Resumo
O Direito de Família sofreu significativas modificações ao longo do tempo e, nos dias de hoje, passa pelo “fenômeno da desmatrimonialização”, tendo, com isso, ampliado seus limites. Por esse motivo, grandes mudanças legislativas foram necessárias e, com a promulgação da Constituição da República de 1988, o art. 226 passou a considerar legítimas outras espécies de entidades familiares, dentre elas a União Estável. Duas foram as leis criadas para regulamentar os direitos dos companheiros, tendo em vista o caráter programático do artigo constitucional relativo a eles. Entretanto, com o advento do Código Civil de 2002, a lei retrocedeu e, especificamente no Direito das Sucessões, os direitos antes garantidos aos conviventes foram extirpados, observando-se atualmente grande desigualdade entre esses e os cônjuges. O objetivo, então, é abordar as possíveis inconstitucionalidades inerentes à sucessão do companheiro sobrevivo que podem ser observadas no art. 1.790 do Código Civil, bem como fazer uma crítica à abordagem do tema pelo legislador, que optou por manter o tradicionalismo do matrimônio, afinal, apesar das conquistas sociais já vencidas, o casamento ainda é a espécie familiar mais bem vista pela sociedade. Portanto, agiu o legislador com inconstitucionalidade ou fora mera opção legislativa? Realizar-se-á uma abordagem acerca dos direitos sucessórios do companheiro, fazendo uma crítica ao sistema normativo que o rege, bem como será proposta uma solução ao problema, visando, unicamente, garantir o princípio que rege a Constituição da República de 1988, o da dignidade da pessoa humana, pois toda e qualquer discriminação que se faça não atinge apenas a figura da entidade familiar, mas as pessoas que dela fazem parte.
Palavras-chave: Direito das Sucessões. União estável. Novo Código Civil. Dignidade da pessoa humana. Inconstitucionalidade.
Abstract
The family law has undergone significant changes over time and, today, is the "phenomenon of desmatrimonialização", and thereby expanded its boundaries. For this reason, major legislative changes were necessary and, with the promulgation of the Constitution of 1988, art. 226 began to consider other kinds of legitimate entities family, among them the stable. Two laws were created to regulate the rights of fellow, given the programmatic nature of the constitutional article on them. However, with the advent of the Civil Code of 2002, and kicked the law, specifically the Law of Succession, before the rights guaranteed to cohabiting were extirpated, is currently looking great inequality between them and their spouses. The goal then is to address the possible unconstitutionality inherent in the succession of the surviving partner can be found in art. 1790 of the Civil Code as well as making a critical approach to the subject by the legislature, which chose to keep the traditionalism of the marriage, after all, despite the social conquests already won, marriage is still the most familiar species well regarded by society. Therefore, the legislature acted with unconstitutional or outside mere legislative option? Performing will be an approach about the inheritance of the companion, making a criticism of the regulatory system that governs and will propose a solution to the problem, aiming solely to guarantee the principle governing the Constitution of 1988, the of human dignity, for any discrimination that affects not only make the picture of a family but the people who belong to her.
Key words: Law of Succession. Stable union. New Civil Code. Human dignity. unconstitutionality
Introdução
A família é o mais puro exemplo de agrupamento humano, a qual, desde os primórdios, é observada como centro e base da formação da sociedade. O que primeiramente surgiu como meio de acúmulo patrimonial, no qual havia a formação de famílias com o fim de acumular quantas mais riquezas possíveis, logo deu espaço aos laços afetivos que, com a evolução da sociedade, passaram a ser o objetivo principal da união das pessoas, com o fim de formar uma família. Se antes predominava a união pelo ter, nos dias de hoje, e, sob o prisma do princípio da dignidade da pessoa humana, a família é instituída pelo ser.
É nesse contexto que a família brasileira sofreu significante transição com o advento da Constituição Federal de 1988, iniciando-se um processo de constitucionalização do direito civil e ampliando o conceito de família, de modo a abranger outras espécies de relações afetivas, que não somente aquelas tidas como matrimonais.
O legislador constituinte passa a reconhecer a família como base da sociedade e relaciona no artigo 226 da Constituição Federal um enunciado exemplificativo do que venha a figurar como entidade familiar, no qual, dentre as citadas espécies, encontra-se inserido no, §3º, a união estável.
A partir daí, observamos o que se pode chamar de “fenômeno da desmatrimonialização”, no qual a Constituição passa a dissociar a entidade matrimonial da legitimidade familiar, não sendo necessário, portanto, o casamento para que as diversas espécies familiares sejam legitimadas e tenham seus direitos garantidos.
Com isso, o objetivo geral do presente estudo é analisar a sucessão do companheiro, bem como alguns dos principais aspectos jurídicos aplicados ao caso concreto, observando a flagrante discriminação legislativa sofrida pelo mesmo em comparação ao cônjuge, pois, muito embora tenham ocorrido todos esses avanços sociais, o Código Civil de 2002, ao regulamentar o direito sucessório do convivente sobrevivo, revelou, no art. 1.790, grandes distorções entre esse e o cônjuge. Moutrou-se, mais uma vez, que a sociedade ainda está sobre a influência do tradicionalismo matrimonial e que, infelizmente, nesse caso específico, as normas não avançaram conforme as necessidades sociais.
Essa é a problemática existente no direito sucessório do companheiro. Ora, de um lado temos a Carta Maior reconhecendo a união estável como entidade familiar e, do outro, mais precisamente no Código Civil de 2002, nos deparamos com flagrantes discriminações conferidas à referida espécie familiar.
Durante algum tempo, com o advento das Leis 8.971/1994 e 9.278/1996, primeiros diplomas legais que disciplinaram a disciplina da união estável, assim considerada como família pela Constituição Federal, essa espécie de entidade familiar deteve direitos sucessórios similares aos dos partícipes da relação matrimonial. No entanto, pode-se falar em retrocesso social quando, por ocasião do advento do Código Civil de 2002, a lei infraconstitucional passa a tratar com enorme discriminação os companheiros, resultando no inconstitucional artigo 1790 do Código Civil.
Procuraremos responder, ao longo da leitura, diversos questionamentos, dentre eles: Porque o Código Civil, em ato de extremo retrocesso social do Legislador, restringe de forma totalmente discriminatória os direitos do companheiro por ocasião da abertura da sucessão? Se a própria Constituição Federal de 1988 considerou, em seu art. 226, as mais diversas espécies de família, não sendo legítimas somente aquelas advindas do matrimônio e, sendo a união estável considerada como uma das entidades familiares (art. 226, § 3°), porque não equiparar os direitos do companheiro aos do cônjuge? A norma civil do artigo 1790 do Código Civil é inconstitucional ou sua elaboração fora mera opção legislativa?
O artigo justifica-se em vista da importância que deve ser dada à toda e qualquer espécie de entidade familiar, uma vez que, a partir da evolução social pela qual passou o direito de família, é evidente a necessidade da proteção legislativa às entidades familiares em sentido amplo, pois o foco é o ser individual, e a Constituição prima em garantir o princípio da dignidade da pessoa humana.
Cumpre asseverar, desde já, que não nos cabe nesse trabalho a análise antropológica da evolução das famílias, mas, tão somente, explicitar a abordagem dada ao conceito nos dias de hoje, com o fim de entender o porquê das inúmeras discriminações que ainda pairam sobre àquelas sociedades familiares que não têm como característica a união pelo matrimônio, em especial a discriminação com que é tratado o companheiro quando da dissolução da união por causa mortis na sucessão do de cujus.
1.Entidades familiares na Constituição Federal
A evolução da família é contemporânea à evolução da sociedade, podendo-se dizer que decorre dessa última. O motivo dá-se pela instantânea transição de uma sociedade patriarcal e matrimonializada para uma sociedade que encara a família não mais sob um prisma singular, ou seja, como aquela formada unicamente pelo casamento, mas sim, reconhece diversas entidades familiares, portanto, primando, assim, pelo princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Este, por sua vez,l considera cada pessoa de forma individual, merecedora de tutela específica que assegure seu bem estar, igualdade e dignidade.
Nesse sentido, com o advento da Constituição da República de 1988, a realidade do direito de família se apresentou com nova roupagem, tendo como princípio-base a dignidade da pessoa humana. Ao ultrapassar as barreiras do preconceito, que desde os tempos passados considera o casamento como único meio legítimo para a instituição de uma família, passa a reconhecer a individualidade de cada ser, podendo, portanto, os indivíduos vir a formar família diversa daquela antes considerada como única e legítima. Passam a ser reconhecidas pelo Estado, portanto, outras formas de relações afetivas antes desprezadas, seja homoparental, monoparental, formada apenas por união estável, dentre outras possíveis.
Nesse novo contexto, o art. 226 da nova Constituição Federal trouxe o que se pode chamar de fenômeno da desmatrimonialização das relações familiares, dando espaço para as diversas entidades familiares já existentes e antes não legitimadas, garantindo-as a total proteção do Estado.
Ora, com a Lex Fundamentallis de 1988 determinando uma nova navegação aos juristas, observando que a bússola norteadora das viagens tem de ser a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a solidariedade social e a erradicação da pobreza (art. 3º) e a igualdade sunstancial (arts. 3º e 5º), o Direito de Família ganhou novos ares, possibilitando viagens em mares menos revoltos, agora em “céu de brigadeiro”. A família do novo milênio, ancorada na segurança constitucional, é igualitária, democrática e plural (não mais necessariamente casamentária), protegido todo e qualquer modelo de vivência afetiva e compreendida como estrutura socioafetiva, forjada em laços de solidariedade. (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p.10, grifo do autor)
A expressão entidade familiar vai além daquelas expressamente definidas em lei. O artigo 226 da Constituição Federal estabelece as entidades a que o termo família abrange, quais sejam, a entidade matrimonial, a união estável e a família monoparental.
Entretanto, a Lex Major não é taxativa ao estabelecer as espécies familiares, tendo apenas se limitado a exemplificar em seu texto as relações que se formavam à época de sua elaboração. Isso ocorre devido à dinâmica que paira nas relações sociais, pois é com o passar dos tempos que as pessoas se reorganizam, a sociedade se modifica e a família se molda, com o fim de atender às necessidades sociais postas em uma determinada época.
Prova maior de que o rol indicado pelo artigo 226 da CF/88 é exemplificativo está no recente julgamento pelo pleno do STF da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 132, onde foi reconhecida a união estável de casais do mesmo sexo. Em outras palavras, o Supremo Tribunal Federal considerou legítima mais uma espécie familiar, qual seja, aquela formada por pessoas do mesmo sexo (união estável homoafetiva).
Referido entendimento apenas reafirma que a função do operador do direito é de reconhecer e regulamentar as situações reais do dia a dia da sociedade e, claro, que não contrariem o ordenamento jurídico, pois quando a lei fala na proteção das entidades familiares (art. 226, §8 da CF), em outras palavras, o que se visa é a proteção do ser individual, reafirmando, mais uma vez, o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual é objetivado em todos os dispositivos da Constituição Federal de 1988.
2 .Aspectos gerais do instituto da união estável
O Código Civil de 2002, em vigor a partir de 11 de janeiro de 2003, trouxe em seu Livro IV, um “Título” exclusivamente para cuidar do instituto da união estável, estabelecendo, inclusive, no art. 1727, a distinção entre esse instituto e o concubinato, definindo o último como sendo “as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.”
Alguns autores, tais como Maria Berenice Dias, acrescentam que o novel legislador civil teria perdido uma grande oportunidade de regulamentar referido instituto familiar de forma mais plena. Não se sabe por quais razões, limitou-se a tratar de tão importante assunto em somente cinco artigos, sendo que, um deles ainda refere-se à conceituação de concubinato e não à união estável propriamente dita. No que tange à disciplina do casamento, ao contrário, foram dispensados mais de oitenta artigos para tratar de seus efeitos e respectivas formalidades, como observado:
O casamento e a união estável são merecedores da mesma e especial tutela do Estado. Todavia, em que pese a equiparação constitucional, a lei de forma retrógrada e equivocada outorgou à união estável tratamento notoriamente diferenciado em relação ao matrimônio. Em quatro escassos artigos (CC 1.723 a 1.726), disciplina seus aspectos pessoais e patrimoniais. Fora do capítulo específico, outros dispositivos fazem referência à união estável. É reconhecido o vínculo de afinidade entre os conviventes (CC 1.595), autorizada a adoção (CC 1.632). É deferido o direito a alimentos (CC 1.694) e de instituir bem de família (CC 1.711), assim como é admitido que um companheiro seja curador do outro (CC 1.775). O direito sucessório dos companheiros foi tratado – e muito mal tratado – em um único dispositivo (CC 1.790). (DIAS, 2008, p. 65; DIAS, 2009, p.162).
A união estável é a convivência não incestuosa e nem adulterina que se faça duradoura, contínua e pública entre duas pessoas, seja em uma relação homossexual ou heterossexual, pois, muito embora a legislação traga como um dos requisitos para a sua conceituação a diversidade dos sexos, essa característica já foi vencida pelas decisões dos tribunais, inclusive em decisão recente do Supremo Tribunal Federal[1], de caráter vinculante. Válido observar, ainda, que não se faz necessária a convivência sob o mesmo teto, mas tem-se como requisito o animus de constituir uma família. Assim sendo, Euclides Benedito de Oliveira (2002, p. 175, grifo do autor apud DIAS, 2009, p. 161) fala: “Nasce a união estável da convivência, simples fato jurídico que evolui para a constituição de ato jurídico, em face dos direitos que brotam dessa relação.”
Por sua vez, o §1º do artigo 1723 do Código Civil de 2002 traz mais um requisito para a constituição da união estável, qual seja: “A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521, não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente”. O §2º do mesmo dispositivo legal preleciona que “as causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável”.
Conclui-se, portanto, que o texto constitucional, bem como a legislação infra, trouxe os seguintes requisitos para a caracterização da espécie de entidade familiar denominada união estável, conforme ensina Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010, p. 447, grifo do autor) “[...] infere-se, com tranquilidade, que a união estável está submetida a alguns elementos essenciais: i) diversidade de sexos; ii) estabilidade; iii) publicidade; iv) continuidade; v) ausência de impedimentos matrimoniais”. No entanto, todos esses elementos objetivos devem estar em harmonia com outro elemento, o subjetivo, ou seja, com o animus do casal em constituir uma família.
Contudo, apesar de serem estabelecidos pela legislação civil atual e estudados com afinco pela doutrina, os requisitos caracterizadores da união estável devem ser observados apenas como um conjunto basilar que rege essa espécie de entidade familiar, no entanto, não deve ser negligenciada a relatividade que paira sob essa espécie, tendo em vista as modificações sociais intensas que acontecem a cada momento. Prova maior é a caída do requisito da diversidade de sexos com o julgado recente do STF, como já dito anteriormente.
3.O tratamento do companheiro no Direito das Sucessões: inconstitucionalidade ou opção legislativa?
Sabe-se que a união estável é capaz de gerar efeitos em diversas áreas do direito, tanto sob o prisma patrimonial (obrigacional), quanto no que tange ao aspecto pessoal. Isso reforça a tese de que o instituto em comento em muito se assemelha ao casamento, já que acolhe em sua essência vários elementos caracterizadores da relação marital, com exceção da formalidade do ato de habilitação e posterior registro público. Entretanto, são justamente essas diferenças que levam à uma gama de distinções feitas entre o tratamento dispensado aos companheiros e aos cônjuges, mormente no que tange ao aspecto sucessório, como observar-se-á adiante.
Mostra-se de bom alvitre esclarecer, desde já, que por opção temática e de cunho metodológico, tendo em vista as limitações impostas pelo objetivo proposto no presente trabalho, não serão analisados os demais efeitos da união estável, mas tão-somente os de cunho “patrimonial” e, ainda assim, os “post mortem”.
Antes de vigorar o atual Código Civil de 2002, as legislações que tratavam da sucessão dos companheiros eram as Leis de nº 8971/94 e 9278/96, que garantiam amplos direitos e mantinham o tratamento quase que igualitário entre o companheiro e o cônjuge. Essas Leis vieram para completar a normatividade do art. 226, §3° da Constituição Federal, isso porque o artigo é tido como norma constitucional programática e, consoante ressalta Maria Helena Diniz (1992, p. 104, grifo do autor apud MORAES, 2001, p. 41), apenas traçou preceitos a serem cumpridos pelo ente estatal, não regulando diretamente o interesse ou direito nela consagrado. Assim, tem-se que as normas constitucionais programáticas são àquelas que dependem de uma complementação do legislador ordinário, já que são meros programas que estabelecem planos e diretrizes a serem regulamentadas (SANTOS, ano 9, n. 204, 26 jan. 2004, on line).
Ao elaborar o atual diploma Civil, o legislador retrocedeu no tratamento que o companheiro vinha recebendo, conforme a aplicação das referidas leis ordinárias, elaboradas para completar a norma programática do art. 226, §3° da CF. Ocorre que, assim como a lei de 2002, que alterou o Código Civil de 1916, as leis de 1994 e 1996 também se constituem como leis ordinárias infraconstitucionais, portanto, de mesmo nível normativo, sendo de fácil conclusão a impossibilidade de, uma vez dada a execução de uma norma programática por meio de uma lei infraconstitucional, lei posterior de mesmo valor vir a retroceder com o alcance já conferido à norma constitucional, sob o risco de ser declarada a sua inconstitucionalidade, já que fere o princípio da proibição do retrocesso social. Nesse sentido, Francisco Cahali e Giselda Hironaka (2007, p. 180, grifo nosso) tecem críticas ao codex Civil ;
Críticas foram feitas ao projeto do Código Civil pela falta de previsão, em sua versão original e naquela após as emendas do Senado, de efeitos jurídicos da união estável. Pior, porém, a inclusão do direito sucessório de forma aleijada, como promovida pelo Código na versão que veio a ser publicada, pois, embora traga o companheiro sobrevivente à primeira classe de preferência para receber uma parte da herança, na falta de descendentes e ascendentes, a nova lei força caminho na contra-mão da evolução doutrinária, legislativa e jurisprudencial elaborada à luz da Constituição Federal de 1988.
O artigo 2° da Lei n° 8.971/94 (BRASIL, 1994, grifo nosso) garante ao companheiro sobrevivente a prerrogativa da quarta parte sobre o usufruto dos bens, enquanto não constituir nova união, bem como estabelece que, na falta das duas primeiras classes o companheiro herda exclusivamente:
As pessoas referidas no artigo anterior participarão da sucessão do(a) companheiro(a) nas seguintes condições: I - o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujos, se houver filhos ou comuns; II - o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto da metade dos bens do de cujos, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes; III - na falta de descendentes e de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança.
A legislação infraconstitucional de 1994 veio regulamentar que o companheiro sobrevivente, se estivesse convivendo com o outro no momento do óbito, tinha reconhecido o direito na sucessão do de cujus, estabelecendo que, enquanto não constituísse nova união, caberia ao sobrevivente o usufruto da quarta parte ou da metade dos bens do morto, na concorrência com os descendentes ou com os ascendentes sucessivamente. Ainda, o companheiro faria jus ao total da herança nos casos da inexistência de descendentes e ascendentes, não concorrendo, portanto, com os colaterais.
A Lei n° 8.971, de 29 de dezembro de 1994, pelo art. 2°, outorgou direitos sucessórios entre companheiros. O principal deles situava o companheiro sobrevivo em terceiro lugar na escala sucessória, vindo após os descendentes e ascendentes e com direito à herança integral. Reconheceu o direito à metade dos bens, quando decorrentes de sociedade de fato (art. 3°). Previu o direito ao usufruto da quarta parte do acervo hereditário, quando o de cujus deixasse filhos, e da metade se houvesse companheiro ascendente. O usufruto era conferido sob condição resolutiva: permanecia enquanto o companheiro sobrevivo não contraísse outra união, fosse esta pelo casamento ou mediante união estável. (NADER, 2010, p. 158, grifo do autor).
Já o parágrafo único do art. 7° da Lei de n° 9.278 de 1996 regulamentou o direito real de habitação do companheiro sobrevivente e garantiu que “dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família”.
A doutrina majoritária passou a considerar tanto a aplicabilidade do art. 2° da Lei n° 8.971/94 quanto a do parágrafo único do art. 7° da Lei de n° 9.278/96, sendo garantido ao companheiro o direito real de habitação e o usufruto, gerando uma situação mais benéfica se comparada aos direitos relativos ao cônjuge, nesse aspecto, sendo alvo de muitas críticas.
A Lei n° 9.278, de 10 de maio de 1996, não modificou as regras sucessórias, apenas acrescentou o direito real de habitação em favor do companheiro sobrevivo, pertinente ao imóvel destinado à residência da família, em caráter vitalício, mas desde que não convolasse núpcias nem integrasse união estável. Estabeleceu a presunção de que bens móveis e imóveis adquiridos na constância da união, desde que não o fossem com economias anteriormente existentes, resultaram do trabalho e da colaboração comum, pertencendo os bens a ambos e em regime de condomínio em partes iguais. Tal orientação é dispositiva, pois comporta convenção diversa, mediante instrumento escrito. (NADER, 2010, p. 158).
Diante dos dispositivos das referidas Leis, é possível observar uma abordagem mais coerente a respeito da sucessão do companheiro do que àquela que vigora nos dias atuais na codificação brasileira. É que com a entrada em vigor do novo Código Civil o país presenciou grande retrocesso entre essa e a legislação anterior, já que foram desconsideradas as conquistas sociais tão almejadas pelos companheiros, que se tornaram possíveis com o advento da Constituição Federal de 1988 (art. 226, §3°) e posterior programação do dispositivo constitucional feita pelas leis de n° 8.971/94 e de n° 9.278/96.
Assim, o CCB de 2002 contribuiu com alguns avanços legislativos e realizou perfeito trabalho ao conservar alguns dispositivos do código de 1916, apenas, com algumas adaptações e correções do texto anterior. Mas, em certas inovações legislativas, cometeu alguns erros que, embora “gritantes”, ainda rogam pela atenção do legislador em reformá-los. Alguns equívocos, sejam propositais ou não, foram cometidos e o presente estudo se atém especificamente aos erros inerentes à codificação da sucessão do companheiro sobrevivente.
Nesse diapasão, duas são as exigências feitas logo no caput do artigo 1.790: “A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável [...]”, ou seja, o companheiro ou companheira sobrevivente apenas fará jus à sucessão dos bens adquiridos por meio oneroso e, ainda assim, desde que adquiridos durante a vigência da união estável.
Independente de qualquer regime de bens adodato da união estável, o caput do art. 1.790 enuncia duas exigências fundamentais para a sucessão mortis causa entre companheiros: que os bens tenham sido adquiridos durante a constância da relação e a título oneroso. Aplicando-se o argumento a contrario sensu, tem-se que: os adquiridos antes da união estável ou por doação inter vivos ou mortis causa não são objetos de herança entre os companheiros. (NADER, 2010, p. 159, grifo do autor).
A primeira crítica deferida ao dispositivo concerne na conclusiva reflexão de que em não havendo a aquisição dos bens de forma onerosa e na vigência da união, mas existindo bens anteriores ou qualquer herança ou doação recebida, na falta de parentes sucessíveis, a herança restará vacante, já que o companheiro não faz jus a ela nesses casos.
Diante desse impasse e, em observância ao inciso IV do mesmo artigo, o legislador estabelece que, na inexistência de outros parentes sucessíveis, o companheiro herdará a totalidade da herança. Herdará a totalidade dos bens adquiridos de forma onerosa na constância da união estável, ficando os demais bens (adquiridos anterior à união, provenientes de doação ou herança) vacantes ou herdará na totalidade dos bens, sendo esse inciso a exceção do caput? Paulo Nader (2010, p. 158, grifo do autor) comenta com propriedade acerca do equívoco do legislador:
À peimeira vista, tais exigências se aplicam a todas as hipóteses, pois o caput comanda as disposições dos vários incisos e, de acordo com a boa técnica legislativa, para as exceções abrem-se parágrafos. E, in casu, o legislador não se valeu desta modalidade de divisão do artigo. Mas, como se depreenderá, na elaboração do artigo 1.790 cometeu-se evidente equívoco, uma vez que a hipótese do inciso IV, na boa exegese sistemática, não se enquadra na restrição do caput.
Talvez o conflito seja resolvido com a redação do artigo 1844 do mesmo diploma legal: “Não sobrevivendo cônjuge ou companheiro, nem parente algum sucessível, ou tendo eles renunciado a herança, esta se devolve ao Município ou ao Distrito Federal, se localizada nas respectivas circunscrições, ou à União, quando situada em território federal.” Em outras palavras, o mesmo Código Civil que veda a sucessão do companheiro relativa aos bens não onerosos e fora da constância da união estável, estabelece que a herança somente restará vacante se não sobreviver ao morto o cônjuge, ou companheiro, nem parente algum sucessível, ou tendo eles renunciado a herança. Eis a possível solução do primeiro impasse, mas inegável a má redação do caput do artigo 1.790, pelo que se conclui que nem sempre poderá haver interpretação literal, já que em alguns casos será impossível afastar da sucessão do companheiro os bens individuais do de cujus. César Fiúza (2008, p. 1020) complementa:
[...] seria absurdo interpretar a norma no sentido de colocar o companheiro em situação inferior à do Estado. Ao se interpretar o art. 1.790 apenas de acordo com seu caput, poderá ocorrer o caso em que o companheiro nada herdará, por não haver patrimônio adquirido a título oneroso durante a união estável. Supondo que haja outro patrimônio adquirido, este seria incorporado aos cofres municipais. Tal situação iria muito além das raias do absurdo.
Outra crítica, ainda inerente ao caput, é que o legislador utiliza os aquestos[2] (bens adquiridos na constância da união) para calcular tanto a meação dos bens, quanto a sucessão. Ora, meação é meação e herança é herança. De fácil conclusão é referida afirmativa, no entanto o legislador insistiu em ignorar o brocardo tão aplicado na sucessão do cônjuge “quem é meeiro, não é herdeiro”. Esclarece Maria Helena Diniz (2010, p.142, grifo nosso), a esse respeito:
É mister, convém repetir, não confundir o direito à herança, que se reconhece ao consorte sobrevivente, com sua meação. A meação é um efeito da comunhão, sendo regida pelas normas alusivas ao direito de família, enquanto o direito sucessório, em regra, independe do regime matrimonial de bens. A meação constitui a parte da universalidade dos bens do casal de que é titular o consorte por direito próprio, de modo que tal meação do cônjuge sobrevivente é intangível; sendo o consorte herdeiro necessário, o de cujus não pode dispor de sua meação sem quaisquer restrições, pois, com isso, privaria o supéstite da hrança. A herança é objeto de um direito, adquirido com o óbito do outro cônjuge, de que o consorte sobrevivente será ou não titular, conforme a ordem de vocação hereditária do art. 1.829 e os preceitos que lhem complementam, dado que poderá ser privado, como qualquer outro herdeiro, com fundamento em indignidade ou deserdação.
Os aquestos são a base de cálculo que definirá a meação e a quota parte do companheiro sobrevivente na sucessão, sendo que o convivente tem sua sucessão feita na meação do morto, o que gera uma grande confusão acerca dos dois institutos. Essa é a crítica de Maria Berenice Dias (2008, p. 174, grifo do autor), pelo que conclui:
[...] parece não haver dúvida de que o direito de concorrência é somente sobre os aquestos. No entanto, ao identificar a fração de cada qual, a lei fala em (CC 1.790 I): quota equivalente à que foi atribuída aos filhos comuns. Ao tratar da concorrência com os filhos do de cujus, refere (CC 1.790 II): metade do que for atribuída a cada um. Quando a concorrência é com os outros parentes sucessíveis, ou seja, os ascendentes e os parentes colaterais até o quarto grau, ao companheiro é assegurado (CC 1.790 III): um terço da herança. Não há como deixar de flagrar a absoluta falta de coerência do texto legal. Apesar de o caput do artigo revelar a intenção de limitar o direito do companheiro aos bens que ajudou a amealhar, todas as referências feitas nos incisos são à herança, pois esta é que serve de base para calcular a quota dos descendentes e ascendentes: a meação do falecido, os seus bens particulares, as doações e os direitos sucessórios que recebeu.
Em outras palavras, a doutrinadora aponta o grande equívoco cometido pelo legislador na redação do artigo, pois ele se contradiz, inciso por inciso, quando estabelece a concorrência do companheiro com os demais legítimos a suceder, já que a herança dos demais (seja descendente, ascendente ou colateral) é calculada sob o montante de todos os bens do de cujus, e não apenas dos aquestos.
Outra discussão inerente ao presente artigo é quanto à concorrência do companheiro sobrevivente com os descendentes do morto. Rege o inciso I que “se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho”, essa é a sucessão do companheiro em concorrência com a filiação comum, ou seja, àqueles descendentes provenientes da união entre os companheiros. Nesse caso, o sobrevivente tem o direito à mesma parte que caberá a seus descendentes, mas somente quanto aos bens adquiridos onerosamente durante a união estável. Ainda, o legislador não se ocupou em resguardar o direito que ao cônjuge é assegurado no caso de filiação comum, qual seja àquele que garante a quarta parte da herança, conforme art. 1.832.
Já quando a filiação for somente do companheiro morto, o inciso II assegura que “se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles”. Nesse caso, assegura Maria Berenice Dias (2008, p.175) que: “Para proceder à partilha, o jeito é multiplicar por dois o número de filhos e somar mais um, que é a fração do parceiro. Assim, se dois forem os filhos, a herança precisa ser dividida por cinco, recebendo cada filho duas partes e o companheiro uma parte.”
E quando a filiação for híbrida? Ou seja, quando houver tanto filhos somente do autor, quanto filhos em comum com a companheira? Nesse caso, o legislador nada falou e não há nada que regulamente o direito de concorrência entre a filiação híbrida e o cônjuge ou o companheiro. A doutrina que predomina afirma que, no caso dos companheiros sobreviventes, há que se fazer um cálculo que componha uma razoabilidade tanto da norma do inciso I, quando do inciso II do art. 1.790, é o que defende Gabriela Tusa (2007, p. 313, grifo do autor apud DIAS, 2010, p. 176):
A posição que vem predominando é a que propõe uma composição entre as duas hipóteses legais, de modo a preservar o direito do sobrevivente sem desrespeitar a norma constitucional que impede discriminação entre filhos (CF 227, §6°). Concorrendo o companheiro sobrevivente com filhos comuns e filhos exclusivos do falecido, se a maioria da prole for comum, o companheiro deve receber, proporcionalmente, quantia que se aproxima da parcela destinada a cada filho. E, se for maior o número de enteados, menor o quinhão do padrasto. Para chegar a uma homogeneidade de resultados são necessários complicadíssimos cálculos algébricos. [...] Esta equação passou a chamar-se ‘Fórmula-Tusa’: média ponderada que aumenta a participação do convivente quanto maior for o número de filhos comuns. No caminho inverso, diminui a participação do convivente na medida em que é maior o número de filhos exclusivos do de cujus. Com isso atende-se, de uma só vez, aos incisos I e II do art. 1.790 do CC.
As críticas são muitas e, ainda em referência ao inciso I, questiona-se acerca da redação do dispositivo, que traz o termo “filhos”, utilizado para designar os parentes em linha reta que descendem ao morto, pois que surge a dúvida se, no caso dos demais graus de descendência (netos, bisnetos...), esses herdeiros se enquadrariam no inciso I ou no inciso III que fala de “outros parentes sucessíveis”. Maria Berenice Dias (2009, p. 175) soluciona a dúvida concluindo que, com o fim de resguardar simetria com a concorrência do cônjuge, o mais coerente é entender que o termo “filhos” equivale ao termo “descendentes”.
A doutrina majoritária atribui críticas a todo o dispositivo do art. 1.790 do CCB, mas é o inciso III o alvo das maiores discussões doutrinárias, tendo em vista que a redação do inciso retrocede expressamente o dispositivo anteriormente aplicado, àquele trazido pela lei n° 8.971/94. A redação do inciso III é a seguinte: “se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança”.
No caso de os “demais parentes” serem da classe ascendente a regra é aceitável, já que guarda relativa simetria à concorrência do cônjuge com essa classe. Entretanto, o artigo também abre espaço para o caso em que o companheiro, em não havendo a classe dos descendentes e ascendentes, terá de concorrer com os colaterais, não preferindo aos irmãos, tios, sobrinhos e primos do morto, ou seja, cabendo ao parceiro sobrevivente, apenas, 1/3 (um terço) da herança. Sílvio de Salvo Venosa (2008, p. 143, grifo nosso) faz um comparativo entre a Lei de 1994 e o atual diploma Civil de 2002:
Na falta de descendentes e de ascendentes, o convivente teria direito à totalidade da herança (art. 2°, III). Ora, o art. 1.790 do corrente Código Civil disciplina a forma pela qual se estabelece o direito hereditário do companheiro ou da companheira, de forma que os dispositivos a esse respeito na Lei n° 8.971 estão revogados. Note que existe um retrocesso na amplitude dos direitos hereditários dos companheiros no Código de 2002, pois, segundo a lei referida, não havendo herdeiros descendentes ou ascendentes do convivente morto, o companheiro sobrevivo recolheria toda a herança. No sistema implantado pelo art. 1.790 do novel Código, havendo colaterais sucessíveis, o convivente apenas terá direito a um terço da herança, por força do inciso III. O companheiro ou companheira somente terá direito à totalidade da herança se não houver parentes sucessíveis. Isso quer dizer que concorrerá na herança, por exemplo, com o vulgarmente denominado tio-avô ou com o primo irmão de seu companheiro falecido, o que, digamos, não é uma posição que denote um alcance social, sociológico e jurídico digno de encômios.
Ocorre que, apesar do silêncio do art. 1.845 do Código Civil, que fala que “São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge”, há que se considerar o companheiro inserido no rol desses herdeiros (os necessários), pois estes são os que não podem ser excluídos da sucessão do morto mediante mera vontade do autor da herança, assim como ocorre com o companheiro sobrevivente.
Ora, ao fazer um comparativo entre o dispositivo 1.790 e os artigos 1.829 e 1.838 do Código Civil, é visível a discriminação do legislador em relação ao companheiro, tendo em vista que o cônjuge sobrevivente está inserido no terceiro lugar da linha sucessória, enquanto o companheiro se encontra em flagrante desvantagem, já que tem sua herança disputada com os colaterais do de cujus. Diante dessa regra fica a indagação: Seria justo que o companheiro que dispensou amor, auxílio, participou das alegrias e tristezas dia a dia com o morto, concorra com um primo distante, ausente do convívio com o autor da herança, ou até mesmo com um tio-avô que há muito não se ouvia falar? Isso revela de forma bem clara a inobservância de vários princípios constitucionais, dentre os quais o princípio da isonomia e da própria razoabilidade.
O artigo 1.790 encerra sua redação posicionando o companheiro na quarta ordem da sucessão hereditária, consoante rege a redação do inciso IV: “não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança”. Finalmente, na falta das três classes “descendentes, ascendentes e colaterais” o convivente sobrevivo herda a totalidade da herança, e não apenas o patrimônio adquirido por meio oneroso na vigência da união estável. Comenta Cézar Fiúza (2008, p. 1025-1026) que: “Não havendo nem descendentes nem ascendentes nem colaterais, o companheiro herda todo o acervo hereditário, e não só o adquirido onerosamente durante a união estável. Esta a interpretação mais correta, em minha opinião”.
A legislação de n° 8.971/1994, em seu §2°, inciso III, inseriu o companheiro no terceiro grau sucessório, portanto, em posição semelhante à do cônjuge no atual Código Civil. Infelizmente o art. 1.790 prefere aos colaterais e estabelece a concorrência desses e do companheiro quando da ausência de descendentes e ascendentes e, apenas se nenhum colateral existir, é que o sobrevivente fará jus ao total do patrimônio. É lamentável a preferência do legislador.
Na ausência das classes dos descendentes e ascendentes, o cônjuge herda a totalidade da herança, independente do regime de bens adotado no casamento e desde que respeite algumas regras (as do art. 1.830). Mas, nada falou o artigo 1.790 quanto a possibilidade de concorrer o cônjuge e o companheiro na sucessão do de cujus, no entanto essa possibilidade é dada na redação do art. 1.830 do Código Civil:
Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente. (BRASIL, 2002, grifo nosso).
Talvez o legislador não se ateve à possibilidade de o companheiro separado de fato há menos de dois anos vir a constituir união estável e, consequentemente, adquirir bens por meio oneroso na constância dessa união. É que nesse caso haverá, em outras palavras, uma confusão sucessória, mas inegável é a concorrência entre cônjuge e companheiro. Nos fala Maria Helena Diniz (2010, p.121):
[...] não está descartada a hipótese de um separado vir a constituir, antes do lapso temporal de dois anos, uma união estável e com seu óbito dar origem a um conflito sucessório, possibilitando, se amealhou bens durante o estado convivencial, a concorrência entre cônjuge e convivente com descendente do de cujus. [...] O art. 1830 trará problemas ao reconhecer o direito sucessório a cônjuge sobrevivente separado de fato há menos de 2 anos[...].
O conflito não é de fácil solução, sendo esse mais um dentre os vários fatores que rogam por alteração legislativa. Esses e outros impasses possíveis de serem encontrados de forma clara no texto civil acabam por negar os princípios constitucionais garantidos a toda e qualquer pessoa, já que, independente da entidade familiar na qual se insira, a todos deve ser garantido o princípio basilar da Constituição vigente: o da dignidade da pessoa humana.
A lei 10.406/2002 (Código Civil), ao diminuir a amplitude dos direitos do companheiro sobrevivente, negou vigência à legislação anterior que regulamentou a norma constitucional programática do artigo 226. Isso significa que uma vez dada a execução de uma norma programática por meio de lei infraconstitucional, não há a possibilidade de o legislador ordinário retroceder por meio de uma lei ordinária, diga-se de igual patamar jurídico, resultando, nesse caso, em retrocesso social e refletindo inconstitucionalidade. Acerca da proibição do retrocesso social fala Giselda Hironaka (2009, p. 457-458, grifo nosso):
O princípio da proibição do retrocesso social pode, segundo J.J. Canotilho, ser descrito como ‘o núcleo essencial dos direitos sociais já realizados e efetivados através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas que, sem a criação de esquema alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática em uma anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade do legislador tem como limite o núcleo essencial já realizado’. [...] se houver regulamentação legal de uma norma constitucional programática que absorva uma conquista social, produz-se uma verdadeira aderência ao texto constitucional, aí se fixando, e remanescendo proibida a regulamentação posterior que vise frustrar aquele direito já conquistado e constitucionalmente garantido.
Interessante é a observação acerca dos diversos artigos contidos no capítulo que regula o casamento, pois o legislador falou, de forma insistente, nas duas figuras: cônjuge e companheiro; casamento e união estável. Apenas resolveu por retroceder no capítulo que rege a sucessão. O porquê? Não prossegue a tese de que o legislador deixou escapar o controle de tremenda inconstitucionalidade, mas, apenas, optou por manter uma sociedade tradicional, na qual o casamento ainda é a lei que garante aos partícipes amplos direitos.
Ao negar ao companheiro sobrevivente o mínimo de direitos, com discriminação visível entre esse e o cônjuge, não se está, somente, reduzindo a união estável ao status de inferioridade, quando comparada ao matrimônio, mas, também, desrespeitando a vontade do ser individual que optou por constituir sua família sob a égide da união sem formalismo. Desrespeita-se a dignidade, a individualidade e a isonomia que a esses companheiros também são inerentes, pois não se dispensa aos iguais tratamento desigual.
A minoria da doutrina que levanta a bandeira da constitucionalidade da redação do artigo 1.790, em defesa do legislador, usa como argumento-base as palavras finais que o art. 226, §3° da Constituição Federal traz em sua redação: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
A orientação adotada pelo legislador procurou ser coerente com o estabelecido no §3° do art. 226 da Carta Magna, que assegura a proteção do Estado à união estável, mas sem equipará-la ao casamento, tanto que determina que a lei facilitará a sua conversão em casamento, e não se converte o que é igual. (DELGADO, 2010, p.149).
Felizmente, esse não é argumento suficiente para usurpar do companheiro sobrevivente os direitos a ele garantidos anteriormente, com a programação do mesmo artigo (226, §3°) pelas Leis de nº 8971/94 e 9278/96. Se o legislador civil agiu com arbitrariedade, ao ferir a regulamentação já operada por leis de igual patamar jurídico, infringindo, assim, o princípio do retrocesso social, o constituinte foi além, pois a última frase do parágrafo terceiro (226, §3°) fere a própria constituição, já que cerceia princípios constitucionais basilares do ordenamento brasileiro.
O legislador constituinte foi pretensioso ao supor que os optantes por um sistema familiar X iriam considerar “bondade” da legislação a conversão do sistema escolhido por eles por outro sistema Y, apenas, porque esse último é mais bem visto pela sociedade. Ora, o instituto da união estável perderia o seu sentido de entidade alternativa ao matrimônio se simplesmente convertessem seu status para o de casado, apenas, porque a constituição assim facilita. Assevera Cristiano Chaves de Farias e Rosenvald (2010, p. 429, grifo nosso):
Outrossim, o exame da disciplina jurídica da união estável- assim como de qualquer outra entidade familiar- há de se realizar, necessariamente, à luz do balizamento constitucional, dependendo, sempre do atendimento ao seu elemento finalístico. Nessa ordem de ideias, toda e qualquer norma infraconstitucional, codificada ou não, deverá garantir a especial proteção aos componentes da união estável, sem discriminação, mas também sem privilégios, sob pena de incompatibilidade com a norma constitucional e consequente invalidade. Isto porque toda e qualquer entidade familiar, seja matrimonializada ou não, merece especial proteção, não justificando tratamento desigual e discriminatório que, em última análise, implicará em negar proteção à pessoa humana- violando a ratio constitucional.
Portanto, agiu o legislador Civil e até mesmo o constituinte com afronta à Constituição. É inconstitucionalidade? Sim. Opção legislativa? Também. Comenta Venosa (2008, p. 136) que “poderia o legislador ter optado em fazer a união estável equivalente ao casamento em matéria sucessória, mas não o fez. [...] o companheiro supérstite nem é equiparado ao cônjuge nem se estabelecem regras claras para sua sucessão”.
O legislador deixou claro seu posicionamento retrógrado diante dos avanços sociais e sua timidez ao optar por não observar a igualdade a todos, sem distinção de sexo, raça, religião ou entidade familiar. Bastaria, apenas, observar a isonomia já estabelecida pelo Art. 5º: “Todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, [...].” Maria Berenice Dias (2008, p. 27, grifo do autor) ressalta a respeito da inconstitucionalidade:
O que precisava ser alterado não o foi e algumas das mudanças introduzidas não atendem à realidade social. Ao contrário, vincou a lei civil injustificáveis distinções entre casamento e união estável, ao não reconhecer os mesmos direitos sucessórios a cônjuges e companheiros. A união estável está contemplada em um único artigo (CC 1.790). O companheiro foi inserido em último lugar na ordem de vocação hereditária, depois dos parentes colaterais, enquanto o cônjuge, além de figurar em terceiro lugar, foi elevado à categoria de herdeiro necessário. Mas há mais. A grande novidade- que foi batizada com o nome de concorrência sucessória- também concedeu aos herdeiros tratamento assimétrico. Desfruta o cônjuge de privilégios em maior extensão. Todas estas odiosas diferenças são de escancarada inconstitucionalidade.
O que se pretende não é sobrecarregar a legislação com regulamentos excessivos, ou garantir aos companheiros maiores direitos aos quais fazem jus. Apenas se roga por uma reforma legislativa, pois se a união estável é uma entidade familiar para efeitos da proteção do Estado, e é inegável ser uma espécie alternativa ao casamento, cabe ao Estado protegê-la e garantir-lhe, assim como a qualquer outra espécie familiar existente ou que possa vir a existir, todos os direitos inerentes ao ser individual, já que é a ele que se visa.