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Dignidade da pessoa humana x banalização da tragédia (se questo è un uomo).

De Maquiavel a Hannah Arendt em "Os afogados e os sobreviventes"

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Agenda 29/04/2012 às 09:10

3. A memória da ofensa

Este capítulo da obra de Primo Levi é uma ilustração das ideias defendidas por Hannah Arendt que permeia seu arsenal intelectual. Vejamos:

[...] O opressor continua como tal, tanto quanto a vítima: não são intercambiáveis, o primeiro deve ser punido e execrado (mas, se possível, compreendido), a segunda deve ser lamentada e ajudada; mas ambos, em face da indecência do fato que foi irrevogavelmente cometido, têm necessidade de refúgio e de defesa, indo instintivamente em busca disso. Não todos, mas a maioria; e com frequência por toda a sua vida. [...] (Ibidem, p. 21).

Primeiramente, temos evidenciado a ideia de opressor e vítima que são conceitos caracterizadores do totalitarismo. Segue-se a privação da liberdade e do direito à vida – em relação aos dominados – que, antes de tê-la execrada pelo regime, há um esfacelamento da dignidade e direitos humanos, a fim de que a morte seja anônima e que não seja geradora de culpa ou remorso, já que se trata de anomalias da sociedade que tem que deixar de existir para não contaminar os, verdadeiramente, integrantes da sociedade, nesse caso, os arianos adeptos do hitlerismo.

Além dessas questões, há também intrínseca à abordagem de Hannah Arendt, uma constatação que merece ser destacada: o fato de que o verdadeiro horror do totalitarismo estar concentrado na banalidade e profundo servilismo de seus agentes que executam fidedignamente suas funções, seguem as ordens estritamente sem reservas ou ponderações sem se apoiar em nenhuma explicação psicológica nem tampouco em qualquer vontade política vertiginosa:

[...] Expressas com formulações diversas, e com maior ou menor insolência segundo o nível mental e cultural de quem fala, elas terminam por dizer substancialmente a mesma coisa: fiz porque me mandaram; outros (meus superiores) cometeram ações piores que as minhas; dada a educação que recebi e dado o ambiente em que vivi, não podia fazer outra coisa; se não o tivesse feito, outro agiria com maior dureza em meu lugar. [...] (Ibidem, p. 21-22).

Finalizando o estudo desse capítulo, não poderíamos fazê-lo nos eximindo de mostrar a postura de um estado totalitário que se coaduna à temática abordada por Hannah Arendt:

A pressão que um moderno Estado totalitário pode exercer sobre o indivíduo é tremenda. Suas armas são substancialmente três: a propaganda direta ou dissimulada pela educação, pela instrução, pela cultura popular; o impedimento oposto ao pluralismo das informações; o terror. (Ibidem, p. 24).


4. A zona cinzenta

Preliminarmente, neste capítulo, é possível dialogar com dois pensadores políticos: Tocqueville e Os Federalistas. Sobre aquele a questão da possibilidade de uma unificação da minoria, este a questão das repúblicas e das facções. Vejamos, então, o extrato que segue:

[...] para a direção do campo, o recém-chegado era um adversário por definição, qualquer que fosse a etiqueta que lhe tivesse sido afixada, e devia ser demolido imediatamente para que não se tornasse um exemplo ou um germe de resistência organizada. (Ibidem, p. 33).

Neste fragmento, podemos notar a atitude que a direção do campo tomava em relação aos recém-chegados. Estes deveriam ser demolidos para servir de exemplo aos demais, uma vez que (alguns) ao chegarem eram tomados por espírito revolucionário – não estavam ali por vontade própria. Segundo Tocqueville, uma minoria organizada torna-se maioria. A direção do campo temia este acontecimento e tratava de banir a possibilidade de se pensar dessa forma. Outra questão é, na possibilidade de uma organização, corria-se o risco de um dos diferentes interesses ou opiniões presentes naquela formação organizacional vir a controlar o poder com vistas à promoção única e exclusiva de seus objetivos. Uma realidade que devia ser evitada e por meio do terror, da execração. Antes que se rebelem é melhor que morram.

Retomando o conceito de totalitarismo, voltamos a dialogar com Hannah Arendt quando esta versa a respeito da dignidade humana que deve ser respeitada, uma vez que é um atributo do ser homem. Vejamos o relato seguinte:

[...] ao invés de lhe pegar a mão, tranquiliza-lo, ensinar-lhe o caminho, se arroja sobre você gritando numa língua desconhecida e lhe golpeia o rosto. Ele quer domá-lo, quer apagar a centelha de dignidade que você talvez ainda conserve e que ele perdeu. Mas você estará perdido se esta sua dignidade o levar a reagir: esta é uma lei não escrita, mas férrea, o zurückschlagen [3], a resposta na mesma moeda, é uma transgressão intolerável, que só pode ocorrer a um “novato”. (Ibidem, p. 35).

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Aqui, se configura claramente a perda dos direitos humanos, da dignidade da pessoa humana, posto que não se possa reagir frente a uma atitude como a que fora apresentada. Trata-se de um atentado contra a dignidade humana, a priori, porém, na ótica hitlerista não se está atentando contra esse princípio, já que não se trata de ser humano e, em não sendo, não possui dignidade. O que de fato acontece é uma catarses da sociedade, uma filtração: o que é imundo é prejudicial, devendo, pois, ser eliminado.

Na sequência do que fora exposto acima, temos uma aplicação de punição típica em Maquiavel: “[...] Quem a comete deve tornar-se um exemplo: outros funcionários acorrem em defesa da ordem ameaçada, e o culpado é surrado com raiva e método, até ser domado ou morto. [...]” (Ibidem). Em outras palavras, um sistema só se legitima pela ordem e esta, para ser mantida, deve se dá mesmo em função da aplicabilidade das penas aos subordinados como surras e execuções públicas para que os outros possam receber a mensagem subliminar daquela atitude: não tente se rebelar, pois o castigo e a morte são iminentes.

Vejamos a seguir outra medida que, segundo Maquiavel, pode ser aplicada (e deve) para que sejam evitados dissabores na administração de um órgão – no caso de Maquiavel o termo próprio seria Estado –:

[...] os ex-inimigos, são indignos de confiança por essência: traíram uma vez e podem trair outra. Não basta relegá-los às tarefas marginais; o modo melhor de comprometê-los é carregá-los de crimes, manchá-los de sangue, expô-los tanto quanto possível: assim contraem com os mandantes o vínculo da cumplicidade e não mais podem voltar atrás. [...] (Ibidem, p. 37).

Para o estudioso, os inimigos são como serpentes, venenosos e devem estar bem próximos de você e não distantes para que você possa medir seus passos friamente, calcular cada movimento, captar o calor com pensamento bífido e depois retirar-lhes toda a peçonha para que, quando estiverem exauridos, terem suas cabeças esmagadas, servindo de testemunho (ainda que secreto) de que és afortunado e virtuoso.

Pouco mais adiante nos reencontramos com Touraine quando é retomado o assunto das organizações de defesa no trecho que segue:

[...] Alguns entre eles – por exemplo, os três citados – também eram membros de organizações secretas de defesa e, por isto, o poder de que dispunham graças a suas funções era contrabalançado pelo perigo extremo que corriam, na qualidade de “resistentes” e de detentores de segredos. [...] (Ibidem, p. 39)

Vemos aqui uma característica peculiar das ideias de Touraine que é uma resposta defensiva a questões impostas aos subordinados. Segundo o pensador, o ideal é que se haja pró - ativamente e não defensivamente, uma vez que esta forma de agir é mais passiva do que ativa e só se executa em resposta a estímulos, porém, ponderando que esses indivíduos estão encarcerados e monitorados a todo o tempo, fazer parte de uma organização secreta é um desafio gigantesco em virtude do contexto em que vivem e já é algo que se pensa se transformado em ação.

Voltemos agora à realidade dos Lager descrita por Primo Levi que se angula com a temática hobbesiana [4]:

[...] ao cabo de poucas semanas ou meses, as privações a que foram submetidos os conduziram a uma condição de pura sobrevivência, de luta cotidiana contra a fome, o frio, a fadiga, o espancamento, condição na qual o espaço para as escolhas (especialmente para as escolhas morais) estava reduzido a nada; [...]

(Ibidem, p. 42)

Nesse contexto se observa a luta pela sobrevivência num estado de guerra – entendemos por guerra privações, agonias, aflições – que é apontado por Hobbes em seus estudos políticos. O que importa nesse contexto é garantir a vida, se não pelo Estado, mas por força própria – caso a possua. Nos Lager os judeus e os demais reclusos voltam ao estado de natureza de todos contra todos, pois se veem limitados de agir. Esse fragmento dialoga também com Hannah Arendt, visto que exposto a essas condições o homem (indivíduo) é privado do básico da vida, fato esse que é repudiado pela estudiosa.

A situação não era totalmente boa para os alemães adeptos do modelo hitleriano que faziam parte de esquadrões especiais. Eles também eram provados. Não faziam parte do regime por vontade própria: eram condicionados a agirem de acordo com as decisões do líder maior. Vejamos o fragmento:

[...] Em Auschwitz se sucederam doze esquadrões; cada qual atuava alguns meses, em seguida era eliminado, sempre com um artifício diferente para prevenir eventuais resistências, e o esquadrão sucessivo, como iniciação, queimava os cadáveres dos predecessores. (Ibidem, p. 43)

Essa medida imposta por Hitler muito se assemelha a Maquiavel (claro que extremada pelo totalitarismo) pelo fato de ser executada para que se evitem resistências e outras manifestações do tipo, visando à proteção do poder e seu inalcance.

Outro recorte que a nosso ver não pode passar despercebido e que ilustra muito bem a ideia de banalização do mal proposta por Hannah Arendt é o expresso a seguir:

“[...] os judeus é que deveriam pôr nos fornos os judeus, devia-se demonstrar que os judeus, sub-raça, sub-homens, se dobram a qualquer humilhação, inclusive a destruição de si mesmos.” (Ibidem, p. 44). O próprio compatriota devia executar outros de sua estirpe. Uma atitude doentia de disseminação do terror. Algo que transcende a capacidade humana de abstração e percepção e que é observado pelos diligentes, pelas autoridades como uma cena trivial como alimentar os pombos ou colher uma fruta num pomar. Como bem retrata o trecho seguinte: “[...] a morte é seu ofício de todos os momentos, a morte é um hábito, porque, precisamente, “ou se enlouquece no primeiro dia, ou então se acostuma” [...]” (Ibidem, p. 47).

Pouco mais adiante nos deparamos novamente com Maquiavel na descrição de Chaim Rumkowski [5] – presidente do gueto nazista de Lodz –:

[...] ele passou a ver-se na condição de monarca absoluto, mas iluminado, e certamente foi estimulado nesse caminho por seus patrões alemães, que naturalmente brincavam com ele, mas estimavam seus talentos de bom administrador e de homem da ordem. (Ibidem, p. 53).

Vê-se aqui uma figura aclamada pelos súditos, a solução para os problemas da época. Os súditos o admiram, estimavam seus talentos, o observam como bom administrador, como homem da ordem, exatamente como determina Maquiavel ao ilustrar a figura do monarca (príncipe).


5. A vergonha

Neste capítulo, podemos depreender de sua leitura, a princípio, uma ilustração – ainda que simplista – que se coaduna à temática gramsciana [6] que segue:

[...] A meu ver, o sentimento de vergonha ou de culpa que coincidia com a liberdade reconquistada era fortemente complexo: continha em si elementos diferentes, e em proporções diferentes para cada indivíduo singular. Deve-se recordar que cada um de nós, seja objetivamente, seja subjetivamente, viveu o Lager a seu modo. [...] (Ibidem, p. 65).

Neste ponto, o autor chama a atenção ao fato de se compreender cada indivíduo em sua individualidade e não apenas como um grupo de indivíduos recém-libertos de campos de concentração. Se não for desta maneira perder-se-á toda uma gama de sensações, posto que cada um vivesse os Lager de modo singular. Da mesma forma, Antonio Gramsci ressalta que não se deve analisar uma classe como algo fechado, mas sim cada componente (em sua singularidade) que integra esse grupo.

Analisemos, agora, outro texto relevante na compreensão de Hannah Arendt e que bem retrata a temática da autora:

[...] o suicídio é próprio do homem e não do animal, isto é, trata-se de um ato meditado, uma escolha não instintiva, não natural; e no Lager havia poucas oportunidades de escolher, vivia-se justamente como os animais subjugados, que às vezes se deixavam morrer, mas não se matam. [...] “havia mais em que pensar”, como se diz comumente. (Ibidem, p. 66)

O suicídio não era comum nos Lager. Suicídio é próprio do homem por ser meditado, pensado, planejado não é próprio de animais ou de seres inferiores aos próprios animais. Depreende-se aqui, a ideia de animalização do ser humano, que por ser privado do direito à vida, à liberdade, são comparados a animais e a coisas. E como animais que eram (na ótica hitleriana) se comportavam como tal e sua rotina diária bem expressava essa ideia: “[...] O dia estava ocupado: tinha-se de pensar em satisfazer a fome, em evitar de algum modo o cansaço e o frio, em escapar dos golpes; justamente pela iminência constante da morte, faltava o tempo para concentrar-se na ideia da morte. [...]” (Ibidem). Nesse trecho, é expresso o pensamento de Hobbes, em que, no estado de natureza, a morte é iminente ao homem, cabendo a este a luta pela sobrevivência. Assim, o homem se assemelha aos animais que têm suas vidas resumidas em lutar pela garantia de suas vidas, vencendo a fome, o cansaço, o frio ou calor, etc. e que vença o mais forte.


6. Comunicar

Analisando este capítulo, voltamos a dialogar novamente com Hannah Arendt, no que tange ao totalitarismo e a perda do básico da vida que são os valores adquiridos com o tempo:

[...] Martelara-se na cabeça dos jovens nazistas que no mundo existia uma só civilização, a alemã; todas as outras, presentes ou passadas, só eram aceitáveis na medida em que contivessem alguns elementos germânicos. Por isso, quem não compreendia nem falava o alemão era um bárbaro por definição; se se obstinava em tentar expressar-se em sua língua, ou melhor, em sua não língua, era preciso fazê-lo calar-se a sopapos e repô-lo em seu lugar, a puxar, a carregar, a empurrar, porque não era um Mensch, um ser humano. [...] (Ibidem, p. 80)

O totalitarismo – para que fosse efetivo – deveria ser introjetado nas mentes dos subordinados, via terror, propaganda, lavagem cerebral [7], enfim, de forma que a ideologia fizesse parte da vida de cada um. O público mais almejado e fundamental para essa disseminação eram os jovens, já que suas mentes estão em desenvolvimento e expansão. Nesse ínterim, a ideia de liberdade já não existe – no sentido de juízo de valor –, uma vez que não importa quem seja o indivíduo, mas sim ser igual. Há um apelo à igualitarização, o que se coaduna também com Tocqueville. Não importa a liberdade, o que interessa é ser alemão, se ariano, superior. O valor maior é atribuído mais à igualdade do que à liberdade.

Ainda se valendo da temática liberdade, vejamos um fragmento que muito se angula aos estudos de Hannah Arendt:

[...] Tivemos a oportunidade de entender bem, então, que do grande continente da liberdade a liberdade de comunicar é uma província importante. [...] Mas a perda não se dá somente em nível individual: nos países e nas épocas em que se impede a comunicação, murcham todas as outras liberdades; morre por média a discussão, grassa a ignorância das opiniões alheias, triunfam as opiniões impostas; [...] (Ibidem, p. 90).

Segundo a estudiosa, a privação do direito de pensar repercute no direito de opinar, que por sua vez, repercute no direito de agir, levando a não ação, i.e. a privação do direito de se comunicar anula todas as outras liberdades. Em outras palavras, as outras liberdades não tem sentido na ausência da liberdade de comunicação.

O estado totalitário hitleriano é marcado pela presença se uma sangrenta ditadura que se dissemina via censura e que Primo Levi chama a atenção no fragmento que segue que reforça a tese de Hannah Arendt: “[...] A intolerância tende a censurar, e a censura aumenta a ignorância das razões alheias e, portanto, a própria intolerância: é um círculo vicioso rígido, difícil de romper.” (Ibidem). Ou seja, a intolerância censura, esta amplia a ignorância, ampliando, por conseguinte, a própria intolerância. Assim sendo, a censura é o veículo que corrobora a privação do direito de comunicação.

Sobre o autor
Horácio dos Santos Ribeiro Pires

Bacharel em Direito pela UNIFLU - Campus I - FDC - Faculdade de Filosofia de Campos. Mestrando em Cognição e Linguagem pela UENF - Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Graduado em Letras pela FAFIC - Faculdade de Filosofia de Campos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIRES, Horácio Santos Ribeiro. Dignidade da pessoa humana x banalização da tragédia (se questo è un uomo).: De Maquiavel a Hannah Arendt em "Os afogados e os sobreviventes". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3224, 29 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21626. Acesso em: 22 dez. 2024.

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