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A força vinculante da decisão prolatada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros Vs Brasil

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Agenda 09/03/2012 às 13:12

A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso estudado se sobrepõe à decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, já que nenhuma lei ou norma de direito interno pode impedir que o Estado cumpra sua obrigação de punir e prevenir os crimes contra a humanidade.

RESUMO

A presente monografia versa sobre a força vinculante da decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund no Brasil, ante a decisão contrária do Supremo Tribunal Federal acerca do mesmo assunto, e tem o objetivo de mostrar qual seria a hierarquia dos tratados internacionais sobre direitos humanos no Direito Brasileiro. Para isso, foi feita a análise de doutrinas acerca do tema que discutem o motivo da internacionalização dos direitos humanos e que destacam o contexto histórico do surgimento dos vários tratados internacionais sobre direitos humanos hoje existentes. Além disso, realizou-se a análise dos argumentos utilizados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, pela Advocacia-Geral da União e pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, que teve por objeto a Lei nº 6.683/79, e dos fundamentos da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil. Por intermédio dessa análise, concluiu-se que a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos se sobrepõe à decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, já que nenhuma lei ou norma de direito interno pode impedir que o Estado cumpra sua obrigação de punir e prevenir os crimes contra a humanidade, de forma que os tratados internacionais sobre direitos humanos estariam acima do direito interno.

Palavras-chave: Tratados Internacionais. Direitos Humanos. Hierarquia.


INTRODUÇÃO

O Brasil viveu durante o período de 1964-1985 o regime militar, período em que ocorreram graves violações a direito humanos. Tome-se como exemplo o fato de que o Ato Institucional nº 5 estabeleceu a possibilidade de se prender qualquer pessoa por sessenta dias, sendo que em dez desses dias a pessoa poderia ficar em regime de incomunicabilidade. Nesse período, a tortura já era muito usual, sendo praticada com maior facilidade.[1]

Com o fim do regime militar e com a promulgação da nova Carta Constitucional em 1988, foi instituído o Estado Democrático de Direito no Brasil, tendo como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, conforme dispõe o art. 1º, III da Constituição da República.[2] Entretanto, durante o período de exceção, diversos agentes públicos praticaram vários crimes contra a humanidade e até hoje não foram responsabilizados, já que não houve ainda uma apuração dos referidos crimes.[3]

Um dos motivos para a não responsabilização pelos crimes cometidos durante o regime militar é a dúvida quanto à interpretação do art. 1º, § 1º da Lei da Anistia (Lei nº 6.683/79)[4]. O referido dispositivo legal concede anistia a todos aqueles que praticaram crimes políticos ou crimes conexos a estes no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979. A dúvida se refere à definição do que seriam os crimes políticos e do que seriam esses crimes conexos, cujo § 1º tenta definir como aqueles que são relacionados com os crimes políticos ou cometidos por motivação política, independentemente de sua natureza.

Por conta da referida dúvida quanto à extensão da norma contida na Lei da Anistia, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil propôs a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental[5], a fim de pacificar o entendimento acerca da norma em discussão. Isso porque, para alguns, os crimes de tortura não são crimes políticos e nem conexos a estes, muito menos teriam sido praticados em razão de motivação política. Outros entendem que houve um perdão geral dos crimes cometidos durante a ditadura, em virtude de um acordo entre a sociedade e o governo militar para que o Brasil se tornasse uma democracia.

A dúvida quanto à extensão e a vigência da Lei da Anistia é muito discutida, uma vez que as atrocidades que ocorreram durante o período de exceção refletem até hoje na sociedade brasileira, tanto nas famílias das vítimas, que muitas vezes não sabem o que realmente aconteceu com seus parentes, bem como em relação aos que cometeram os crimes. Assim, é possível inferir que a certeza de impunidade no que se refere a tais crimes pode estimular sua prática.

O julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153 pelo Supremo Tribunal Federal, em 29 de abril de 2010, não obteve decisão unânime, visto que dois ministros julgaram procedentes os pedidos formulados, a fim de permitir a punição dos que cometeram crimes comuns contra a humanidade, considerando que a Lei da Anistia não foi recepcionada pela Constituição de 1988. Entretanto, os demais ministros julgaram a ADPF improcedente, acolhendo a tese de que a Lei da Anistia seria um “mal necessário” para que o Brasil pudesse se tornar a democracia que é hoje. [6]

No entanto, no dia 24 de novembro de 2010, apenas alguns meses após a prolação da decisão de improcedência da ADPF 153, a Corte Interamericana de Direitos Humanos entendeu que a Lei da Anistia não está em vigor por violar direitos humanos previstos no Pacto de San José da Costa Rica ao impedir a apuração e a punição dos crimes contra a humanidade ocorridos durante o regime militar. Como consequência, não seria capaz de produzir efeitos jurídicos, considerando que as normas internacionais de direitos humanos seriam superiores às normas de direito interno, tendo o país o dever de investigar e punir os crimes contra a humanidade.[7]

Considerando a decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, que julgou improcedentes os pedidos formulados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil na ADPF nº 153, com base na alegação de que a Lei da Anistia teria sido recepcionada pela Constituição de 1988, bem como a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que entendeu que nenhuma lei ou norma de direito interno deve impedir que o Estado cumpra sua obrigação de punir os crimes de lesa-humanidade, surgiu a dúvida de qual delas deve prevalecer.

Para a análise aprofundada da questão aqui posta em discussão, será feita uma pesquisa bibliográfica a fim de se contextualizar a época da criação dos vários tratados internacionais de direitos humanos e de se definir se os referidos tratados se sobrepõem ao direito interno dos Estados.

Assim, no primeiro capítulo será analisado o contexto histórico da criação da Lei nº 6.683/70 e da Emenda Constitucional nº 26/85, ressaltando os vários crimes que foram cometidos durante o regime militar, que justificaram a edição dessas normas; no segundo capítulo será analisado o contexto histórico da criação do Pacto de San José da Costa Rica e qual seria a sua força no Brasil; no terceiro capítulo serão analisados os argumentos utilizados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, pela Advocacia-Geral da União e pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153; e, por fim, no quarto capítulo serão analisados os argumentos utilizados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos quando do julgamento do Caso Gomes Lund e Outros contra o Brasil.

Neste trabalho, o método utilizado será o indutivo, que “consiste em estabelecer uma verdade universal ou uma proposição geral com base no conhecimento de certo número de dados singulares”.[8] A análise do tema objeto deste trabalho partirá de decisões específicas proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, para se concluir se toda e qualquer decisão prolatada por aquela Corte se sobrepõe ao direito interno brasileiro.


1 LEI DA ANISTIA E A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 26/85

1.1 O GOLPE DE 1964

Utilizando-se da justificativa de que era imprescindível ao Brasil uma intervenção para que pudesse se tornar uma verdadeira democracia, ainda sob a égide da Constituição de 1946, a qual foi outorgada na época da ditadura de Vargas, os militares promoveram um golpe de Estado, tomando o poder e instituindo o regime militar. As mudanças e reformas que aconteceram durante esse período de 1964 a 1985 tinham como fundamento a garantia de que a democracia iria se estabelecer e a economia brasileira se integraria à economia mundial.[9]

O motivo alegado pelos militares para a realização do golpe de Estado era que estes estavam convencidos de que o Presidente João Goulart tinha o objetivo de tornar o Brasil um estado socialista. Dessa forma, entendia-se que o Presidente tinha o propósito de “extinguir os valores e as instituições tradicionais do país”.[10]

O referido receio dos militares foi depositado em um memorando, o qual passou pelos quartéis de todos os estados brasileiros e defendia “que o presidente devia ser deposto antes que suas ações (nomeações de militares, decisões financeiras etc.) enfraquecessem a própria instituição militar”. As ideias dos conspiradores eram marcadamente anticomunistas.[11]

Entretanto, a análise histórica revela que a provável causa do golpe de 1964 foi o acirramento da luta de classes, uma vez que os movimentos sociais, realizados pelos operários, pelos estudantes e pelos camponeses, que tinham um caráter nacional-reformista e que eram defendidos pelo governo de João Goulart, estavam crescendo na época, o que fez com que as classes dominantes reagissem.[12]

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As referidas classes dominantes eram compostas pelos militares, associados à grande burguesia nacional e internacional, que tinham seus interesses respaldados pelos interesses norte-americanos e justificavam “o golpe como ‘defesa da ordem e das instituições contra o perigo comunista’”.[13]

Cumpre esclarecer que o movimento organizado pelos militares com o objetivo de tomar o poder se refere a um golpe de Estado e não a uma revolução. Isso porque a revolução é fruto de uma série de descontentamentos com o governo, o que faz com que surja uma instabilidade do sistema, de modo que a sociedade se sinta insatisfeita, aceite mudanças e acate as novas instituições. Assim, para que haja uma revolução, é necessário que ocorram falhas no sistema de governo que gerem uma crise de confiança no sistema e uma vontade de mudar, impondo uma nova forma de governo mediante violência.[14]

O golpe de Estado, da mesma forma que a revolução, tem o objetivo de tomar o poder por meios ilegais. Entretanto, é geralmente promovido contra determinado governante e seu modo de governar, como ocorreu no golpe de 1964 em que os militares se insurgiram contra a forma de governo de João Goulart, e não contra um sistema de governo, contra a classe dominante, como ocorre na revolução.[15]

Além disso, o que prevalece em um golpe é o interesse egoístico de determinado grupo, como no caso em discussão, em que o golpe se referiu ao interesse dos militares, ao passo que a revolução atende a anseios da coletividade. Como ensina Bonavides[16], “a revolução é legitimidade, o golpe é a usurpação e como todas as usurpações concomitantemente ilegal e ilegítimo”.

Outra característica marcante de um golpe de Estado que faz com que o movimento dos militares de tomar o poder se caracterize como um golpe e não como uma revolução é a de que

os autores de um golpe quase sempre são em número limitado. Via de regra, políticos de nomeada, altos dirigentes e oficiais de elevada patente das forças armadas, investidos já em funções estatais e em condições de movimentar ou neutralizar contra o governo que pretendem derribar parte dos mecanismos do poder, como polícia, exército e burocracia, onde previamente recrutaram bases de apoio ou simpatia.[17]

Promovido o golpe de Estado, uma das primeiras providências tomadas pelos militares foi centralizar e fortalecer o Poder Executivo, o que foi feito por intermédio da edição de atos institucionais, os quais foram a verdadeira Constituição do período, mesmo após a promulgação da Carta Constitucional de 1967. O ato institucional que mais chama a atenção da época foi o AI-5, o qual

englobava todos os itens constantes dos atos anteriores, acrescentando a faculdade de intervir em estados e municípios, detalhando as conseqüências [sic] imputáveis aos que tivessem seus direitos políticos cassados, suspendendo a garantia do habeas corpus e concedendo total arbítrio ao Presidente da República no que se refere à decretação do estado de sítio ou de sua prorrogação.[18]

O referido ato surgiu no ano de 1968 e foi feito em razão de uma série de movimentos de oposição que surgiram durante aquele ano, tendo como objetivo reprimi-los. Ocorreram vários protestos no país durante esse período, de modo que até mesmo antigos líderes políticos uniram-se em uma oposição denominada de Frente Ampla. Os trabalhadores promoviam greves a fim de se manifestarem contra o congelamento do salário-mínimo e várias passeatas de movimentos estudantis aconteceram.[19]

Os militares que foram expulsos das Forças Armadas por não compartilharem das mesmas ideologias dos governantes também organizaram movimentos de oposição, que tomaram o rumo de guerrilha. Parte da Igreja Católica apoiava os protestos contra o regime militar, o que demonstrava que os movimentos de oposição cresciam a cada momento, motivo pelo qual os militares decidiram por tornar o sistema repressivo mais rigoroso com a edição do AI-5.[20]

Assim, após a edição do referido ato, os indivíduos que pensavam em se opor ao governo refletiam bastante antes disso, já que com o sistema repressivo mais rigoroso, utilizava-se a tortura como meio de obtenção de informações para o extermínio da ameaça de formação de guerrilhas.[21]

Para fortalecer ainda mais o Poder Executivo, o regime suspendeu as eleições diretas para governadores e presidente da República, fechou os partidos políticos que existiam na época, criando, mediante decreto, o bipartidarismo, o qual era composto pela Arena (Aliança Renovadora Nacional) e pelo MDB (Movimento Democrático Brasileiro).[22]

Segundo os militares, o aumento dos poderes do Executivo era indispensável para a “reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil”, e levaria à “restauração da ordem interna e do prestígio internacional” do país.[23]

Outra ação tomada pelos militares que chama atenção foi a censura a “qualquer crítica aos atos institucionais, às autoridades governamentais ou às forças armadas”, além da proibição da publicação de notícias que versassem acerca dos movimentos dos trabalhadores ou estudantis, tendo ficado toda a mídia subordinada à supervisão dos tribunais militares.[24]

Para tanto, a ditadura militar implantou uma complexa máquina de repressão política, a qual era denominada de “comunidade de informações”, composta pelo SNI (Serviço Nacional de Informações), pelo “centro de informações das Forças Armadas - CISA (Centro de Informação Social da Aeronáutica), Cenimar (Centro de Informações da Marinha) e CIE (Centro de Informações do Exército)” -, pela Polícia Federal e pelas polícias estaduais, tanto civis quanto militares.[25]

Os meios de comunicação eram os alvos dos censores, sendo que um dos maiores desafios que eles se depararam foi a censura ao semanário humorístico Pasquim, visto que, “mesmo quando privado do sarcasmo de seus cartuns e de seus textos, o Pasquim uniu os espíritos contra a edênica propaganda do governo militar”. Outros exemplos de alvos dos censores foram: Opinião, Movimento, O Estado de S. Paulo, O São Paulo e Veja. Os militares tinham a ideia de que podiam controlar o comportamento das pessoas por meio do controle da mídia.[26]

Apesar do argumento dos militares de que o regime militar era temporário e que só tinha sido instituído para que o Brasil se estabilizasse e pudesse se tornar uma democracia, o que se observava era que o país se tornava uma ditadura, a qual estava “cada vez mais fechada, mais violenta e disposta a não reconhecer a linha divisória entre a legalidade e a ilegalidade”.[27]

Isso porque os militares que promoveram a revolução e conspiraram contra Goulart, acreditavam que iriam enfrentar resistência armada e, portanto, se prepararam para atacar antes que os legalistas tivessem a oportunidade de se mobilizar. Entretanto, não houve a tão esperada resistência armada. Ocorre que os militares não estavam somente à procura de adversários armados, mas também procuravam os líderes subversivos que estariam levando o país para o comunismo. Assim, milhares de líderes foram presos por intermédio da chamada “Operação Limpeza”, bem como os “oficiais e praças das três armas considerados pelos setores de inteligência dos rebeldes como favoráveis à esquerda” e “os organizadores do proletariado tanto urbano como rural”.[28]

1.2 RESISTÊNCIA AO REGIME MILITAR

Diante desse cenário, parte da sociedade civil reagiu ao regime militar, o que fez surgir diversos grupos de oposição ao governo. Como afirma Weichert[29], principalmente a partir de 1968, “as Forças Armadas enveredaram por uma repressão violenta à dissidência política”, cometendo vários crimes contra a humanidade.

Isso porque no início daquele ano uma série de protestos estudantis irrompeu no país. Os estudantes insurgiam-se contra “o aumento das taxas universitárias, as salas de aulas inadequadas e os cortes no orçamento do governo para a educação”. Além disso, havia grande pressão dos estudantes que desejavam matricular-se em universidades federais gratuitas, uma vez que as universidades particulares cobravam mensalidades muito altas.[30]

A necessidade de uma reforma universitária era defendida por toda a sociedade e as manifestações estudantis só aumentavam, de forma que, por conta delas, “tanto a Universidade Federal quanto o sistema escolar do Rio de Janeiro foram fechados” em junho de 1968. Pouco tempo depois, um grupo de aproximadamente 100 mil manifestantes protestou contra a violência policial em uma manifestação política que foi autorizada pelo governo com o objetivo de acalmar os estudantes. Contudo, tal autorização soou como uma fraqueza dos militares, fazendo com que o ministro da Justiça Gama e Silva, proibisse “a realização de quaisquer novas marchas no Brasil”.[31]

Segundo Habert[32], “ao longo daqueles anos manifestaram-se várias formas de resistências empreendidas por organizações de esquerda, grupos operários, populares, estudantis, intelectuais, artistas, setores da Igreja, parlamentares de oposição”.

As várias violações a direitos humanos foram o que marcou a época do regime militar, e são esses fatos que surgem na memória dos brasileiros quando lembram daquele período. Por mais que os militares quisessem justificar suas ações afirmando que estas tinham uma finalidade legítima, tais justificativas não foram aceitas pela sociedade, e em razão do repúdio dos cidadãos brasileiros aos crimes cometidos, a Constituição de 1988 tratou essas condutas com uma reprovação extraordinária.[33]

Um dos vários crimes cometidos na época foi a tortura, a qual foi utilizada durante todo o período do regime militar como “um meio de interrogatório usual e constante contra o opositor”. Entretanto, ao contrário do que se pode deduzir, não eram somente os opositores comunistas que eram vítimas do crime de tortura, até mesmo os próprios militares, se ousassem se opor ao regime, eram vítimas.[34]

A operação que mais ficou conhecida por utilizar a prática da tortura foi a Operação Bandeirante (OBAN), a qual era comandada pelo II Exército, e tinha como finalidade centralizar o combate às esquerdas, tendo, inclusive, servido de modelo aos DOI-CODIs (Departamento de Operações Internas – Centro de Operações de Defesa Interna).[35]

Outra operação que se destacou na época foi a chamada “Operação Gaiola”, a qual foi realizada durante o governo de Médici, e foi responsável pela prisão e detenção, somente na primeira quinzena de novembro de 1970, de pelo menos 5.000 suspeitos entre os quais políticos dos dois partidos existentes, ARENA e MDB, “ativistas políticos e todos aqueles que as forças de segurança consideraram suspeitos”. O fundamento desta operação, que foi divulgado por meios oficiais, foi a necessidade de impedir o surgimento de uma operação guerrilheira, a qual compreendia sequestros e lançamentos de bombas, a fim de prejudicar as eleições a serem realizadas naquele ano para “renovar toda a Câmara dos Deputados, dois terços do Senado e todas as 22 assembleias estaduais”.[36]

Conforme expõe Bottini[37]:

Os atos praticados pelos agentes do regime militar contra seus opositores constituíram-se em uma gama de atrocidades indescritível, dentre as quais a tortura e atos odiosos e sistemáticos destinados a arrefecer qualquer contestação ao modelo político em vigor, como estupros, homicídios, ocultação de cadáveres. Tal descrição remete aos comportamentos de intensa reprovação insculpidos na Constituição Federal: tortura e terrorismo.

As vítimas da tortura eram acusadas pelos torturadores de que “sabiam de segredos vitais, como os nomes de seus contatos soviéticos ou de militares brasileiros que seriam exterminados”. Tais vítimas eram divididas em dois grupos: aquelas que haviam confessado e aquelas que necessitavam de mais interrogatório. Dentre as torturas que eram cometidas estavam

o “telefone” (tapa que se aplica simultaneamente, com as mãos em concha, nos dois ouvidos da vítima, muitas vezes lhe estourando os tímpanos), o pau-de-arara (pau roliço que, depois de passado entre ambos os joelhos e cotovelos flexionados, é suspenso em dois suportes, ficando a vítima de cabeça para baixo e como que de cócoras, sujeita a pancadas e choques elétricos) e o “banho chinês” (mergulhar a cabeça da vítima em uma tina de água fervida ou de óleo até virtualmente sufocá-la).[38]

Com o intuito de salvar seus companheiros de cadeia, os guerrilheiros promoveram uma série de sequestros a diplomatas, dentre eles, o cônsul-geral do Japão em São Paulo e o embaixador dos Estados Unidos. Tais atos eram uma forma de fazer chegar ao público sua mensagem por intermédio dos meios de comunicação. Como afirma Skidmore[39],

Eles forçavam o governo a impor odiosas medidas de segurança – constantes pedidos de identificação de pessoas, vigilância indiscreta etc. Tudo isso era embaraçoso para o governo, sobretudo no que se referia ao pessoal diplomático. Mas dificilmente contribuiria para o que os guerrilheiros mais necessitavam: o recrutamento de milhares de brasileiros para se organizarem clandestinamente contra o governo militar. Ora, isto só podia ser feito através de um trabalho paciente e de longo prazo. Para serem bem-sucedidos, os novos recrutados teriam que evitar qualquer ação pública, como o seqüestro [sic], aguardando o momento certo para virem à superfície. Homens com mais experiência, como Carlos Marighela, sabiam da necessidade de projetar as ações para longo prazo. Mas os infantes eram menos pacientes. Estes guerrilheiros, muitos na casa dos vinte anos e outros ainda adolescentes, não se interessavam por estratégia a longo prazo. Odiavam os militares e queriam demonstrar sua valentia agora. Assim, a estratégia de seqüestrar [sic] diplomatas manteve-se como o desaguadouro mais conveniente e imediato para suas ações.

Além disso, foram criadas diversas unidades de guerrilha, sendo que um grupo específico, os dissidentes maoístas do PC do B, escolheu “para suas operações o Araguaia, em plena floresta tropical amazônica, numa região localizada na parte oriental do Pará perto da fronteira norte de Goiás”. Entretanto, os militares descobriram o foco subversivo que surgia no local, declarando a área como “zona de segurança nacional, sujeita a poderes especiais, policiais e militares”. No ano de 1975, todos os guerrilheiros estavam mortos ou presos, sendo que muitos camponeses inocentes foram repreendidos e torturados.[40]

As notícias que eram divulgadas sobre a disseminação da tortura faziam com que as pessoas ficassem aterrorizadas em entrar para a oposição ativa. Por conta desse efeito, o governo militar, mesmo após haver derrotado as guerrilhas, continuou a utilizar a repressão através da tortura. Esta se configurava como um forte instrumento, o qual utilizava a mais recente tecnologia que se tinha à época, tais como, “sistemas de comunicação por microondas, listas de suspeitos preparadas por computador e gravadores para registrar conversas telefônicas grampeadas”.[41]

O medo era o principal instrumento utilizado pelas forças de segurança para descobrir e acabar com os “inimigos internos” do país, os quais não eram somente as classes trabalhadoras, os membros do clero, os moradores das favelas e os trabalhadores rurais, mas também os membros da elite, de modo que os familiares dos presos políticos dificilmente conseguiam encontrar algum advogado que se dispusesse a patrocinar sua causa, uma vez que os advogados receavam desafiar as forças de segurança em prol de um cliente marcado politicamente.[42]

As salas de aula das universidades, as escolas secundárias, as sedes de sindicatos, entre outros estabelecimentos, eram vistos como possíveis fontes de oposição, fazendo com que um gigantesco aparato de segurança os observasse. Diante disso, “os brasileiros, geralmente um povo alegre e espontâneo, calaram a boca”, de forma que “tanto as instituições não elitistas quanto as elitistas da sociedade civil” tornaram-se incapazes de realizar uma ação autônoma importante.[43]

Os assassinatos que foram cometidos à época “eram encobertos por versões falsas de 'atropelamentos' ou 'morte em tiroteio'”, versões essas que eram divulgadas pelos meios de comunicação, o que levou aos parentes dessas vítimas a procurarem seus familiares desaparecidos até os dias de hoje.[44]

A Ordem dos Advogados do Brasil, durante o governo de Geisel, demonstrou preocupação com o descaso do governo em apurar o paradeiro de indivíduos os quais supunha-se terem sido presos pelas forças de segurança. Todavia, nesses casos de pessoas desaparecidas, as forças de segurança alegavam desconhecê-las, de forma a frustrar a abertura de inquérito.[45]

Em 1969, a Anistia Internacional denunciou os atos de tortura praticados no Brasil, o que incitou uma investigação oficial do governo brasileiro, a qual foi presidida pelo ministro da Justiça, que negou todas as acusações. O próprio Presidente da época, Médici, negou terminantemente todas as acusações de tortura supostamente praticadas em seu governo.[46]

As únicas instituições que contestavam abertamente a legitimidade do governo militar eram a Ordem dos Advogados do Brasil e a Igreja Católica, as quais estavam no cerne da sociedade civil que conseguiu reconquistar a capacidade de opinar e tinham um modelo tradicionalmente conservador, mas cujos membros tornaram-se mais radicais depois de se confrontarem com o Estado autoritário.[47]

1.3 A LEI Nº 6.683, DE 28 DE AGOSTO DE 1979

Nesse contexto, ainda durante o regime militar, foi sancionada a Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, que concedeu anistia àqueles que praticaram crimes políticos e conexos a estes e aos que praticaram crimes de qualquer natureza, mas com motivação política.[48]

Esta lei tornou possível o retorno ao país de muitos exilados políticos e a libertação de presos políticos[49]. Insta ressaltar que “a anistia dispensa a aplicação da lei penal, eximindo das respectivas sanções aquele que a transgrediu”.[50]

A questão da anistia era vista como essencial para que o Brasil deixasse o regime autoritário e possibilitasse a volta dos milhares de exilados políticos que tinham saído do país com o intuito de fugir ou sido perseguidos no exterior desde o início do regime militar. Como afirma Skidmore[51],

Os entusiastas da anistia apareciam onde quer que houvesse uma multidão. Nos campos de futebol suas bandeiras com a inscrição Anistia ampla, geral e irrestrita eram desfraldadas onde as câmeras de TV pudessem focalizá-las. Esposas, mães, filhas e irmãs se destacavam de modo especial pelo seu ativismo, o que tornava mais difícil o descrédito do movimento por parte da linha dura militar. O Cardeal Arns chamou mais tarde a luta pela anistia “a nossa maior batalha”.

O objetivo dos defensores da anistia era beneficiar todos os presos e exilados por crimes políticos e restabelecer os direitos políticos daqueles que os haviam perdido por conta dos atos institucionais. Além disso, o movimento pró-anistia queria que aqueles que desapareceram com “197 brasileiros que se acreditava terem sido assassinados pelas forças de segurança desde 1964” fossem responsabilizados.[52]

Entretanto, a redação dos dispositivos da Lei da Anistia é obscura, dando margem a diversas interpretações. Alguns entendem que a referida obscuridade foi intencional, tendo como objetivo incluir no âmbito da anistia criminal “os agentes públicos que comandaram e executaram crimes comuns contra opositores políticos ao regime militar”.[53]

Outrossim, há entendimento no sentido de que a anistia concedida à época possui um caráter bilateral, pois abarcou os crimes cometidos pelos opositores do governo e se estendeu àqueles crimes praticados por agentes do Estado.[54] Dessa forma, a Lei da Anistia teria uma verdadeira natureza de acordo da sociedade para com os militares com o objetivo de se perdoar os referidos crimes para que o país pudesse avançar e se tornar um Estado Democrático de Direito[55]. Fala-se, então, em uma “lei de ‘duas mãos’, a contemplar vítimas e algozes”.[56]

Contudo, em relação a esse entendimento de que a Lei da Anistia teria um caráter bilateral, entende-se que tal interpretação foi construída com o intuito de atender aos interesses daqueles que cometeram os delitos, especialmente durante a fase em que o regime militar começou a declinar.[57]

O que se pode afirmar é que, com o surgimento da Lei nº 6.683/79, o Brasil sinalizava o fim do regime militar, a vontade de deixar para trás as atrocidades cometidas na época e entrar em um período de verdadeira democracia e respeito aos direitos humanos.

1.4 A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 26, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1985

A promulgação da Constituição de 1988 foi um ato de rebeldia da nação contra o sistema de exceção, autoritarismo e ditadura, o qual tinha como características um país sem legislativo e judiciário livres, que era comandado por intermédio da tutela e violência dos atos institucionais. Esse período representou “o mais longo eclipse das liberdades públicas”.[58]

O ato convocatório do Poder Constituinte da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o qual foi acompanhado da concessão de anistia no mesmo sentido da lei discutida anteriormente, foi a Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985. Havia na emenda a determinação de promulgação de uma nova Constituição[59], de acordo com Carlos Roberto Siqueira Castro[60], para que na realidade se elegesse

um novo Congresso-Nacional integrado por 487 Deputados e 72 Senadores, nos moldes da tradição bicameral brasileira herdada no constitucionalismo republicano norte-americano(...). Por isso, a Constituinte, apenas num primeiro momento, refletiu mais a representação da classe política tradicional do que propriamente a capilaridade extensiva da sociedade civil. Sua composição exibiu em grande parte – parlamentares já detentores de mandato eletivo ou egressos da militância político-partidária nas últimas décadas, ora de tendência conservadora, ora de inclinação progressista, umas de um modo geral comprometidos com o esquema de transição constitucional lenta e gradual projetada pelos arquitetos do declínio da ditadura, o que vale dizer, sem qualquer vocação para a ruptura drástica com o recente passado autoritário.

Determinou-se naquela emenda constitucional que os membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal iriam compor a Assembleia Nacional Constituinte, a qual deveria ser instalada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, que também teria a função de dirigir a sessão na sede do Congresso Nacional. A Constituição deveria ser promulgada após aprovação de seu texto pela maioria absoluta dos membros da Assembleia Nacional Constituinte. Além da disposição acerca da nova Carta Constitucional, foi concedida anistia àqueles que cometeram crimes entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.[61]

Pelo motivo de que o mesmo ato que convocou o poder constituinte para a promulgação da Carta Constitucional ter sido o mesmo que ratificou a concessão de anistia aos autores de crimes políticos ou conexos a estes, nos termos da Lei nº 6.683/79, há entendimento no sentido de que houve a recepção desta lei pela Constituição da República de 1988.[62]

É necessário notar que tanto a Lei da Anistia, como a Emenda Constitucional nº 26/85, foram de iniciativa do Poder Executivo.

No caso da EC nº 26/85, o Poder Executivo “se valeu do próprio Congresso – um poder constituído e limitado – para transformá-lo em órgão de soberania”.[63]

Por conta disso, há muita discussão acerca dos efeitos da Lei da Anistia e de sua recepção pela nova ordem constitucional, visto que o referido ato normativo foi reiterado na emenda constitucional que convocou o Poder Constituinte da Carta Republicana de 1988. Ademais, como o próprio governo militar sancionou a Lei nº 6.683/79, é possível alegar que tal ato é ilegítimo, pois implica na legitimação da auto anistia.[64]

O motivo que levou a EC nº26/85 a ratificar os termos da Lei da Anistia foi que os militares estavam receosos em serem responsabilizados pelas violações a direitos humanos praticadas durante o período de exceção, uma vez que “a imprensa publicara nomes de torturadores e detalhes de seu sinistro trabalho” e

a principal casa publicadora da Igreja Católica, Editora Vozes, lançou um volume que enervou muitos militares. Brasil: Nunca Mais era o relatório de um grupo de ativistas católicos de São Paulo sobre o submundo da tortura de 1964 a 1979. Os casos incluíam nomes das vítimas e de seus torturadores, juntamente com a época e o local da tortura. As descrições eram aterradoras. Correspondiam aos relatos já em circulação, mas com a força adicional de se basearem em registros militares oficiais. O mesmo grupo de São Paulo publicou posteriormente uma lista de 444 policiais e oficiais das forças armadas envolvidos em atos de tortura.[65]

O relatório citado acima, denominado Brasil: Nunca Mais, além de descrever os vários atos de tortura, informava que a Justiça Militar Brasileira tinha conhecimento da aplicação destes atos durante os inquéritos, e mesmo assim apoiava seus julgamentos neles, de forma a atribuir validade a seus resultados. Demonstra, ainda, que essa postura foi tomada por todo o Poder Judiciário nos processos por crimes políticos, até mesmo pela Corte Suprema que em determinadas situações mostrou-se omissa e subjugou-se com atitudes convenientes.[66]

Sobre a autora
Aline Castello Branco de Resende

Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória - FDV

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RESENDE, Aline Castello Branco. A força vinculante da decisão prolatada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros Vs Brasil . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3173, 9 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21248. Acesso em: 23 nov. 2024.

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