Até então pensava que todo livro falasse das coisas, humanas e divinas, que estão fora dos livros. Percebia agora que não raro os livros falam de livros, ou seja, é como se falassem entre si. À luz dessa revelação, a biblioteca pareceu-me ainda mais inquietante. Era então o lugar de um longo e secular sussurro, de um diálogo imperceptível entre pergaminho e pergaminho, uma coisa viva, um receptáculo de forças não domáveis por uma mente humana, tesouro de segredos emanados de muitas mentes, e sobrevividos à morte daqueles que os produziram, ou os tinham utilizado.
Umberto Eco[1]
INTRODUÇÃO
Todas las ciencias poseen leyes y estas leyes constituyen su suprema meta. Todas las ciencias tienen en todos los tiempos al lado de leyes verdaderas también leyes falsas. Pero la inexactitud de las últimas no lo tiene repercusiones sobre el objeto científico. La tierra gira sin cesar en torno del sol, aunque Ptolomeo estableció una ley que afirmaba lo contrario. [...] Las leyes positivas del Derecho nos ensenan una situación diferente. Provistas de poder y de sanciones se imponen a su objeto, no importa si fuese verdadero ou falso. [...] Cuál es el contenido de todos aquellos comentarios, exégesis, monografias, cuestiones, meditaciones, tratados e casos jurídicos? [...] três palabras rectificadoras del legislador y bibliotecas enteras se convierten en papeles inútiles.
J. G. von Kirchmann[2]
O seguinte trabalho monográfico pretende debater a simulação, vício social do negócio jurídico.
Viver em sociedade implica nem sempre poder fazer o que se quer ou do modo como se quer, sem que conseqüências, algumas especialmente indesejadas, se verifiquem. A autonomia do indivíduo se sujeita, em sua concreção, a normas cogentes, em prol do bem comum.
A simulação se apresenta como uma alternativa de fuga a estas conseqüências, às vezes jurídicas, às vezes meramente éticas. Atua envernizando o negócio para que se manifeste como são em sua exterioridade.
Segundo Manuel A. Domingues de Andrade, “simulação é a divergência intencional entre a vontade e a declaração, procedente do acordo entre o declarante e o declaratário e determinada pelo intuito de enganar terceiros”[3].
Foi o livro Auto-engano, do economista Eduardo Giannetti, que despertou o interesse para este trabalho. Como escreveu Umberto Eco, “freqüentemente um livro inócuo é como uma semente, que florescerá num livro perigoso, ou, ao contrário, é o fruto doce de uma raiz amarga”[4].
Giannetti afirma que a dissimulação social é a arte da administração de impressões:
O espectro do fenômeno é enorme. Nos casos mais simples, como, por exemplo, o de alguém que finge interesse no que o seu interlocutor está dizendo, o efeito é inócuo. Nos mais graves, como o de um magistrado corrupto ou do falso amigo, o dano por ser tremendo. [...] Se a fronteira entre boa-fé e má-fé, entre farsa e seriedade, entre ter ou não ter razão fosse sempre nítida e inequívoca; se o bem e o mal estivessem sempre em campos opostos e bem demarcados, com os dissimuladores e suas vítimas uniformemente cientes da natureza de suas boas ou más intenções, o mundo não seria o que é [5].
O Código Civil de 2002 listou a simulação como causa de nulidade[6], diferentemente do Código Civil de 1916, em que a figura era causa de anulabilidade[7]. No novo estatuto civil, se a simulação for relativa, ocorre a subsistência do negócio dissimulado, salvo se este padecer de outro defeito.
Manteve-se, todavia, a clássica distinção entre simulação absoluta e simulação relativa (ou dissimulação). Na lição de Pontes de Miranda, “a simulação é absoluta quando não se quis outro ato jurídico nem aquele que se simula. Relativa, quando se simula ato jurídico para se dissimular, ou simplesmente dissimulando-se outro ato jurídico. Mostra-se o não ser; e esconde-se o ser”[8].
Despertado para o tema, o texto de Kirchmann foi a provocação irresistível. Uma pesquisa preliminar mostrou que o tema é controvertido em quase todos os seus aspectos relevantes.
A advertência de Francesco Ferrara, para quem a investigação da simulação é, fundamentalmente, das relações entre a vontade e a declaração, descortinou, de forma vestibular, que juristas conceituados da dogmática civil já haviam se debruçado sobre o tema. E efetivamente, foram surgindo durante a pesquisa Savigny e Jhering (mais uma vez em posições antagônicas); o próprio Francesco Ferrara, na Itália; em Portugal, José Beleza dos Santos e, no Brasil, Clovis Bevilaqua, dentre outros.
Os nomes declinados acima indicam o ramo do direito em que inicialmente se concentra este trabalho: o direito civil. Nem por isso o tema nele se contém. Pelo contrário, se revela transversal e interdisciplinar. Foge das fronteiras didáticas da clássica divisão em direito público e direito privado para se enquadrar na própria Teoria Geral do Direito.
E assim, vê-se sua presença no direito do trabalho, manifestando-se no princípio da primazia da realidade sobre a forma ou princípio do contrato realidade, segundo o qual, “no direito do trabalho deve-se pesquisar, preferentemente, a prática concreta efetivada ao longo da prestação de serviços, independentemente da vontade eventualmente manifestada pelas partes na respectiva relação jurídica”[9].
O tema também interessa ao direito tributário, especialmente a partir da redação do art. 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, alterado pela Lei Complementar n° 104, de 10 de janeiro 2001, comumente chamada Norma Geral Antielisão. De acordo com a qual, “a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos e negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”. Segundo Hugo de Brito Machado, “o que importa, a rigor, é saber se o comportamento adotado pelo contribuinte para fugir, total ou parcialmente do tributo (evasão fiscal), ou para eliminar, ou suprimir, total ou parcialmente, o tributo (elisão fiscal), é um comportamento lícito ou ilícito” [10].
Concluído o trabalho, ele ficou organizado em seis capítulos.
O primeiro trata brevemente do negócio jurídico como categoria geral compreensiva das declarações de vontade aptas a criarem, modificarem ou extinguirem relações jurídicas e as modalidades de vícios que podem inquiná-lo.
O segundo apresenta a simulação (no gênero) como vício do negócio jurídico e é seguido imediatamente pelo terceiro, no qual conceitos doutrinários, classificações e elementos constitutivos da simulação foram abordados.
O quarto e o quinto são gêmeos: naquele um esboço da dissimulação e de sua modalidade objetiva (quanto à natureza ou ao valor do negócio). Neste, a interposição fictícia de pessoas (dissimulação subjetiva) é analisada. Caminhou-se com a doutrina majoritária, que considera a interposição fictícia como modalidade de simulação relativa.
No sexto capítulo são tratados os efeitos, os meios de prova e a ação simulatória, nos seus aspectos essenciais.
Por fim, seguem-se as conclusões.
CAPÍTULO I
O NEGÓCIO JURÍDICO E OS SEUS VÍCIOS
Se alguém usasse a máscara todos os dias, seria mais notado que qualquer outro pela curiosidade de todos: mas dos excelentes dissimuladores, que existiram e existem, não há notícia alguma.
Torquato Accetto[11]
O Código Civil brasileiro de 2002 estabeleceu o negócio jurídico como categoria geral compreensiva das declarações de vontade aptas a criarem, modificarem ou extinguirem relações jurídicas.
Com efeito, o Livro III da Parte Geral do Código Civil – Dos Fatos Jurídicos – é aberto com a apresentação Do Negócio Jurídico (Título I), em substituição ao respectivo Do Ato Jurídico, no Código Civil de 1916.
Segundo Manuel A. Domingues de Andrade,
Podemos definir negócio jurídico como um facto voluntário lícito cujo núcleo essencial é constituído por uma ou várias declarações de vontade privada, tendo em vista a produção de certos efeitos práticos ou empíricos, predominantemente de natureza patrimonial (económica), com ânimo de que tais efeitos sejam tutelados pelo direito – isto é, obtenham a sanção da ordem jurídica – e a que a lei atribui efeitos jurídicos correspondentes, determinados, grosso modo, em conformidade com a intenção do declarante ou declarantes (autores ou sujeitos do negócio) [12].
No negócio jurídico dois aspectos se destacam: o papel da vontade na concretização do negócio jurídico e a necessária licitude de seu objeto.
A vontade, elemento constitutivo do negócio jurídico, não se encontra expressa no Código Civil. Nele se encontram os requisitos de validade do negócio jurídico: agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei (art. 104, CC).
O ordenamento jurídico, todavia, não sendo integrado apenas por regras, mas também por princípios e postulados normativos[13], reconhece à vontade papel criador de efeitos jurídicos, a partir do princípio da autonomia privada, segundo o qual, em regra, não é possível alterar situação jurídica dos indivíduos contra ou sem sua vontade e que se enuncia por dizer “que o indivíduo é livre de, pela declaração de sua própria vontade, em conformidade com a lei, criar direitos e contrair obrigações”[14].
Naturalmente o princípio da autonomia privada não é absoluto, como de resto, nenhum princípio o é, numa ordem constitucional de direitos fundamentais[15]. Superada a fase do liberalismo clássico, que o tomava como dogma indiscutível, passa a sofrer limitações decorrentes de imposições da ordem pública, o que vem ocorrendo de forma cada vez mais acentuada.
A vontade, para se fazer conhecida, deve, ainda, ser revelada, o que pode ocorrer mesmo pelo silêncio. Nos termos do Código Civil, “o silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem e não for necessária a declaração de vontade expressa” (art. 111, CC).
Havendo divergência entre o que se quis manifestar e o manifestado, o legislador brasileiro se posicionou na corrente voluntarista (embora tenha adotado a primazia da declaração no caso do erro, previsto no art 138 do Código Civil), com moderações (como as mitigações decorrentes da boa-fé). É o que dispõe o art. 112 do Código Civil, segundo o qual, “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem”. Repetiu o legislador de 2002, com pequeno acréscimo, o texto do art. 85 do Código Civil de 1916: “nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem”. Para Clovis Bevilaqua,
Nas declarações de vontade, attende-se mais à intenção do que às palavras, porque as palavras são simplesmente os signaes que revelam a resolução tomada, e, se foram mal empregadas, por ignorancia ou descuido, não manifestam a vontade como esta existiu no momento de ser celebrado o acto. É licito, portanto, buscar a fórma da volição em sua realidade, por traz da imperfeição dos symbolos[16].
Pressuposto do negócio jurídico, a declaração de vontade do agente visando à produção de efeitos jurídicos deve ser conforme ao direito e em consonância com o querer do agente.
Para Orozimbo Nonato, “a vontade vinculativa é a despedida com intenção de se obrigar”[17]. Com efeito, da combinação sã da livre vontade e da declaração escorreita depende a existência incólume do negócio jurídico. Em sentido contrário, vontade ou declaração viciada implicam defeito do negócio jurídico, ao qual o direito irá aplicar sanções variadas em espécie e intensidade.
As anomalias do negócio, capazes de inquiná-lo de nulidade ou anulabilidade são divididas em duas categorias.
Uma primeira classe de vícios é constituída por aqueles que atingem a própria manifestação da vontade, perturbando a sua elaboração. Atuam sobre o consentimento. Atrapalham a declaração de vontade, influenciando no momento em que se exterioriza a deliberação do agente. Por se caracterizarem como influências externas sobre a vontade (exteriorizada ou declarada), e aquilo que é ou devia ser a vontade real, se não tivessem intervindo as circunstâncias que sobre ela atuaram, provocando a distorção, são denominados vícios do consentimento.
A segunda categoria se constitui de vícios que afetam o ato negocial, salientando a desconformidade do resultado com o imperativo da lei e, nesses casos, o negócio reflete a vontade real do agente, canalizada, entretanto, e desde a origem, em direção oposta ao mandamento legal. Não se observa aqui, oposição alguma entre a vontade íntima e a vontade externada, porém entre a vontade do agente e a ordem legal. Existe uma declaração de vontade, mas esta, por fatores internos ao agente, decorre de uma declaração de vontade que visa a resultados condenados ou condenáveis. São denominados vícios sociais.
Os vícios do consentimento são verificados quando ocorre declaração de vontade de maneira defeituosa. Admitem correção, sendo considerados leves. No Código Civil de 2002 são eles: erro, dolo, coação. Clovis Bevilaqua assevera que estes vícios “adherem á vontade, penetram-na, apparecem sob a fórma de motivos, forçam a deliberação e estabelecem divergencia entre a vontade manifestada e a vontade real, ou não permittem que esta se forme”[18].
Os vícios sociais são verificados quando o negócio jurídico, embora decorrente de vontade perfeita, se torna desconforme com o direito, já que seus efeitos negativos afetam à vida em sociedade. São dois os vícios sociais no Código Civil de 2002: a fraude contra credores (admite correção, sendo considerado leve) e a simulação, tratada como vício grave, insanável. Para Clovis Bevilaqua, “não são vícios puramente psychicos, tendo consequencias jurídicas; não estabelecem desharmonia entre o que se passa no recesso da alma e o que se exteriorisa em palavras ou factos: são vicios sociaes, que contaminam a vontade e a tornam juridicamente, inoperante”[19].
Estabelece o Código Civil ser anulável o negócio jurídico por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores (art. 171, II, CC). O negócio civil anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiros (art. 172, CC), devendo conter o ato de confirmação a substância do negócio celebrado e a vontade expressa de mantê-lo (art. 173, CC).
Por outro lado, o Código Civil tem por nulo o ato jurídico sempre que a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção (art. 166, VII, CC). O art. 167 do Código Civil dispõe ser nulo o negócio jurídico simulado, subsistindo o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. Ao negócio jurídico nulo é impossível o convalescimento pelo decurso do tempo, nem se possibilita a confirmação (art. 169, CC). Contendo requisitos de outro, subsistirá este, quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade (art. 170, CC).
CAPÍTULO II
A SIMULAÇÃO COMO VÍCIO DO NEGÓCIO JURÍDICO
Bastará então discorrer sobre a dissimulação de modo que seja tomada em seu sincero significado, não sendo outra coisa dissimular senão um véu composto de trevas honestas e decoros forçados, de que não se forma o falso, mas se dá algum repouso à verdade, para demonstrá-la a seu tempo.
Torquato Accetto[20]
Vício social do negócio jurídico, na simulação a declaração das partes não corresponde ao que na realidade pretendem. Acarreta, em regra, a nulidade do negócio simulado. Desta conseqüência, todavia, ressalvou o legislador o negócio dissimulado, se válido na forma e na substância (art. 167, CC), bem como os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado (art. 167, §2°, CC).
Segunda a doutrina clássica, na simulação o defeito não está na vontade, mas na declaração. Seguindo este raciocínio, o legislador de 2002, apartou a figura, topograficamente, dos vícios do consentimento, junto aos quais estava situada, nos arts. 102 a 105 do Código Civil de 1916.
O direito brasileiro até o Código Civil de 2002 entendia a simulação como defeito ligado ao interesse das partes. Decorrentemente, tratava a figura como causa de anulabilidade do ato jurídico. Com o novo Código Civil, sob influência do Código Germânico, a simulação passou a ser considerada causa de nulidade do negócio jurídico[21].
Afirma Francesco Ferrara que o mais característico no negócio simulado (em sentido lato, abrangendo a simulação absoluta e a simulação relativa ou dissimulação) é a divergência intencional entre a vontade e a declaração:
O interno querido e o externo declarado estão conscientemente em oposição. Na realidade, as partes não querem o negócio, mas querem apelas fazê-lo aparecer e, por isso, emitem uma declaração não conforme com sua vontade, a qual por isso preordena a nulidade do ato jurídico. [...] Trata-se, pois, de uma declaração efêmera, vazia, fictícia, que não representa uma vontade real e é, por isso, nula, destinada unicamente a iludir o público[22].
A investigação desta divergência é a pedra angular do tema.
Uma primeira teoria, chamada de volitiva, teve à frente Savigny, para quem a vontade é o elemento principal do negócio jurídico. O direito realizaria e dotaria de conseqüências jurídicas a vontade do indivíduo, meio de manifestação de sua própria autonomia no campo da vida social.
Obviamente a vontade deve ser exteriorizada. Para tanto se serve da declaração, vista unicamente como meio de revelação. Conseqüentemente, a declaração de uma vontade não verdadeira seria apenas aparência de declaração. No conflito entre a vontade e declaração, deve prevalecer a vontade.
A teoria volitiva, levada às últimas conseqüências, acabaria produzindo efeitos iníquos, porque considerando sempre a vontade íntima do agente acabaria por sacrificar os interesses do aceitante da declaração.
Como contraposição, surgiram as doutrinas da culpa in contrahendo de Jhering e a do compromisso tácito de garantia, de Windscheid.
Para Jhering, “quem contrata garante ipso facto à outra parte que se encontra na situação de fazer um contrato válido e usará de toda a diligência para que esse ato jurídico não se forme viciosamente e, portanto, não seja anulado por sua culpa”[23]. E conclui: “A regra, então, é que a declaração emitida por uma pessoa capaz produz efeitos jurídicos, sem se considerar se o declarado foi realmente querido”[24].
Para Windscheid, o declarante assume, na celebração do negócio jurídico uma obrigação de garantia tácita pelas conseqüências que dele possa advir. “Deve assim, o declarante, ressarcir o destinatário da declaração quando lhe causa prejuízos que lhe advêm da anulação do negócio, resultante de uma declaração divergente da vontade real, por que trai a confiança por ele depositada na seriedade da declaração”[25].
Tanto a teoria volitiva quanto as teorias declaracionistas, adotadas em suas formas puras, implicariam iniqüidades. A necessidade de temperar seus elementos constitutivos foi sentida por Francesco Ferrara, que elaborou uma teoria intermédia.
Partindo dos pressupostos que os negócios da vida social encontram reconhecimento na ordem jurídica por serem normalmente expressão da vontade das partes, Francesco Ferrara concluiu que a ordem jurídica não atende apenas ao declarado, mas também busca o espírito do agente. Não de qualquer agente, mas o do bonus vir, esta categoria ideal à qual o direito tanto recorre. Para Francesco Ferrara, o direito deve permitir que se desenvolva a vontade do agente. Esta, por outro lado, deve estar caminhando pari passu ao princípio da segurança e do interesse social, que reclama ver respeitadas as legítimas expectativas dos outros indivíduos. Assim,
Se os negócios jurídicos são efetivados pelas partes com diligência e boa-fé, os efeitos práticos coincidem com os que a ordem jurídica reconhece. Se as partes se afastam desta diligência e boa-fé ideal, deles derivam conseqüências não queridas, ou seja, as que, para a segurança geral do comércio, deveriam corresponder à vontade dum bonus vir[26].
Na Teoria da Responsabilidade, o conflito binomial entre vontade e declaração não encontra solução a priori. Não há uma categoria absoluta pré-estabelecida (predomínio da vontade ou da declaração). Será necessária uma investigação do motivo da divergência (com solução caso a caso, a posteriori), a verificação se o declarante é ou não é culpado pela divergência e, portanto, se merece ou não sofrer conseqüências negativas da desconformidade. Esclarece Francesco Ferrara:
Se aquele que emitiu a declaração fez acreditar, dolosamente, no conteúdo duma vontade que, realmente, não tinha, e procurou a divergência com culpa grave, não pode subtrair-se à força obrigatória da sua declaração. Se existe desacordo entre o declarado e o querido e é o declarante o responsável pelo desacordo, não pode fundar-se no seu proceder ilícito para eludir o vinculo contraído. Esta conseqüência impõe-se, porque, doutro modo, a eficácia dos negócios jurídicos ficaria à mercê dos contratantes de má-fé ou negligentes. Assim, pois, a solução que melhor equilibra os interesses das partes, é a teoria da responsabilidade: quando a divergência provém do dolo ou culpa do declarante, não tem valor, e a declaração continua eficaz em direito[27].
José Beleza dos Santos acolhe a Teoria da Responsabilidade, afirmando ser certo que ela “não tem a simplicidade das teorias extremas – da vontade real ou da declaração – mas também possui uma flexibilidade maior que permite regular mais equitativamente as diversas situações jurídicas que, sob este ponto de vista, o direito nos oferece”[28].
Partindo da Teoria da Responsabilidade, e a desenvolvendo, José Beleza dos Santos, entende que existindo divergência entre a vontade real e a declaração, essa declaração é em princípio ineficaz e, portanto, nulo o ato jurídico nela baseado, por falta do elemento essencial vontade.
Na divergência não intencional nem culposa, não ocorrendo má-fé, inexistiria razão para impedir o declarante de argüir a nulidade da declaração. Nesta hipótese seus interesses seriam tão legítimos quanto os interesses daqueles que confiaram na validade da declaração.
Ocorrendo divergência entre a vontade e a declaração, decorrente de ato intencional, para aparentar o que realmente não quis, a boa-fé e a equidade impediriam ao declarante de argüir a nulidade. A ordem jurídica não pode tutelar interesse indigno de proteção.
Pode ocorrer, porém, do interessado na validade do negócio jurídico estar de má-fé e então também seu interesse seria indigno de proteção, hipótese em que “o obstáculo à declaração da nulidade desaparece e subsiste o princípio fundamental de que, se a declaração diverge da vontade, o ato é nulo”[29].
O direito brasileiro adotou este posicionamento de forma expressa ao dispor, em regra, ser nulo o negócio jurídico simulado (art. 167, caput, CC), ressalvando os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contratantes do negócio jurídico simulado (art. 167, § 2°, CC). Ocorrendo má-fé tanto da parte dos contratantes quanto da parte dos terceiros interessados, portanto, “nenhum dos interesses merece uma especial proteção do direito, e prevalece o princípio da nulidade do ato jurídico”[30].
Ainda como crítica à tese da divergência entre a vontade e a declaração, fortaleceu-se outra teoria, liderada por Kohler, segundo a qual ocorre também que nenhuma das partes, em uma simulação, manifesta vontade em contraste com o íntimo querer. Ambas concordam em dar certa forma a uma vontade diversa da verdadeira, de maneira que em definitivo compõem dois atos antitéticos entre si. Ocorre, na hipótese, dupla declaração: declaram querer algo na aparência e declaram na realidade ou que não querem nada ou que querem coisa distinta[31]. Esta declaração simulada não seria endereçada diretamente a terceiros, mas feita de modo que “terceiros tivessem conhecimento dela”[32].
Na simulação, escreve Kohler, do complexo comportamento das partes resulta à evidência que não é do seu intento operar qualquer alteração nas respectivas situações jurídicas. As declarações que emitem, neutralizam-se, anulam-se e, se pode parecer a terceiros que existe uma divergência entre a vontade e a manifestação, é porque os simuladores tornam conhecido do público apenas um fragmento de sua declaração; e assim os terceiros podem contar com a seriedade das declarações que lhes chegam ao conhecimento[33].
O simulador, aquele que “sagaz e habilmente faz acreditar numa atitude não sincera”, disposto a “fazer aparecer o que não é, mostrar uma coisa que realmente não existe”[34], carregou este vício de simbolismo todo particular. Assim, ora ele é confundido ora com a fraude, ora com o dolo. É entendido por alguns como hipótese de reserva mental bilateral e por outros como aparência ou falsidade.
Debatido, o vício deixou na doutrina alguns conceitos, nenhum ainda podendo ser abraçado como definitivo. É a advertência de Heleno Taveira Tôrres: “[...] o conceito de simulação ainda não galgou pacificidade na doutrina, tampouco na jurisprudência ou na prática administrativa, cuja incertezas de orientação é o que se tem por constante e invariável”[35], bem como de José Beleza dos Santos, “não é rigorosa, nem está definitivamente fixada a terminologia jurídica em matéria de simulação aonde resulta, por vezes, falta de rigor nos conceitos que se formulam”[36].
Custódio da Piedade Ubaldino Miranda observa, por outro lado, que não obstante a construção do conceito de simulação de cada autor ou corrente doutrinária assinale íntima conexão com a respectiva concepção do negócio jurídico, “em todas as construções há traços comuns que se ocultam sob diferente terminologia”. Comunga desta opinião Alberto Auricchio, de acordo com o qual, “a este respeito poderia falar-se de apriorismo, de conceitualismo.[...] Em resumo, de qualquer ponto de vista que se observe o fenômeno, o resultado constante é que o contrato simulado contradiz a sua essência”[37].
A doutrina dominante, com Francesco Ferrara e José Beleza dos Santos à sua frente, entende a simulação como vício social do negócio jurídico consistente na divergência intencional entre vontade e declaração, com o propósito de enganar terceiros, mediante acordo entre as partes. No âmbito de uma concepção subjetiva do negócio jurídico, a simulação implicaria, em regra, anulação do ato (nulo na origem), por inexistência de vontade conforme à declaração.
Para os adeptos da teoria objetiva do negócio jurídico, o negócio jurídico “não é um instrumento de vontade individual para a modelação de efeitos práticos ou jurídicos, mas um meio posto à disposição dos particulares, pelo ordenamento jurídico, para a autorregulação dos próprios interesses, um preceito da autonomia privada”[38]. Para Emilio Betti,
O instituto do negócio jurídico não consagra a faculdade de querer em vão, a afirmar certo individualismo, ainda não erradicado da dogmática hodierna. Pelo contrário, de acordo com o que se viu, ele garante e protege a autonomia privada, enquanto se volta a dar regulação aos interesses dignos de tutela nas relações que lhe dizem respeito. […] Ele é o ato através do qual os próprios interessados autorregulam seus interesses nas relações com outros (ato de autonomia privada): ato ao qual o direito liga os efeitos de acordo com a função econômico-social[39].
A simulação seria vício da própria causa do negócio, “resultando da incompatibilidade entre esta e a finalidade prática desejada concretamente pelas partes, que desejariam na verdade, atingir um objetivo diverso da função típica do negócio”[40]. Portanto, causa não no sentido de fundamento da obrigação, mas referindo-se às razões da aceitação do negócio pelo ordenamento jurídico. A simulação resultaria do desvio do negócio de sua função normal, exercido mediante abuso da função instrumental do negócio.
Alerta César Fiuza quanto à possibilidade de confusão entre causa e motivo. Para o autor, há pelo menos duas espécies de causas interessantes ao direito: a causa eficiente (aquilo que enseja o ato) e a causa final (atribuição jurídica do ato). Ambas, ao lado do motivo, razão intencional determinante do ato, sendo este irrelevante, salvo disposição expressa em contrário (art. 139, CC). Assim, motivo “não se confunde com a causa, que é razão de ser jurídica do contrato. O motivo é interno, varia de pessoa para pessoa”[41].
Sintetiza Fernando de Sandy Lopes Pessoa Jorge, que a causa é uma realidade meta-jurídica. É a função econômico-social desempenhada pelo negócio jurídico. Desde modo, “não reside na própria estrutura jurídica do ato, nem é o intento jurídico que determina as partes a agir”[42].
Segundo Caio Mário da Silva Pereira[43], o Código Civil Alemão (BGB), cerrando fileiras anti-causalistas, influenciou o direito brasileiro. No Código Civil de 2002, predominou o caráter não causalista. Não cogitou nosso Código da causa (assim como também não o fazia o Código de 1916), “parecendo ao nosso legislador desnecessária a sua indagação”[44].
Francisco Amaral noticia ainda o posicionamento de Alberto Trabucchi para quem a simulação seria “um processo criativo de uma aparência enganadora, produzindo, com uma só intenção, duas declarações de vontade: uma secreta e outra ostensiva”[45]. Mais que uma divergência entre declaração e vontade, o que existiria é uma divergência, decorrente de duas vontades combinadas, entre o negócio aparente forjado e a relação jurídica efetiva.
No novo Código Civil brasileiro a teoria voluntarista foi a de maior relevo. O Código tem a simulação como hipótese de nulidade por considerá-la como fruto de divergência entre vontade e declaração.
A teoria da vontade reforça-se ainda pelos princípios volitivos de probidade e boa-fé, no exercício das liberdades contratuais, especialmente pelo quando se encontra nos termos do art. 422: ‘Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé’. Ao exigir boa-fé, veracidade e certeza nas declarações, desconsidera qualquer agir em contrário, como se verifica no impedimento à reserva mental, tal como previsto no art. 110: ‘A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento’ ”[46].
Por fim, esclarece Heleno Taveira Tôrres que, “em matéria de simulação, as disposições do nosso Código foram moldadas, segundo pensamos, à luz da doutrina de Ferrara, por contemplar a tese da responsabilidade”[47]. Aduz vê-la, especialmente no art. 167, § 2° do Código Civil, no qual se ressalvam os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado.