1. RESUMO
A presente pesquisa tem como objeto o estudo da obrigatoriedade do quociente eleitoral por parte das agremiações partidárias como requisito para a obtenção de vagas no sistema proporcional e como isso afeta a isonomia dos votos. Ou seja, o ponto nevrálgico da discussão será responder: até que ponto a exigência do quociente eleitoral, tratada por alguns estudiosos como verdadeira “cláusula de barreira”, tem o condão de violar o princípio constitucional da igualdade do voto?
Para a efetiva verificação desse aspecto axiológico é imperioso que se estude ambos os sistemas eleitorais existentes no Brasil, quais sejam, o proporcional e também o majoritário. E, a partir das premissas assentadas, observar quais os entraves que obstaculizam uma maior expressividade do voto, notadamente no sistema proporcional. Ou seja, por quais razões a exigência de um quociente eleitoral mitiga o valor do voto e relativiza o potencial constitucional da escolha do cidadão?
Sobre esse aspecto, forçoso concluir que a cláusula de barreira, marca suprema do sistema proporcional, será eleita, nessa pesquisa, como uma das causas violadoras da efetividade do voto, até porque, o voto do eleitor, cujo partido não logrou o quociente eleitoral, em nada contribuirá para que o seu candidato seja eleito, ou seja, restaria sem valor (eis a resposta do problema central); assim, nos termos da Constituição de 1988, um voto não teria “valor igual para todos”. Veja que, isso dá ao quociente eleitoral a permissão de supervalorizar o voto de um eleitor, em detrimento do voto de outro.
Ainda sobre a abrangência do princípio one man, one vote, Gilmar Mendes esclarece que “a igualdade de votos abrange não só o valor numérico, mas também a igualdade de valor quanto ao resultado. Essa igualdade de valor quanto ao resultado é observada quando cada voto é contemplado na distribuição dos mandatos”[1].
2. INTRODUÇÃO
Dentre os princípios fundamentais do Direito Eleitoral brasileiro destacam-se a democracia partidária, o sufrágio universal e, sobretudo, o princípio da igualdade do voto, como reflexo do ideal republicano.
A Constituição Federal em seu artigo 14, caput, aduz que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos”. Nessa linha, percebe-se que o princípio da igualdade, que aparece também logo na parte exordial do artigo 5º, espraia uma influência sem precedentes em todo o ordenamento jurídico oferecendo ao voto do cidadão um peso igual nas eleições partidárias.
Desse modo, tem-se que a efetivação do princípio do voto com valor igual para todos deve ser considerada sob dois influxos, de um lado se observa a não discriminação dos eleitores, do outro, o peso que cada voto terá na distribuição final dos mandatos.
Quanto ao primeiro pressuposto, claro está que o Brasil observa com escorreita precisão, a propósito do caráter inclusivo dos votantes, abrangendo analfabetos e menores de 18 anos, a partir dos 16. Ao revés, quando o assunto é a igualdade do voto quanto ao resultado, a situação assume um viés um tanto perigoso. Eis que, no sistema proporcional, a exigência do quociente eleitoral como requisito para a disputa de uma cadeira no parlamento, relativiza o voto, colocando em cheque, o pluralismo político e a igualdade de chances.
Nessa perspectiva, o tema do presente trabalho gravitará em torno da discussão sobre a obrigatoriedade do quociente eleitoral como requisito para a obtenção de vagas no sistema proporcional e a relativização da efetividade do voto.
Nesse caso, embora o sistema proporcional seja, em linhas gerais, o mais justo, no que respeita ao resultado, a “cláusula de barreira”, no entanto, ao prever um índice mínimo de votos a ser alcançado pelo partido político a fim de que seja contemplado com alguma vaga no Parlamento, fere frontalmente o princípio da igualdade do voto. Até porque, os votos direcionados a candidatos cuja agremiação não lograr o quociente eleitoral, não são para nada computados.
Destarte, o tema em questão cinge-se duma relevância política e social sem precedentes, vez que pretende debater, no contexto do sistema proporcional, o valor efetivo do voto, máxime em tempos em que se ouvem reclamos por uma substancial reforma político-partidária.
Desse modo, dado o caráter relevante do assunto, há boa contribuição literária à disposição, e, por outro lado, os Tribunais Superiores sempre tem enfrentado a questão com absoluta propriedade. Nessa perspectiva, a pesquisa torna-se plenamente possível de ser realizada.
3. DESENVOLVIMENTO
A implementação do princípio constitucional que versa sobre o voto com valor igual para todos está intimamente ligado ao sistema eleitoral adotado. Ou seja, dependendo do sistema eleitoral o voto poder ter maior ou menor peso.
O sistema eleitoral, nada mais é que um conjunto de técnicas legais que tem como escopo organizar a representação popular, com base nas circunscrições eleitorais. É um complexo de procedimentos empregados na realização das eleições, ensejando a representação do povo no poder estatal.
No contexto do Direito Eleitoral, existem três sistemas eleitorais: o proporcional, o majoritário e o misto. Lembrando que, não existe sistema idealmente perfeito, entretanto há aquele que mais se adéqua às realidades sociais e históricas de determinado país. No caso do Brasil, a Constituição Federal consagrou apenas dois sistemas, quais sejam, o majoritário e o proporcional.
No sistema majoritário o candidato vencedor é aquele que obtiver a maior parte dos votos válidos, considerando a maioria absoluta e relativa. Essa maioria absoluta diz respeito à metade dos votos dos integrantes do corpo eleitoral mais um voto. Já a maioria relativa ou simples impõe que será eleito o candidato que alcançar o maior número de votos em relação aos outros candidatos.
O Brasil adota o sistema eleitoral majoritário para a escolha dos cargos executivos (Presidente da República, Governador e Prefeito) e, ainda, para o cargo de Senador.
Por outro lado, o sistema proporcional, que é adotado para as eleições das Casas Legislativas – Câmara de Deputados, Assembléias Legislativas e Câmara de Vereadores – “assegura aos diferentes partidos políticos no Parlamento uma representação correspondente à força numérica de cada um. Ele objetiva fazer do Parlamento um espelho tão fiel quanto possível do colorido partidário nacional[2]”.
Esse sistema nasceu na Europa. “Atribui-se ao advogado londrino Thomas Hare o mérito de sua introdução nos domínios eleitorais. Mas foi aplicado pela primeira vez na Bélgica, no ano de 1899 (...)[3]”.
Ocorre que, ao enxergar ambos os sistemas eleitorais sob o influxo da efetividade do voto, nota-se que, tanto nos sistema majoritário quanto no sistema proporcional, o voto apresenta-se com um peso distinto. Ou seja, nos dois casos há vantagens e problemas em termos de igualdade de votos. Em que pese alguns problemas serem maiores, a propósito da exigência de quociente eleitoral no sistema proporcional.
O problema do sistema majoritário é que o valor do resultado é meio desigual, vez que o candidato que receber menor votação nas urnas não logra qualquer resultado.
Sobre esse aspecto, esclarecedor é o seguinte excerto, da lavra de Gilmar Mendes:
A adoção de um sistema majoritário (eleição de distritos) para a eleição parlamentar leva à eleição daquele que obtiver maioria em um dado distrito ou circunscrição eleitoral. Os votos atribuídos aos candidatos minoritários não serão, por isso, contemplados, o que acaba por afetar a igualdade do valor do voto quanto ao resultado. A adoção do modelo majoritário puro para as eleições parlamentares pode gerar um paradoxo no qual o partido que reúne a maioria dos sufrágios pode não obter a maioria das cadeiras[4].
Já nos meandros do sistema proporcional, quando o assunto é não-mitigação do valor do voto, o assunto atinge um contorno muito mais pejorativo. Eis que, embora o sistema proporcional permita uma distribuição de vagas de acordo com o número de votos obtidos pelos candidatos ou agremiação partidária, a exigência do quociente eleitoral pelo partido político, como pressuposto para obtenção de uma cadeira, malfere por completo o valor constitucional atribuído ao voto do cidadão. O artigo 109, § 2º, do Código Eleitoral aduz que “só poderão concorrer à distribuição dos lugares os partidos ou coligações que tiverem obtido quociente eleitoral”.
Por quociente eleitoral, entende-se o mecanismo de cálculo determinado pela divisão do número total de votos válidos pelo número de lugares na Câmara de Deputados, Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais.
Observe que, se determinado candidato receber uma quantidade expressiva de votos, mas a agremiação partidária não atingir o quociente eleitoral, tal candidato não logrará êxito na busca de uma cadeira no Parlamento.
Um retrato fiel dessa problemática ocorreu nas eleições parlamentares de 2002, onde o partido PRONA conseguiu eleger seis deputados. Um dos deputados eleitos foi o Deputado Enéas Carneiro que obteve a cifra de 1.573.642 votos. Então, reunindo o número de votos do Deputado Enéas com o número de votos dos outros candidatos do partido, dividiu-se pelo número de cadeiras no Parlamento, assim, ficou estabelecido o quociente eleitoral em 280.000 votos. Então, ao reunir todos os votos do partido e dividir pelo quociente eleitoral, o PRONA fez jus a seis vagas. Nessa medida, o candidato Enéas foi eleito com 1.573.642 votos, e cinco outros candidatos foram eleitos com baixíssima votação: 18.000 votos, 673 votos, 484 votos, 382 votos, 275 votos. Há de se notar, portanto, que houve candidatos com mais de 70.000 votos, que não foram eleitos, vez que o partido político não conseguiu lograr o quociente eleitoral[5].
In casu, pergunta-se: onde está a máxima efetividade do princípio constitucional da igualdade do voto?
Na linha dos ensinamentos expendidos, comentando o artigo 109 do Código Eleitoral que versa sobre o quociente eleitoral, Gilmar Mendes vislumbra, de igual modo nesse contexto, uma expressa e flagrante relativização da efetividade do voto:
Explicita-se aqui outra relativização da efetividade do voto, uma vez que somente serão contemplados os votos dos partidos que lograrem obter o quociente eleitoral. Nas eleições de 2002, José Carlos Fonseca obteve 92.727 votos para deputado federal do Espírito Santo. O quociente eleitoral foi de 165.284. A sua coligação obteve 145.271 votos ou 8,78% dos votos conferidos. Preenchidas sete vagas, cuidou-se da distribuição dos restos ou sobras. O Tribunal Regional Eleitoral recusou-se a contemplar a coligação à qual estava vinculado José Carlos Fonseca no cálculo das sobras em razão do disposto no art. 109, § 2º, do Código Eleitoral. Contra essa decisão foi impetrado mandado de segurança, forte no argumento da desproporcionalidade do critério ou da adoção de um critério legal que transmudava o sistema proporcional em sistema majoritário. Enquanto a coligação que obtivera 8,78% dos votos não seria contemplada com um mandato parlamentar, as demais estariam representadas (...)
O TSE rejeitou a ação, assentando-se que a expressão sistema proporcional contida no art. 45 da Constituição encontraria no Código Eleitoral critérios precisos e definidos. A discussão sobre a adequação dos critérios utilizados pelo legislador resvalava para controvérsia de lege ferenda sem reflexo no plano da legitimidade da fórmula[6].
Nesse sentido, como verdadeiro marco reforçador da argumentação elencada, a ADPF nº 161, de relatoria do Ministro Celso de Mello, questiona, justamente, a constitucionalidade do artigo 109, § 2º, do Código Eleitoral, que versa sobre a obrigatoriedade do quociente eleitoral, aduzindo que essa “cláusula de exclusão” viola o princípio da igualdade de chances, o pluralismo político, o princípio do voto com valor igual para todos e o próprio sistema eleitoral.
Ainda, incube acrescentar que está em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 602 de 1995 que também tem como desiderato suprimir do Código Eleitoral o artigo em apreço, que cuida da exigência do quociente eleitoral.
Conclui-se, então, que a obrigatoriedade do quociente eleitoral no sistema proporcional viola a efetividade do voto uma vez que, segundo o professor José Jairo Gomes, o voto de todos deve apresentar idêntico peso político[7]. E, nessa medida, quando candidatos com expressiva votação não logram êxito em conseguir um assento no Parlamento, apenas em função de o seu partido não ter conseguido a marca do quociente eleitoral, e, por outro lado, candidatos, com ínfima aceitação popular são eleitos, por conta da legenda partidária, flagrante está uma incongruência do sistema e, sobretudo, uma aplicação de peso diferente para votos que deveriam estar assentados na premissa constitucional da isonomia.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2011;
MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
PINTO, Ferreira. Código eleitoral comentado. 4. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 1997.
ROLLO, Alberto et al. Propaganda eleitoral: teoria e prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2008
Notas
[1] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 749.
[2] FERREIRA, Pinto. Código eleitoral comentado. 4. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 1997, p. 169.
[3] GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 90 e 91.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 749.
[5] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 759.
[6] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 760 e 761.
[7] GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 37.