, sobretudo se se recordar que ainda incidirão na cadeia inúmeras outras exigências, como IR e CSLL, além do IPI.

Portanto, ao lado de se reconhecer a incidência do dever fundamental de contribuir, o que não se não se nega, ao contrário, se prestigia, observa-se que a tributação não pode, e não deve, se constituir em impedimento ao livre exercício de atividade econômica, fonte de riquezas para indivíduo e para Estado, vetor para o desenvolvimento humano e união entre os povos. O comércio civiliza e reduz as diferenças. Além disso, dignifica as pessoas pelo trabalho, incluindo-as no processo produtivo que somente tem espaço no mundo de hoje se realizado frente a algumas condições econômicas, sociais, jurídicas e políticas.

Do ponto de vista do direito, resta evidente que o Poder Público avança sobre áreas cada vez maiores da atividade econômica, impondo cargas tributárias cada vez mais excessivas, sobretudo em setores onde é mais fácil e efetiva a cobrança dos tributos. Não fosse isso, como justificar a aplicação de tamanhas alíquotas sobre o café, produto essencial, gerador de tantas divisas e empregos para o país?

Não existe, ainda, entendimento jurisprudencial que reconheça o efeito confiscatório (art. 150, inciso IV) na tributação indireta, ainda que haja avanços na identificação de tal moléstia nos tributos diretos. Foi assim, por exemplo, na ADI 2010 MC / DF, relatada pelo Ministro Celso de Mello, onde o Supremo Tribunal Federal, provocado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em sede de controle abstrato, afastou, em decorrência do efeito confiscatório, a contribuição previdenciária estabelecida pela União, através da lei federal 9.783/99, sobre a remuneração dos servidores públicos federais.

Naquela assentada, muito embora a Suprema Corte tenha limitado a análise do efeito confiscatório à carga tributária total suportada pelo contribuinte na mesma unidade federada, o que parece equivocado, data venia, vez que o Poder Público é uno, muito embora admita divisão orgânica e espacial na realização de suas funções, ficou estabelecido que o Estado especialmente em sede de tributação (as contribuições de seguridade social revestem-se de caráter tributário), não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade (...).

Além disso, o Supremo Tribunal Federal aduziu, em resposta às sempre previsíveis alegações de necessidade de recursos para financiamento da seguridade social, das quais as contribuições previdenciárias são parte importante, e das quais, acrescente-se, o PIS/COFINS são espécies, que a invocação das razões de Estado - além de deslegitimar-se como fundamento idôneo de justificação de medidas legislativas - representa, por efeito das gravíssimas conseqüências provocadas por seu eventual acolhimento, uma ameaça inadmissível às liberdades públicas, à supremacia da ordem constitucional e aos valores democráticos que a informam, culminando por introduzir, no sistema de direito positivo, um preocupante fator de ruptura e de desestabilização político-jurídica. Nada compensa a ruptura da ordem constitucional. Nada recompõe os gravíssimos efeitos que derivam do gesto de infidelidade ao texto da Lei Fundamental. A defesa da Constituição não se expõe, nem deve submeter-se, a qualquer juízo de oportunidade ou de conveniência, muito menos a avaliações discricionárias fundadas em razões de pragmatismo governamental.

Neste julgamento, o Supremo Tribunal Federal, ainda que através de decisão por maioria, revelou um incomum, e salutar, apego ao Texto Constitucional, em defesa do contribuinte, para o fim de impedir nefasta tributação confiscatória sobre a remuneração dos servidores públicos federais, representada pela elevação às alturas da alíquota da respectiva contribuição previdenciária (de 11%, sem limite, para 25%, sem limite), instituída sob a alegação de necessidade de reequilíbrio do regime próprio da União, em razão de pretenso déficit, o quê, como se sabe, não é inteiramente verdadeiro face à secular inexistência de contribuições da administração para a manutenção de seus regimes próprios, sendo rasteiro qualquer argumento que atribua aos servidores ativos e aposentados a responsabilidade pelo desequilíbrio.

Mas a luta pela instituição de um verdadeiro Estado Democrático e Tributário de Direito, no Brasil, é palco de avanços e retrocessos.

O mesmo amor aos direitos fundamentais do contribuinte não se repetiu em diversos outros julgamentos do Supremo Tribunal Federal, como, por exemplo, o que atestou a inconstitucionalidade dos artigos 45 e 46 da lei 8.212/91, no RE 556664 / RS, que se constituiu em verdadeira vitória de pirro àqueles contribuintes que já haviam recolhido as contribuições previdenciárias consideradas já prescritas e mesmo assim exigidas pela Previdência Social. Por “razões de segurança jurídica”, a Corte Suprema de nosso país modulou os efeitos da decisão para impedir eventuais repetições de indébitos ajuizadas após a decisão assentada na sessão do dia 11/06/2008, afastando, assim, a recuperação de valores recolhidos indevidamente (já que prescrição extingue o próprio crédito – art. 156, inc. V, CTN), mas até então não questionados.

No julgamento do recurso extraordinário em referência foi esgrimido da tribuna pela Fazenda Nacional o argumento terrorista de que a Previdência Social “poderia quebrar”, posto que a decisão no sentido da inconstitucionalidade dos dispositivos legais questionados em face do artigo 146, III, “b”, sem qualquer modulação de efeitos, significaria um “rombo já calculado” de 90 (noventa) bilhões de reais o quê ao lado de revelar inédita organização da Fazenda Nacional do ponto de vista contábil, bem demonstra que, por vezes, a Justiça dá sim guarida a argumentos pré-jurídicos para decidir, prática que depõe contra a própria ordem jurídica e deveria ser extirpada dos costumes judiciários brasileiros.

Seja como for, há de vir um dia que a Justiça reconhecerá, de forma definitiva, que até mesmo nos tributos indiretos, como é o PIS/COFINS, o ICMS, o IPI e vários outros que incidem sobre as cadeias produtivas do agronegócio, inclusive sobre o café, podem sim existir efeitos confiscatórios, demandando, deste modo, correção de rumos, mesmo porque o artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal não estabelece tal distinção.

A tributação indireta sobre o consumo, que foi mitigada em relação ao café pela MP 545, mas que deveria ter sido extirpada da ordem jurídica, é perniciosa pois esconde do consumidor o custo do encargo tributário. É praticada desde Roma quando o Imperador Nero retirou os tributos sobre o vigésimo quinto escravo vendido, obrigando, assim, os mercadores a transferir o encargo para o comprador final, restando este alienado, tanto quanto ocorre hoje, mutatis mutantis, da composição do custo da aquisição.

Ainda que se considere, por mera argumentação, que a tributação indireta sobre o consumo seja, em alguma medida, jurídica e necessária, não deixa de trazer consigo uma conotação maliciosa do Fisco no sentido de esconder o que cobra, para evitar questionamentos. Se não for assim, por qual razão o Congresso Nacional não regulamentou o princípio da transparência tributária, norma expressamente consignada no artigo 150, § 5., da Constituição Federal?

Portanto, ao tempo em que se recebe com alegria a boa nova da cadeia do café, é preciso deixar esclarecido que ainda subsiste a distorção em referência, motivo pelo qual é preciso deixar realçada, nestas singelas linhas, a necessária retirada desta modalidade predatória de tributação que tanto mal já fez ao país, aos consumidores e ao setor produtivo.

Oxalá chegue um dia em que a tributação indireta sobre o consumo, da forma como praticada no país, seja uma mera reminiscência histórica tal como o quinto, que culminou na derrama, em 1763, ao tempo da Colônia, constituindo-se como exemplo do que nunca deveria ter sido implantado e aceito como juridicamente correto.

Aliás insta dizer que a derrama, tanto quanto as substituições tributárias e a própria tributação indireta, constituía-se em técnica de tributação instituída em favor do próprio Fisco para facilitar-lhe o trabalho. Os tempos e as técnicas mudam, as justificativas do atraso não.

Por fim, não deixa de ser preocupante o fato de que a desoneração tributária em estudo não tenha sido realizada a partir de uma verdadeira política agro-tributária, ligada a um programa de capacitação competitiva do agronegócio brasileiro, especialmente da cadeia do café.

Foi, como em outros casos, como por exemplo, as desonerações das cadeias das carnes bovina, suína e das aves, promovidas pelas leis 12.058 e 12.350, ambas de 2008, fruto da capacidade de organização do segmento e, apesar das legítimas comemorações das lideranças e entidades representativas, não deixa de demonstrar o desapreço, ou o desinteresse, da administração federal em obedecer ao comando constitucional (art. 187, CF/88) de dar vazão à política agrícola e seu rol de instrumentos, dentre os quais os creditícios e fiscais; os preços compatíveis com os custos de produção e a garantia de comercialização; o incentivo à pesquisa e à tecnologia; a assistência técnica e extensão rural; o seguro agrícola; o cooperativismo; a eletrificação rural e irrigação; e, a habitação para o trabalhador rural.

É dizer, o produtor rural brasileiro, de qualquer setor, continua sujeito à eficácia da pressão dos segmentos organizados, ao casuísmo das soluções e à precariedade das medidas, inexistindo, assim, uma verdadeira política agrícola em nossa ordem jurídica, ainda que exista um dispositivo expresso na Constituição e um conjunto de leis ordinárias regulamentando o tema, sobretudo a lei 8.171, de 17 de janeiro de 1991.

No campo do comércio exterior, frente à Política Agrícola Comum, instituída em 1962, como um dos pilares da Comunidade Econômica Européia, e que se constitui em inegável conjunto de medidas protecionistas do velho continente, onde se prestigiam, inclusive, princípios como o da preferência comunitária e o da solidariedade financeira comum, o produtor, e o próprio governo brasileiros vêem-se relativamente impotentes, sujeitos que ficam às variações do jogo de interesses da política internacional, o que demanda tempo e paciência, sobretudo na abertura de mercados e redução de barreiras ao produto.

Entretanto, a política agrícola, em sua vertente tributária, ou seja, os instrumentos fiscais, conforme dicção da própria Carta, estão ao alcance do Governo, e do Congresso Nacional, nada justificando a inexistência de mecanismos efetivos e perenes, que verdadeiramente possam ser considerados integrantes de uma política agrícola patrocinadora da função social da propriedade.

Os efeitos de tal estado de coisas é justamente a edição destas medidas provisórias longamente negociadas pelos segmentos organizados com o Governo, em que nem sempre o critério técnico-econômico prevalece, cedendo por vezes passagem às conveniências políticas expressadas pelas forças dos lobbies ou mesmo pelo desespero de causa de alguns.

Não fosse assim, como justificar o deferimento, via MP 545, do benefício em estudo e a simultânea extinção do aproveitamento de créditos promovidas pela MP 552, em prejuízo da cadeia da soja?

De fato, dias após a publicação da MP 545, que concedeu os benefícios em análise neste artigo, houve a superveniência da MP 552 que produziu estragos no setor da soja, impossibilitando o aproveitamento de créditos e desincentivando a exportação do produto processado. A MP 552 veicula medida exatamente inversa à MP 545, demonstrando, assim, que o Governo, ao contrário do que afirma, não está disposto a renunciar receitas em favor de uma política agrícola que mereça este nome.

Pior, conclui-se que dentro do próprio agronegócio pode-se observar competição entre os segmentos para a obtenção dos incentivos tributários, estimulada pelo Poder Executivo, o que parece equivocado se se considerar a necessidade de haver uma sinérgica interação entre os agentes econômicos envolvidos, tendo em ponto de vista os interesses nacionais.

Assim, diante do exposto, observa-se que a MP 545 mitiga alguns efeitos da tributação indireta sobre o consumo, estimula o setor do café, torna o produto nacional mais competitivo e atua em favor da criação de postos de trabalho aqui no Brasil. Entretanto, se observada em uma perspectiva mais ampla, continua a reproduzir algumas das contradições do sistema tributário nacional, especialmente a chaga da tributação indireta sobre o consumo e os reflexos da ausência de uma verdadeira política agrícola, esta entendida como um grande projeto nacional.

Sobre o autor
Rogério Oliveira Anderson

Mestre em Direito. Especialista em Direito Administrativo. Professor do IESB. Advogado. Sócio da Advocacia Carvalho Cavalcante. Procurador do Distrito Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDERSON, Rogério Oliveira. MP 545: desoneração da cadeia produtiva do café.: O Brasil corrige parte das distorções, mas mantém outras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3162, 27 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21162. Acesso em: 23 dez. 2024.

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