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Sobre os “Estados Unidos do Brasil”: ensaio sobre a origem fictícia do federalismo brasileiro

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Agenda 18/04/2012 às 15:38

A afirmação de José Serra de que este país se chama “Estados Unidos do Brasil” denota equívoco do ponto de vista histórico, na medida em que os “Estados Unidos” só o foram verdadeiramente na experiência constitucional norte-americana, em nada parecendo com os movimentos elitistas que moldaram o federalismo brasileiro.

 Já faz algum tempo, durante entrevista concedida a um canal da televisão aberta, um conhecido estadista (José Serra) cometeu um equívoco quanto à denominação do Estado brasileiro. Segundo Serra (sic), “O Brasil chama Estados Unidos do Brasil; os Estados Unidos chama Estados Unidos da América”. O jornalista a quem incumbia a condução da conversa (Bóris Casoy) interveio incontinenti e corrigiu-o, alegando que o Brasil, na verdade, chamar-se-ia “República Federativa do Brasil”. Visivelmente embaraçado com a ignorância que motivou o aparte do seu interlocutor, Serra reagiu sobressaltado: “Mudou?”. “República Federativa”, confirmou o jornalista com um meneio de cabeça constrangedor. O entrevistado, então, numa tentativa de esconder a falta de humildade que não lhe permitiu reconhecer o próprio erro, disfarçou: “República Federativa, que é parecido. Federação, tá certo?” Numa palavra: a emenda saiu pior do que o soneto.

 Penso, contudo, que o constrangimento experimentado pelo candidato em rede nacional não serve apenas para escarnecimentos. Há, em verdade, uma oportunidade singular para refletir sobre a história do federalismo no Brasil. Pois, se muitos se puseram (não sem razão, ressalto) a lamentar a erronia do estadista, outros tantos teriam dificuldade em explicar a passagem do estádio de “Estados Unidos” para o de “República Federativa” - expressão constante da Constituição de 1988, ora vigente - do ente estatal brasileiro. Ou mesmo o porquê de ele se chamar desta ou daquela maneira. É nesse ponto que convém intervir, não deixando que o achincalhe obscureça aquilo que há de útil nesse episódio: o tema da organização do Estado sob o modelo federal.

 Assim é que, resgatando as lições dos historiadores, chegamos ao século XVIII. Naqueles idos, as monarquias absolutas principiavam as crises que culminariam com o fim do Antigo Regime, isto é, a concentração dos poderes estatais na figura do monarca – a personificação do Estado. Na América do Norte, havia as chamadas Treze Colônias, então submetidas à exploração da metrópole inglesa. A relação que a Inglaterra desenvolveu com a colônia, no entanto, era peculiar: inexistia homogeneidade nas atividades de exploração colonial, de modo que a economia das colônias abrangia desde o sistema de plantation exportador do Sul, mormente alicerçado na escravatura de negros, ao comércio desenvolvido no Norte.

 Essa diversidade de atividades econômicas, com relativa autonomia perante a metrópole, associada a outros fatores de ordem ideológica, a exemplo do ideário liberal-iluminista de oposição à dominação colonial (John Locke e Thomas Paine tiveram influência sobeja nesse sentido), suscitou a aspiração, por parte dos colonos norte-americanos, de independência da Coroa Britânica. Esse inconformismo embrionário agravou-se sobremaneira com as crises desencadeadas pela Lei do Açúcar (1764), pela Lei do Selo (1765) e pela Lei do Chá (1773). Esta última, por sinal, engendrou a revolta que ficou conhecida como Boston Tea Party (1773), por meio da qual os colonos de Boston, cidade da colônia de Massachusetts, expressaram sua insatisfação contra as imposições da metrópole inglesa. Em resposta, o Parlamento britânico editou, em 1774, uma série de leis, ditas Leis Intoleráveis (The Intolerable Acts ou The Coercive Acts), que traziam duras represálias aos colonos. Exemplo disso foi o Boston Port Act, que decretou o fechamento do Porto de Boston, e o The Administration of Justice Act, que autorizava a transferência de foro de julgamento de processos contra funcionários britânicos para outra colônia, ou mesmo para a Grã-Bretanha, subtraindo-os, assim, da jurisdição da colônia de Massachusetts (foi esse ato que, dada sua repercussão jurídica, George Washington denominou de Murder Act, isto é, autorização para o assassinato de americanos).

 Em 4 de julho de 1776, no segundo Congresso da Filadélfia (Second Continental Congress), os delegados das Treze Colônias subscreveram a Declaração de Independência, cuja redação fora capitaneada por Thomas Jefferson. Nessa declaração, reconheciam as Treze Colônias como Estados independentes, firmando que não mais pertenciam ao Império Britânico.

 A fim de assegurar a independência recém-declarada, ainda em 1776, os colonos revolucionários assinaram um tratado chamado “Artigos de Confederação” (Articles of Confederation and Perpetual Union), de modo a estabelecer legalmente que as Treze Colônias, agora treze Estados independentes, unir-se-iam em prol da organização de um exército, elaboração de estratégias, celebração de acordos – medidas assecuratórias da soberania autoproclamada pelos territórios coloniais. Fundaram, dessa maneira, uma confederação. E da união desses Estados, juridicamente pactuada por meio de um tratado de direito internacional, surgiram os Estados Unidos da América.

 Nesse contexto histórico, a confederação significou uma aliança pontual entre os treze Estados independentes, cada qual detentor de sua própria soberania, aqui entendida qual a capacidade de autodeterminar-se, elaborando as próprias leis, com jurisdição própria, sem submissão a nenhum outro poder externo [1]. Por isso se diz em doutrina que os “Artigos de Confederação” foram um tratado de direito internacional, haja vista reunir Estados politicamente independentes, com personalidades de direito externo autônomas. Também por isso, aos Estados signatários do tratado, era garantido o desligamento da confederação, mediante denúncia do tratado – o chamado direito de secessão.

 Não demorou a que a experiência confederativa revelasse-se tormentosa. Sua fragilidade tornou-se perceptível ante os conflitos de interesses entre as colônias, naturalmente acirrados pela inexistência de uma instância única capaz de regulá-los par e par do interesse geral. Sob o regime da confederação, era muito difícil ao Congresso dos Estados Unidos, por exemplo, o estabelecimento de sanções pelo não cumprimento dos acordos congressuais, visto inexistir um tribunal supremo com jurisdição comum sobre todos os Estados. Além disso, a legislação elaborada pelo Congresso somente podia dispor quanto a deveres estatais, jamais dos cidadãos, submetidos que estavam ao poder de império de Estados livres e independentes. Logo, estava claro que a aliança confederativa dos Estados Unidos, explicitada pela convergência de propósitos quanto à defesa da soberania dos antigos territórios coloniais, não seria suficiente para garantir ações coletivas organizadas nem sobrepujar a colisão constante de interesses políticos e econômicos entre os entes confederados.

 Assim, reunidos em 1787 na Convenção da Filadélfia (Grand Convention at Philadelphia), sob o pretexto de revisar os “Artigos de Confederação”, os representantes dos Estados logo se dividiram em dois grupos: de um lado, os antifederalistas, que queriam tão somente a reforma do tratado internacional que os aliançava; de outro, os federalistas, que propunham a formação de um governo novo, alicerçado sob o pálio de uma novel forma de organização do Estado – o Estado federal. Foi essa segunda corrente que veio a prevalecer na Convenção. Com isso, deu-se a proclamação da Constituição dos Estados Unidos da América de 1787.

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 A importância histórica da Constituição dos Estados Unidos da América consiste em ter simbolizado a transição da forma de Estado confederativa para a federativa. A fórmula do Estado Federal, pioneira no constitucionalismo estadunidense, teve o condão de reunir os treze Estados independentes derredor de um poder central comum – a União. A esse ente político novo (União) caberia a regência e a regulamentação dos assuntos que transcendessem as questões locais e dissessem respeito aos Estados como um todo. Os Estados, por sua vez, participariam da formação da vontade federal, galvanizada pela União, mediante o envio de representantes ao Senado.

 É claro que a aceitação do modelo de Estado Federal não foi fácil. Mesmo nos Estados Unidos a resistência ainda era grande, pois, ao fim e ao cabo, estava a se retirar poder dos Estados independentes. Daí por que os estadistas Alexander Hamilton, James Madison e John Jay publicaram “O Federalista” em 1788, uma série de ensaios que tinham por escopo persuadir os Estados a ratificarem a Constituição recém-proclamada, explicitando críticas ao modelo confederativo e celebrando a importância da Constituição para a governabilidade estadunidense.

Em seus artigos, os autores de “O Federalista” explicitam a teoria política a fundamentar o texto constitucional. A filosofia política da época, em especial a exposta por Montesquieu, era avocada pelos adversários da ratificação para fundamentar o questionamento que faziam do texto constitucional proposto. Montesquieu, membro de uma tradição que se inicia em Maquiavel e culmina em Rousseau, apontava para a incompatibilidade entre governos populares e os tempos modernos. A necessidade de manter grandes exércitos e a predominância das preocupações com o bem-estar material faziam das grandes monarquias a forma de governo mais adequada ao espírito dos tempos.

[...]

O desafio teórico enfrentado por “O Federalista” era o de desmentir os dogmas arraigados de uma longa tradição. Tratava-se de demonstrar que o espírito comercial da época não impedia a constituição de governos populares [...] [WEFFORT (Org.), 2001, p. 15].

A pretensão de convencer os Estados a ratificarem a Constituição fica muito nítida na crítica de Hamilton (1818, p. 2), já no introito de “O Federalista”:

AFTER full experience of the insufficiency of the existing Federal Government, you are invited to deliberate upon a new Constitution for the United States of America.

The subject speaks its own importance; comprehending in its consequences, nothing less than the existence of the UNION – the safety and welfare of the parts of which it is composed – the fate of an empire, in many respects the most interesting in the world. [2]

O Estado Federal estadunidense surge, assim, com algumas características bem peculiares. Segundo Dalmo Dallari (2007), são características fundamentais as seguintes:

a) união faz nascer um novo Estado e, concomitantemente, aqueles que aderiram à federação perdem a condição de Estados;

b) a base jurídica do Estado Federal é uma Constituição, não um tratado;

c) na federação não existe direito de secessão;

d) só o Estado Federal tem soberania;

e) no Estado Federal as atribuições da União e as das unidades federadas são fixadas na Constituição, por meio de uma distribuição de competências;

f) a cada esfera de competências se atribui renda própria;

g) o poder político é compartilhado pela União e pelas unidades federadas;

h) os cidadãos do Estado que adere à federação adquirem a cidadania do Estado Federal e perdem a anterior.

O leitor já pode notar, neste ponto, que o Estado Federal é substancialmente inverso ao modelo de Estado Unitário, cuja estruturação organizacional do poder se volta a um modelo competencial centralizador de atribuições administrativas, políticas e judiciais na figura de um único ente representativo do centro de poder. Sua principal característica é não permitir a coexistência do poder central com unidades dotadas de autonomia política (competências próprias). No Estado Unitário, a prestação de serviços e a execução das leis fica sob a responsabilidade do poder central, bem a produção normativa (não há pluralidade de ordenamentos, por conseguinte). O máximo que se admite são mecanismos internos de desconcentração e descentralização, sem que isso signifique, entretanto, autonomia.

Podemos, então, distinguir o Estado Unitário do Estado Federal, uma vez que naquele ocorre uma descentralização administrativa, com dependência frente ao Estado Unitário, enquanto no Estado Federal há independência. [...] Ainda, no Estado Federal há dualidade de poderes políticos, sistemas jurídicos etc., ao passo que no Estado Unitário, quando há, ocorre por meio de legislação inferior (ordinária). (STRECK; MORAIS, 2006, p. 173-174).

O estudo dessas características, malgrado se reportem, em princípio, à experiência constitucional dos Estados Unidos, é relevante para a doutrina mundial, na medida em que as bases do federalismo estadunidense influenciaram fortemente os demais países que o adotaram (México, Alemanha, Suíça, Argentina, Rússia etc).

Mas é importante o leitor notar a existência de singularidades no federalismo. Cada Estado adaptou-o à sua maneira, transmudando-o com maior ou menor grau de inflexão. Não se pode falar, dessa maneira, em um modelo de Estado Federal empedernido, imutável e atemporal, válido para todos os tempos e em todos os lugares.

 Julgando a ADI 2024/DF (BRASIL, 2007, grifo nosso), o STF já teve oportunidade de decidir nesse sentido:

EMENTA: I. Ação direta de inconstitucionalidade: seu cabimento - sedimentado na jurisprudência do Tribunal - para questionar a compatibilidade de emenda constitucional com os limites formais ou materiais impostos pela Constituição ao poder constituinte derivado: precedentes. II. Previdência social (CF, art. 40, § 13, cf. EC 20/98): submissão dos ocupantes exclusivamente de cargos em comissão, assim como os de outro cargo temporário ou de emprego público ao regime geral da previdência social: argüição de inconstitucionalidade do preceito por tendente a abolir a "forma federativa do Estado" (CF, art. 60, § 4º, I): improcedência. 1. A "forma federativa de Estado" - elevado a princípio intangível por todas as Constituições da República - não pode ser conceituada a partir de um modelo ideal e apriorístico de Federação, mas, sim, daquele que o constituinte originário concretamente adotou e, como o adotou, erigiu em limite material imposto às futuras emendas à Constituição; de resto as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege. [...]

Voltando-me agora, de modo mais preciso, para a história da formação do Estado Federal brasileiro, observo que, após a proclamação da independência do País, em 1822, retirando-o do jugo da metrópole portuguesa, as elites que lideraram o processo político, sobretudo ligadas ao recém-aclamado Imperador do Brasil, D. Pedro I, foram fortemente influenciadas pelas ideias constitucionalistas. Sob color de garantir a unidade da Nação, os constitucionalistas do Império notaram a necessidade de instituir um poder central forte, capaz de debelar os poderes regionais dominantes, sem se afastar do movimento constitucionalista da época, intensamente incensado pela doutrina, em face do êxito da Revolução Francesa de 1789. Já em 1823 havia sido elaborada uma Constituição brasileira – que ficou conhecida como Constituição da Mandioca [3]-, mas cujo teor liberal-iluminista limitante dos poderes do Imperador desagradou a Pedro I, que determinou o fechamento da Assembleia Constituinte.

 Foi assim que, abandonando a Constituição da Mandioca, editou-se a Constituição Imperial de 1824, que teve o objetivo de fundir o constitucionalismo europeu, antiabsolutista por excelência, com o absolutismo monárquico pretendido pelos estadistas sequazes do Imperador Pedro I – num paradoxo genuinamente brasileiro. Para tanto, abeberaram-se na obra de Benjamin Constant de La Rebecque (1767-1830), teórico francês cujas ideias tinham grande difusão no período e que defendia concepção peculiar de poderes constitucionais: poder real, poder executivo, poder judiciário.

Os poderes constitucionais são: o poder real, o poder executivo e o poder judiciário.

[...]

Os três poderes políticos, tais como os conhecemos até aqui – o poder executivo, o legislativo e o judiciário -, são três instâncias que devem cooperar, cada qual em sua parte, com o movimento geral. Mas quando essas engrenagens avariadas se cruzam, se entrechocam e se bloqueiam, é necessária uma força para repô-la em seu lugar. Essa força não pode estar numa dessas engrenagens mesmas, pois senão ela lhe serviria para destruir as outras. Tem de estar fora, tem de ser de certo modo neutra, para que sua ação se aplique onde quer que seja necessário aplica-la e para que ela seja preservadora e reparadora sem ser hostil. (CONSTANT, 2005, p. 203-204).

 Os juristas que elaboraram a Constituição de 1824, influenciados por Constant, ao lado dos tradicionais Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, incluíram também o Poder Moderador – este atribuído privativamente ao Imperador do Brasil, na condição de “guardião” da harmonia dos demais Poderes. É o que se observa da leitura dos dispositivos da Constituição Imperial de 1824:

Art. 10. Os Poderes Politicos reconhecidos pela Constituição do Imperio do Brazil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo, e o Poder Judicial.

[...]

Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos. (BRASIL, 1824).

 Essa centralização do Poder na pessoa do Imperador, verdadeiro absolutismo monárquico brasileiro redivivo sob a máscara do constitucionalismo, não se fez sem uma dura resistência por parte de setores da sociedade inclinados às ideias liberais ou apenas insatisfeitos com a miserabilidade a que estava submetida a quase totalidade da população brasileira durante o período regencial. Vários foram os movimentos insurrecionais nesse sentido: Cabanagem (1835-1840), no Pará; Revolução Farroupilha (1835-1845), no Rio Grande do Sul; Sabinada (1837-1838), na Bahia; Balaiada (1838-1841), no Maranhão etc.

 Esse cenário histórico de inconformismo com o Imperador (na época, já era Pedro II e o Brasil experimentava o Segundo Reinado), agravou-se até a culminância em 1889. Nesse ano, deu-se o levante político-militar que derrubou o absolutismo monárquico-imperial brasileiro, instituindo, ato contínuo, a forma de governo republicana e a de Estado federalista. [4] É nesse contexto histórico que se promulga a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891.

 O problema é que o Brasil nunca tivera “Estados” independentes. As províncias nunca foram “Estados”, consoante sugere o nome na tradição estadunidense, nunca tiveram soberania. As províncias eram, isto sim, controladas pelo poder central (o governo do Império). Logo, o nome “Estados Unidos” dado à Constituição republicana de 1891 foi um engodo. A incorporação dessa expressão ao texto deveu-se apenas à influência ingente do constitucionalismo liberal europeu e estadunidense sobre os juristas que a redigiram, gerando o tom ficcional da “união de Estados” que embasou o nascimento da República Velha.

 O anseio dos republicanos brasileiros, no sentido de ver reproduzidas as ideias constitucionalistas alienígenas, era tão grande à época que, logo no princípio do governo provisório presidido pelo Marechal Deodoro da Fonseca, já se baixou o Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889. Colaciono seus três primeiros artigos:

Art. 1º. Fica proclamada provisoriamente e decretada como a fórma de governo da nação brazileira - a República Federativa.

 Art. 2º. As Províncias do Brazil, reunidas pelo laço da federação, ficam constituindo os Estados Unidos do Brazil.

Art. 3º. Cada um desses Estados, no exercício de sua legitima soberania, decretará opportunamente a sua constituição definitiva, elegendo os seus corpos deliberantes e os seus governos locaes. (BRASIL, 1889, grifo nosso).

Como já notou o leitor, o Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889, pode ser considerado uma autêntica “obra literária”. É, com efeito, das mais criativas peças ficcionais já escritas em nosso País. Não guardava, já na época de sua edição, como ainda hoje, nenhuma correspondência com a realidade circundante.

 Mas, se a República Velha se estendeu apenas até 1930, o mesmo não se pode dizer da expressão “Estados Unidos do Brasil”. Esse ranço linguístico fictício permaneceu a nomear as cartas constitucionais brasileiras seguintes: a de 1934 (“Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil”), a de 1937 (“Constituição dos Estados Unidos do Brasil”), a Constituição de 1946 (“Constituição dos Estados Unidos do Brasil”). Só com a Carta de 1967 restou consagrada a expressão “Constituição da República Federativa do Brasil”, reproduzida na Constituição de 1969, e que pode ser vista encimando hoje a vigente Constituição de 1988.

 Toda a exposição histórica e doutrinária a que me reportei ao longo desta investigação teve um propósito muito simples: demonstrar ao leitor que a afirmação de que o Brasil se chama “Estados Unidos do Brasil” denota um equívoco de duas ordens. Por primeiro, como salta aos olhos de qualquer um que tenha em mãos o texto constitucional ora em vigor, é errado atribuir essa nomenclatura ao Estado brasileiro, visto que não reproduzida pelo povo constituinte de 1988 na carta que promulgou. Em segundo lugar, também revela equívoco do ponto de vista histórico, na medida em que os “Estados Unidos” só o foram verdadeiramente na experiência constitucional estadunidense, em nada coincidindo com os movimentos elitistas e excludentes que cuidaram de escrever a historiografia do republicanismo brasileiro “de cima para baixo”, sem a participação de movimentos populares. O Decreto nº 1 de 1889, anteriormente citado, consubstancia a prova maior de como as personagens da história brasileira assumiram um tom ficcional ao tratar da ratificação da Constituição republicana de 1891 após o fim do Segundo Reinado e o rompimento com as balizas monárquicas absolutistas da Constituição Imperial de 1824.

 Sobre o erro de José Serra, penso que passaria despercebido não tivesse sido cometido por alguém com a expressão que o referido candidato goza no cenário político nacional. Já seria surpreendente de per si que um agente político qualquer incorresse num equívoco dessa ordem, porquanto revelaria a falta de leitura da Constituição – defeito gravíssimo em se tratando daquele que, em princípio, tem a incumbência de fazer e executar as leis de conformidade com o texto constitucional. Ocorre que José Serra definitivamente não é um estadista “qualquer”: ostenta um currículo político de envergadura, ora como ex-Governador e ex-Prefeito da cidade de São Paulo – a capital política e economicamente mais importante do País -, ora como candidato à Presidência da República por duas vezes, liderando as coalisões conservadores de direita. Sendo assim, não causa espanto que a confusão mental de Serra tenha ensejado tanta comoção: no contexto de sua biografia, chamar a República Federativa do Brasil de “Estados Unidos” toma proporções grotescas.

Sobre o autor
Rafael Theodor Teodoro

Graduado em Direito pela UFPA. Especialista em Direito Constitucional, Direito Tributário e Ciências Penais pela Universidade Uniderp/Anhanguera. Ex-Advogado. Ex-Analista Judiciário. Atualmente atua como Analista/Assessor de Promotor de Justiça, função que exerce após aprovação em concurso público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEODORO, Rafael Theodor. Sobre os “Estados Unidos do Brasil”: ensaio sobre a origem fictícia do federalismo brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3213, 18 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21548. Acesso em: 23 dez. 2024.

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