Atuando na seara do direito securitário praticamente desde a minha formação, fato este ocorrido há mais de uma década, tive a oportunidade de acompanhar de perto as inúmeras alterações que desde então vieram sendo introduzidas na legislação aplicável, na jurisprudência dos Tribunais e, principalmente, na postura adotada por parte significativa das seguradoras quando se veem diante da obrigação contratual de indenizar.
Assim, no rastro da matéria que foi recentemente veiculada pelo E. Superior Tribunal de Justiça sob o título “Suicídio e embriaguez não geram exclusão automática do direito à cobertura do seguro”[1], é certo que “a história sempre começa mais ou menos do mesmo jeito: tudo vai indo bem, até que chega a hora de a seguradora cumprir o combinado. Diante de certas circunstâncias que envolveram o sinistro, a empresa se recusa a pagar, e então o beneficiário do seguro vai à Justiça.”
De saída, já ouso afirmar que a negativa injusta ao pagamento de indenização pelas seguradoras há muito parece ter deixado de ser uma exceção. Aliás, pelo andar da carruagem, tem-se a impressão até de que essa conduta já faz parte de uma estratégia maior visando única e exclusivamente privilegiar seus cofres, mesmo que isso importe em detrimento da pessoa humana cuja proteção encontra-se devida e sabidamente consagrada no Título I da Constituição Federal[2].
E, convenhamos, não é necessário ser um gênio da administração ou um exímio financista para verificar que esse assombroso quadro, se realmente resultar de uma estratégia das Cias. Seguradoras, é deveras interessante, claro, se analisado isoladamente sob a ótica dos números e lucros.
Ora, quantas negativas de pagamento de indenização aos segurados e/ou beneficiários efetivamente acabam no Judiciário? Quantos segurados e/ou beneficiários que tiveram os pagamentos das indenizações negados injustamente pelas Cias. Seguradoras acabam deixando fluir in albis o apertado prazo prescricional de 1 (um) ano previsto pelo artigo 205, § 1º, inciso II, da Lei Substantiva Civil? Contando com a morosidade do Judiciário e com a extrema necessidade de muitos segurados e/ou beneficiários, quantas das ações judiciais visando o pagamento de indenização securitária não terminam em acordo no qual a Cia. Seguradora acaba desembolsando quantia inferior à que foi contratada? E por aí vai.
Acredito piamente que, se a negativa injusta ao pagamento da indenização securitária realmente deixou de ser uma exceção, como colocado no presente artigo, tem-se que estamos diante de uma estranha figura que vai de encontro ao que prega a Magna Carta, privilegiando o patrimônio (das Cias. Seguradoras) em total detrimento daquilo que deveria ser o eixo sobre o qual gira todo o ordenamento jurídico brasileiro, ou seja, a tutela da pessoa e a dignidade humana do segurado e/ou do beneficiário.
Em outras palavras, tem-se uma repreensível e equivocada subordinação dos valores existenciais às relações patrimoniais.
Aliás, excelente oportunidade para relembrar as sábias palavras da professora Maria Cristina de Cicco[3], na obra organizada pelo professor Gustavo Tepedino, sob o título “Direito Civil Contemporâneo: novos paradigmas à luz da legalidade constitucional”[4], senão vejamos: “O caminho em direção à subordinação das relações patrimoniais aos valores existenciais é longo e marcado por avanços e retrocessos. Até que o mercado deixe de ser o ponto de observação principal do direito comunitário, a pessoa não conquistará jamais a necessária e irrepreensível centralidade que o ordenamento deve reconhecer e garantir com grau superior a todas as outras leis.”
Talvez o exemplo mais recente desse avanço mencionado pela doutrinadora italiana seja o Código Civil de 2003, já que trouxe novo fôlego para discussão do “jus civile” ao possuir como principais pilares a eticidade, a socialidade e a operabilidade. Socialidade essa bem definida por Miguel Reale como sendo o princípio que dá ao novo Código Civil um sentido social, “fazendo prevalecer os valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundante da pessoa humana.”[5].
Por sua vez, se já não bastasse a tal inversão de valores mencionada nas linhas anteriores, ainda se pode afirmar que a atual postura adotada pelas Cias. Seguradoras afrontam feroz e diretamente diversos dispositivos legais infraconstitucionais que por razões óbvias se encontram sob o manto da boa-fé, com destaque para o próprio Código Civil, artigos 422 e 765 e, legislação consumerista, artigos 4º, III, e 51, IV.
Especificamente sobre a boa-fé no contrato de seguro, faz-se necessário transcrever na íntegra texto do artigo 765 da Legislação Substantiva Civil, já que, mantendo a mesma orientação do código anterior, assim reza:
“O segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes.”
Sobre a boa-fé no contrato de seguro, já explanava Serpa Lopes[6] nos idos de sessenta, que: “Se a noção de boa-fé constitui, por assim dizer, o próprio sangue que irriga o organismo jurídico, do mesmo modo que a ação do sangue em nosso corpo, a boa-fé, no corpo do direito aflui mais intensamente num determinado ponto ou numa determinada região do que em outro. Assim, se pela noção de boa-fé a posse toma outro aspecto e efeitos, se pela boa-fé o casamento nulo converte-se em putativo, produzindo todos os efeitos como se fora válido, se a boa-fé é elemento importante em terreno contratual, ela assume ainda maior realce no que tange ao contrato de seguros. O contrato de seguros é um negócio jurídico que consiste nas declarações do segurado a respeito do seu conteúdo, da proporção dos riscos e das circunstâncias que possam influir na intensidade de sua gravidade. Ao segurado, portanto, se impõe um comportamento de absoluta franqueza e lealdade, o que justifica a série de sanções contra ele cominadas, no caso de um proceder contrário a sua boa-fé, em circunstâncias em que o segurador não pode se alongar em pesquisas, fiando-se só no dito do segurado.”
Aos olhos deste causídico a frase de fechamento do raciocínio do mestre Serpa Lopes seja talvez um dos exemplos mais gritantes da mudança de postura das seguradoras, vez que naquela época a preocupação do direito parecia repousar mais na boa-fé do segurado, com relação a veracidade das informações prestadas, do que a propriamente para a boa-fé das seguradoras com relação as negativas de pagamento das indenizações, o que certamente só deveria ocorrer em raríssimas exceções.
Referência no estudo do direito securitário, Pedro Alvim leciona que a “expressão boa-fé integra o vocabulário comum. É usada até mesmo pelas pessoas sem cultura. Quando se diz que fulano esta de boa-fé, todos entendem perfeitamente a frase. Em sentido amplo, significa honestidade, lealdade, probidade. Expressa intenção pura, isenta de dolo ou engano.”[7]
Pode-se afirmar ainda que essas reiteradas negativas injustas ao pagamento da indenização securitária, ao menos da forma acintosa que vem sendo praticada pelas Cias. Seguradoras, implica na quebra da boa-fé objetiva, bem retratada pela ilustre prof. Teresa Negreiros[8] como sendo a “consagração expressa do princípio segundo o qual as relações contratuais devem se pautar não apenas pela autonomia e liberdade das partes, mas igualmente pela lealdade e confiança.”
Concluindo, a injusta recusa no pagamento da indenização securitária pela Cia. Seguradora implica manifestamente na quebra da boa-fé objetiva do contrato (violação positiva), cujo resultado, segundo lição do renomado professor Flávio Tartuce[9] é a responsabilização civil independente de culpa. Ou seja, além do pagamento da indenização contratada, a Cia. Seguradora ainda deverá ser condenada ao pagamento dos Danos Morais e Materiais suportados pelo segurado e/ou beneficiário.
Notas
[1]http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=105077, 18/03/2012.
[2] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III - a dignidade da pessoa humana;
[3] Docente da Faculdade de Direito da Universidade de Camerino, Itália.
[4] TEPEDINO, Gustavo. “Direito Civil Contemporâneo: novos problemas a luz da legalidade constitucional”. Atlas, São Paulo: 2008, pág. 107.
[5] REALE, Miguel. “O projeto do novo código civil”, pág. 7. apud CASSETARI, CHRISTIANO. “Direito Civil – Direito Patrimonial Direito Existencial. “A função social da obrigação: uma aproximação na perspectiva civil constitucional”. Método: São Paulo, 2006, pág. 178.
[6] LOPES, Serpa. Curso de Direito Civil, v. IV, nº 1822, p. 375.
[7] ALVIM, Pedro. O Seguro e o Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007, pág. 43.
[8] BODIN, Maria Celina. Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de janeiro: Renovar, 2006, pág. 222.
[9] TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos em Espécie. Vol. III. 6ª Ed.. Método. São Paulo: 2011, pág. 120.