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A força vinculante da decisão prolatada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros Vs Brasil

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Agenda 09/03/2012 às 13:12

4 A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO GOMES LUND E OUTROS VS BRASIL

Neste capítulo serão analisados os argumentos utilizados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos[141] quando do julgamento dos casos de violações a direitos humanos ocorridos no contexto da Guerrilha do Araguaia.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos submeteu em 26 de março de 2009 a análise do caso daquelas pessoas desaparecidas no contexto da Guerrilha do Araguaia à jurisdição da Corte, apresentando demanda contra a República

Federativa do Brasil com o objetivo de

consolidar a jurisprudência interamericana sobre as leis de anistia com relação aos desaparecimentos forçados e à execução extrajudicial e a consequente obrigação dos Estados de dar a conhecer a verdade à sociedade e investigar, processar e punir graves violações de direitos humanos.

O objeto da demanda refere-se à responsabilidade do Estado pelos atos atentatórios a direitos humanos cometidos durante as operações do Exército Brasileiro para combater a guerrilha do Araguaia, tais como desaparecimentos forçados, tortura, detenção arbitrária, os quais ocorreram no contexto do regime militar.

O motivo que levou a Comissão a submeter o caso à Corte é que a Lei nº 6.683/79 (Lei da Anistia), editada no Brasil, impede a punição dos agentes que cometeram os referidos crimes durante o regime militar, o que fez com o que o país deixasse de investigá-los, deixando os familiares das vítimas sem qualquer informação acerca de seu paradeiro. Assim,

a Comissão  solicitou ao Tribunal que declare que o Estado é responsável pela violação dos direitos estabelecidos nos artigos 3 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 4 (direito à vida), 5 (direito à integridade pessoal), 7 (direito à liberdade pessoal), 8 (garantias judiciais), 13 (liberdade de pensamento e de expressão) e 25 (proteção judicial), da Convenção Americana de Direitos Humanos, em conexão com as obrigações previstas nos artigos 1.1 (obrigação geral de respeito e garantia dos direitos humanos) e 2 (dever de adotar disposições de direito interno) da mesma Convenção. Finalmente, solicitou à Corte que ordene ao Estado a adoção de determinadas medidas de reparação.

Em sede de contestação, o Estado Brasileiro utilizou, entre outros argumentos, o de que a Corte Interamericana seria incompetente para analisar os crimes cometidos durante o regime militar, pois naquele período o país ainda não havia reconhecido a jurisdição contenciosa da Corte, o que ocorreu somente em 10 de dezembro de 1998, e requereu que os pedidos fossem julgados improcedentes, já que o Brasil tem empreendido ações em âmbito interno para reparar os referidos crimes.

Além disso, afirmou que a Corte não poderia revisar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, uma vez que foi uma decisão adotada pela mais alta corte do país, sendo proibida a criação de uma quarta instância.

Quanto à primeira alegação, a Corte entendeu que o Estado Brasileiro tem razão ao afirmar que há incompetência para a análise das violações que teriam ocorrido antes de o país ter reconhecido a sua jurisdição. Até porque o referido reconhecimento ressalvou que só seria eficaz para os fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998. Ocorre que o Brasil reconheceu a jurisdição da Corte para examinar as violações continuadas ou permanentes, mesmo que tenham se iniciado antes da data acima citada.

Assim, sustentou-se que o objeto da demanda referia-se apenas às violações às disposições do Pacto de San José da Costa Rica que persistem após o reconhecimento da jurisdição da Corte, tendo em vista a natureza continuada do crime de desaparecimento forçado, e de outras violações posteriores a esse reconhecimento. Ademais, a falta de investigação das violações a direitos humanos restringe o direito à informação além de causar sofrimento aos familiares das vítimas.

No tocante à decisão do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, a Corte ressaltou que o objetivo da Comissão não é o de revisar o referido acórdão, até porque a demanda foi apresentada antes de sua prolação, mas sim o de apurar as supostas violações cometidas pelo Estado ao Pacto de San José da Costa Rica. Outrossim, no caso levado à apreciação da Corte,

não se solicita à Corte Interamericana a realização de um exame da Lei da Anistia com relação à Constituição Nacional do Estado, questão de direito interno que não lhe compete e que foi matéria de pronunciamento judicial na Arguição de Descumprimento No. 153 (…), mas que este Tribunal realize um controle de convencionalidade, ou seja, a análise da alegada incompatibilidade daquela lei com as obrigações internacionais do Brasil contidas na Convenção Americana.

No mérito da questão, a Corte sustentou que o crime de desaparecimento forçado caracteriza-se por uma violação múltipla, iniciando-se com uma privação de liberdade que afronta o artigo 7 da Convenção Americana. Asseverou, ainda, que constituiu infração ao dever de prevenção de violações dos direitos à vida e à integridade física, constantes nos artigos 4 e 5 do Pacto de San José, a sujeição de indivíduos detidos a órgãos oficiais de repressão, a agentes do Estado ou a particulares que atuem com sua permissão ou tolerância, que pratiquem tortura ou homicídio de forma impune.

Além disso, afirmou-se que o crime de desaparecimento forçado causa a vulneração do direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, o qual é previsto no artigo 3 da Convenção Americana, já que o referido crime nega a existência da vítima, deixando-a “em uma espécie de limbo ou situação de indeterminação jurídica perante a sociedade”.

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Assim, concluiu-se que o Estado Brasileiro é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação aos seguinte direitos: direito ao reconhecimento da personalidade jurídica; direito à vida; direito à integridade pessoal; e direito à liberdade pessoal. Tais direitos estão previstos, respectivamente, nos artigos 3, 4, 5 e 7, em relação ao artigo 1.1 do Pacto de San José da Costa Rica.

Após isso, a Corte passou à análise da conformidade da Lei da Anistia com os direitos assegurados nos artigos 1.1, 2, 8.1 e 25 do Pacto de San José da Costa Rica, a fim verificar se há possibilidade da referida lei manter a sua vigência, no que concerne às graves violações a direitos humanos, mesmo após o Estado brasileiro ter se obrigado internacionalmente a cumprir as disposições do Pacto após sua ratificação.

Importante ressaltar que o artigo 2 da Convenção Americana diz respeito ao seu caráter subsidiário e à necessidade de os Estados-membros criarem normas de direito interno que prevejam os direitos contidos na Convenção. Já os artigos 8.1 e 25 dispõem sobre o direito do acusado em ser ouvido por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, na apuração de qualquer acusação criminal e sobre o direito ao recurso perante os juízes ou tribunais competentes, respectivamente.

A Corte destacou que é dever dos Estados investigar e punir as violações a direitos humanos a fim de se garantir os direitos reconhecidos na Convenção Americana. Assim, as leis de anistia que servem como obstáculo para investigar e punir os atos atentatórios aos direitos humanos são incompatíveis com o Direito Internacional, sendo este entendimento adotado por todos os órgãos internacionais de direitos humanos.

Diante disso, a Corte reiterou o entendimento já exarado em outras demandas de que

são inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações a direitos humanos, como a tortura, as execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, e os desaparecimentos forçados, todas elas proibidas por violar direitos inderrogáveis reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos.

A Corte Interamericana considerou que a forma pela qual foi aplicada a Lei da Anistia no Brasil impediu que o Estado investigasse e punisse as graves violações a direitos humanos ao não permitir que os familiares das vítimas das referidas violações fossem ouvidas por um juiz, negando-lhes o direito à proteção judicial. Além disso, afirmou que o país deixou de cumprir com a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana.

Considerou, ainda, que a discussão acerca da origem da Lei da Anistia – se ela se trata ou não de uma “autoanistia” por ter sido elaborada pelos próprios agentes públicos que agiram durante o regime militar –, é irrelevante para o deslinde da questão, pois o que importa é o seu aspecto material, é a análise de suas disposições para se verificar se estas estão em conformidade com a Convenção Americana.

Além disso, destacou que é dever do Poder Judiciário local exercer o controle de convencionalidade, o que não foi feito no Brasil, uma vez que a decisão do Supremo Tribunal Federal proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153 confirmou a validade da interpretação da Lei da Anistia de 1979, sem levar em consideração as obrigações internacionais do Estado.

No que diz respeito ao direito à liberdade de pensamento e de expressão, destacou-se que a Convenção Interamericana de Direitos Humanos considera que esse direito abarca o direito de buscar e de receber informações. Dessa forma, se uma pessoa busca perante o Estado alguma informação, este tem a obrigação de fornecê-la. É lícito ao Estado negar seu fornecimento, mas, para tanto, deve justificar sua decisão com base na Convenção Americana, que elenca as hipóteses em que a referida negativa é permitida.

No entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, “em uma sociedade democrática, é indispensável que as autoridades estatais sejam regidas pelo princípio de máxima divulgação, que estabelece a presunção de que toda informação é acessível, sujeita a um sistema restrito de exceções”.

Após todas essas considerações, a Corte decidiu, por unanimidade, que “as disposições da Lei da Anistia (...) carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos” ocorridos no contexto da guerrilha do Araguaia, nem para a identificação e punição daqueles que cometeram crimes contra a humanidade, “e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil”.

Dessa forma, concluiu-se que o Estado Brasileiro deve promover a investigação penal dos fatos que foram objeto da demanda com a finalidade de esclarecê-los e responsabilizar aqueles que violaram os direitos previstos no Pacto de San José da Costa Rica, aplicando-lhes as devidas sanções.


CONCLUSÃO

Diante das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153 e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no julgamento do caso das vítimas do Guerrilha do Araguaia contra o Brasil, discute-se qual delas deveria ser aplicada e se a Corte Internacional poderia impor alguma sanção ao país em caso de descumprimento de suas decisões ante a soberania nacional.

Conforme discutido durante todo o trabalho, o motivo que levou à criação dos vários tratados internacionais sobre direitos humanos foi a ocorrência de diversas violações aos ditos direitos no século XX. Foi constatada a necessidade da formação de uma ordem internacional, a fim de se prevenir novas violações e de reprimir as que, porventura, viessem a acontecer.

Por conta disso, entrou em evidência o universalismo cultural, que, conforme já exposto, entende que existem normas de caráter universal, pautadas na dignidade da pessoa humana, inerente a todos os indivíduos, sem qualquer distinção. Assim, todos os países deveriam respeitar os direitos humanos, indistintamente.

Os tratados internacionais de direitos humanos se fundamentam no universalismo cultural, de modo que sempre impõem o respeito à dignidade humana, a fim de evitar a ocorrência de crimes contra a humanidade, tendo sido criados, inclusive, os chamados crimes internacionais, os quais, mesmo não previstos no direito interno, podem ser punidos internacionalmente.

Isso porque, segundo o entendimento defendido por autores como Fábio Comparato e Flávia Piovesan, as normas internacionais de direitos humanos, por exprimirem uma consciência ética universal, prevaleceriam sobre o direito interno de cada nação.

Dessa forma, havendo conflito entre uma norma internacional e uma norma interna, defende-se que deveria prevalecer aquela que se mostre mais favorável à pessoa, uma vez que a proteção da dignidade humana é a finalidade de todo o ordenamento jurídico.

Em razão do exposto, há entendimento no sentido de que os tratados internacionais de direitos humanos, no Brasil, teriam hierarquia constitucional, tendo sido este entendimento, até mesmo, defendido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, no julgamento do Habeas Corpus nº 90450.

Naquele julgado foi defendido que os direitos humanos devem prevalecer, e, na hipótese de conflito entre uma norma de direito interno e uma norma internacional, é necessário analisar qual delas é mais favorável ao indivíduo, a fim de dispensar-lhe uma maior proteção jurídica. Diante disso, os tratados internacionais de direitos humanos teriam hierarquia formal de norma constitucional, devendo prevalecer sempre que proteger de forma mais abrangente os sujeitos de direito.

Assim, o Pacto de San José da Costa Rica, mesmo tendo sido incorporado pelo Brasil antes da Emenda Constitucional nº 45/2004, que inseriu o §3º ao artigo 5º da Constituição da República de 1988, por se tratar de instrumento internacional sobre direitos humanos, teria hierarquia formal de norma constitucional. Ressalta, contudo, que os documentos internacionais que venham a ser incorporados pelo Brasil após a emenda devem observar o procedimento contido no referido § 3º para que possua força constitucional.

No entanto, também há entendimento na própria Corte Suprema, defendido pelo Ministro Gilmar Mendes no julgamento do Recurso Extraordinário nº 349703, no sentido de que os tratados internacionais de direitos humanos teriam hierarquia formal sui generis, em razão de serem supralegais, porém inferiores à Constituição, devendo observar as chamadas “cláusulas pétreas”. Assim, equivaleriam às emendas constitucionais.

Neste ponto, cumpre ressaltar que o entendimento no sentido de que os tratados internacionais de direitos humanos teriam hierarquia formal de leis ordinárias já encontra-se superado após a edição da Emenda Constitucional nº 45, que deixou de forma clara que as normas que versam sobre direitos humanos encontram-se em patamar superior às leis infraconstitucionais, havendo discussão apenas se tais instrumentos internacionais prevaleceriam ou não sobre as normas constitucionais.

Ocorre que, segundo já explicitado, mostra-se patente a necessidade de uma ordem internacional, e a existência de uma Corte Internacional que julgue os casos de violações a direitos humanos praticados pelos países, a fim de evitar a arbitrariedade, como a que ocorreu durante o regime militar no Brasil.

Como os direitos humanos são inerentes a todos os indivíduos, indistintamente, independentemente de sua cultura, não há motivo que justifique a não aplicação de um tratado internacional sobre direitos humanos pelo motivo de contrariar norma de direito interno, ou então pelo motivo de o direito nele previsto não estar expresso no direito interno do país.

Dessa forma, os tratados internacionais sobre direitos humanos teriam hierarquia formal de norma constitucional e as decisões proferidas pelas Cortes Internacionais teriam força vinculante naqueles países-membros, caso se mostrem mais favoráveis aos indivíduos do que as proferidas pelas Cortes internas. A soberania não pode ser ilimitada, sob pena de ocorrerem abusos de poder que levem a violações a direitos humanos.

No caso analisado neste trabalho, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPD 153 entendeu pela plena vigência da Lei da Anistia no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, como já foi explicitado, tal entendimento fere direitos fundamentais dos indivíduos, tais como o direito à informação, uma vez que a referida lei impede a investigação da autoria dos crimes contra a humanidade praticados durante o regime militar.

Conforme exposto, a Lei da nº 6.683/79 foi elaborada pelos próprios agentes do regime militar. Assim, a anistia teria sido concedida a esses agentes, que compunham o Poder Executivo, por eles próprios.

Por conta dessa situação justifica-se uma intervenção internacional, mostrando-se legítima a decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos que entendeu que a Lei da Anistia não possui vigência, por ferir direitos humanos internacionais, previstos no Pacto de San José da Costa Rica, do qual a República Brasileira é signatária, caracterizando-se tal decisão como mais favorável aos indivíduos do que a decisão proferida pelo STF na ADPF º 153.

É defensável, portanto, o ponto de vista no sentido de que a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos se sobrepõe à decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, já que nenhuma lei ou norma de direito interno pode impedir que o Estado cumpra sua obrigação de punir e prevenir os crimes contra a humanidade.

Ademais, cumpre ressaltar que com a edição da Emenda Constitucional nº 45/2004, que equiparou os tratados internacionais sobre direitos humanos a emendas constitucionais, e com as decisões proferidas pela Corte Suprema entendendo que os referidos tratados são supralegais, é possível defender a tese no sentido de que o direito brasileiro está cada vez mais se inclinando para o entendimento de que as normas internacionais de direitos humanos estariam em um patamar superior ao direito interno, de modo a haver o respeito a uma moral universal.

Sobre a autora
Aline Castello Branco de Resende

Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória - FDV

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RESENDE, Aline Castello Branco. A força vinculante da decisão prolatada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros Vs Brasil . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3173, 9 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21248. Acesso em: 23 nov. 2024.

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