Ainda muito comum, mesmo em dias atuais, já em sistemas jurídicos distantes do pós-liberalismo francês, tido como legalista pela grande maioria da doutrina, se compreender a Lei como fonte principal do Direito. Alunos nas mais diversas instituições de ensino jurídico, ainda no inicio do curso, se percebem, muito provavelmente, diante desta situação. Impossível negar a importância do texto legal para a segurança jurídica e para a manutenção do ordenamento o qual está inserido, entretanto tal afirmativa pode acabar formando legalistas indiscriminados e se mostra imprecisa para os desafios contemporâneos. Defende-se aqui a importância de difundir a compreensão de que a fonte primária do Direito é a Constituição.
A máxima de Montesquieu “o juiz é a boca da lei”, ainda que se referisse ao campo penal, é, provavelmente, a forma mais exata de como podemos definir o legalismo, não havendo, portanto, campo para interpretações, adequações ou qualquer tipo de subjetivismo, ficando o magistrado preso ao texto legal e seu campo de incidência. A força do “legalismo liberal” se percebe, por exemplo, no art. 3 do capítulo II da constituição francesa de 1791 (a primeira Constituição escrita da França), onde se lê: “Não existe na França autoridade superior à da Lei. O Rei reina por ela e não pode exigir a obediência se não em nome da Lei.”[1]
O referé legislatif, instituto o qual era utilizado caso houvessem divergências quanto ao conteúdo legal, ou seu âmbito normativo, obrigava o juiz a consultar o legislativo com a finalidade de que tal poder o interpretasse e esclarecesse seu real significado, não cabendo ao magistrado juízos próprios.
A lei, portanto, era tida como a fonte primária do Direito, não sendo absurdo se falar em supremacia legal, porém não constitucional. Chegando ao curioso ponto de na Constituição Jacobina de 1793, em seu art. 27, ser possível ler: “O juiz aplicará as Leis votadas pela assembleia nacional mesmo que contrárias à constituição” (!)
Ou seja, a força da Lei era tamanha que, mesmo sendo contrária ao ordenamento constitucional como um todo, mesmo que contrária aos princípios e valores, alicerces, fundamentos, consagrações constitucionais, ela precisava ser aplicada. Portanto, de modo simples: a constituição, ela mesma, julgava a inconstitucionalidade como constitucional.
Ainda na Constituição Jacobina, é possível se encontrar o seguinte ponto: “Um povo resguarda o direito de renovar, de reformar e mudar de Constituição. Uma geração não pode sujeitar suas leis as gerações futuras.” Caindo por terra, assim, qualquer meio de se alcançar a rigidez constitucional.
Ainda quanto a este ponto, no período revolucionário se observa um fluxo enorme de constituições, cada qual de pouca duração, e, na prática, sem força normativa. O mesmo mal atingia as leis que mostravam-se em constante mudança, textos normativos eram substituídos por outros que tratavam da mesma matéria porém em sentido contrário ao anteriormente em vigência, gerando instabilidade e insegurança jurídica.
É bom que se diga, que tal fato foi gerado devido ao arbítrio de decisões passadas, portanto, ao se prender o juiz à aplicação do texto legal se buscava, em uma das primeiras oportunidades na história moderna, a própria segurança jurídica. Entretanto, logo o tempo mostraria que a Lei, em si, não era o instrumento para se atingir tal objetivo, devendo haver rigidez constitucional e adequando-se o texto legal à ordem constitucional.
Napoleão ao emprestar seu nome ao primeiro códex civil francês, em março de 1804, buscava estabilizar o sistema jurídico através de tal código[2]. Ainda assim, a Lei não se mostrava abstrata, general, ou seja, era específica e continuava a evitar a liberdade de interpretação do magistrado. Buscava-se, então, normatizar de maneira incidental os mais diversos fatos sociais. Para tanto, a norma precisaria ser descritiva, detalhada e de imediata incidência.
Os franceses abriram, assim, margem para a famosa frase: “Aos franceses se deve a teoria do poder constituinte e aos americanos a prática”[3]. Para que a Carta Maior pudesse atingir os objetivos revolucionários que dela se esperava, era necessário que a mesma fosse dotada de um elemento básico: a supremacia de suas normas.
Entretanto, a própria concepção de norma era distorcida, pouco clara. E nesse contexto, as exigências da revolução industrial, surgindo com novos desafios devido ao considerável crescimento da velocidade de produção, a propagação de fábricas abrigando por horas quase que intermináveis trabalhadores dos mais diversos gêneros e idades, a complexidade da vida em sociedade passa, finalmente, a afrontar os textos legais descritivos, levando os mesmos a exibirem lacunas, então, a escola de Viena marca a história.
O positivismo jurídico, que tem na figura de Hans Kelsen seu maior expoente, possui como uma de suas principais características grande inclinação à objetividade, abrindo as portas para a interpretação normativa por parte dos juízes, contendo a hermenêutica jurídica como um de seus mais belos frutos.
A Lei sendo emanada da vontade e se adequando a ação humana, não existindo laço direto entre Direito e moral, subentendendo-se moral e justiça como abstrações que não permitiam, ou que eram contrárias em si mesmas à objetividade buscada pela corrente positivista.
Bom que se diga, ao contrário da democracia majoritária que se estabelecia na fase legalista liberal, o positivismo jurídico, se mostra democrático constitucional e, em alguns termos, contra majoritário. Haja vista, todo Estado que tenha como sistema de governo uma democracia constitucional é, por virtude, pró minorias.
Enquanto no legalismo pós revolução há um vínculo direto entre Lei e fato, de maneira descritiva, exercendo o juiz o papel de simples declarador do direito, no positivismo, Kelsen define e diferencia Lei de Norma. O famoso autor da escola de Viena, entende que o magistrado tinha o papel de ligar o fato ao texto da lei, extraindo desse texto várias normas, dependendo de sua interpretação, ligando de maneira adequada e equitativa ao caso concreto.
O positivismo se torna amplamente aceito pós segunda guerra mundial, o legalismo liberal, com o passar do tempo, se mostraria massacrante para com os direitos das minorias. O absolutismo monárquico sai de cena, mas surge um “absolutismo democrático”, ou melhor, uma autocracia por oprimir minorias. O poder legislativo passa cada vez mais a delegar poderes ao executivo, que centralizador de funções básicas da máquina estatal, demonstra força destrutiva absurda, formando-se regimes totalitários, o nazismo e o fascismo.
Com a intermediação quanto a aplicação do texto da lei ao caso concreto feito pelo juiz, além de se preservar a vontade do legislador, se buscava um judiciário capaz de atender as expectativas da população, e gradativamente tornando um poder que antes era visto com grande desconfiança, em o mais efetivo quanto a materialização de direitos e garantias individuais contra o arbítrio estatal.
Esquece-se, portanto, um Estado legalista e passamos a ter um Estado Constitucionalista. Surge a ideia de rigidez constitucional e de supremacia da constituição.
Por rigidez constitucional entende-se que a Constituição não deve ser alterada através de procedimento idêntico àquele que altera as mais diversas leis, e sim de modo mais dificultoso, solene. Quanto a supremacia da Constituição, temos que a constituição está acima de todas as demais normas do Estado, cabendo a ela a organização do mesmo, dispondo sobre seus alicerces, princípios e fundamentos, expurgando do ordenamento qualquer ato ou lei que contrarie o que nela é disposto. Sendo o controle de constitucionalidade o mais forte instrumento para se manter a supremacia da Constituição e garantir sua rigidez.
Note-se que, com o passar do tempo, o positivismo jurídico se modificou e ganhou várias correntes doutrinarias diferentes entre si, sendo questionada, inclusive, a simples aplicação do texto da lei em abstrato e da norma retirada dele de maneira fria e sendo imposta ao caso concreto.
Neste sentido, já adentramos no pós-positivismo onde percebe-se que começa então a haver uma valoração por parte do juiz quanto a aplicação da norma ao fato, brilhantemente explicada por Miguel Reale em sua Teoria Tridimensional do Direito.
As normas jurídicas carecem de ética, moral e teor justo, sendo qualquer discrepância quanto a esses valores uma ofensa ao ordenamento. O texto legal não deve ser injusto, assumindo justiça da forma mais abstrata e subjetiva possível em sua aplicação ao caso concreto.
Sendo assim, após o que aqui foi exposto, nos causa grande espanto ler ou mesmo ouvir, vez ou outra, que a Lei é a fonte primordial do Direito. Não é a fonte primordial do Direito, a lei é um instrumento utilizado para dar maior eficácia a tal fonte. Ou seja, leis são editadas com finalidade de garantir eficácia às normas da Carta Maior, é virtude do texto de lei ordinária a busca pela materialização dos valores e princípios contidos na Constituição.
A lei se mostra obrigada, portanto, a seguir a Constituição decorrente o princípio da supremacia constitucional, não podendo ser contrária ao que se encontra disposto no texto Fundamental. Afirmar que a Lei é principal fonte do direito é remeter-nos aos mais sombrios tempos do legalismo liberal e enfraquecer o Estado Constitucional de Direito.
Não há como concluir senão afirmando com todas as letras: a Constituição é a fonte primordial do Direito.
Notas
[1] Aqui se mostra claro o principio da legalidade, onde ninguém será obrigado a fazer algo em determinado senão em virtude de Lei.
[2] Note-se que, apesar da grande importância de tal documento para a história do Direito, haja vista que fora o primeiro código escrito, a estabilidade era procurada no Código Civil e não na Constituição.
[3] Alfonso Di Giovine, Le tecniche del costituzionalismo del ’900 per limitare la tirannide della maggioranza in: PAIVA, Paulo. A Jurisdição constitucional francesa após a reforma constitucional de 2008. Observatório da Jurisdição Constitucional. Brasília: IDP, ano 2, 2008/2009. ISSN 1982-4564.